O olhar da mulher passeou , pensativo, um pouco trocista , valha a verdade , por aquela estante repleta de livros, um exagero, quem sabe. Depois ela declarou: “ Só tenho um livro. Foi uma senhora para quem eu trabalhava que mo deu. Há seis anos, quando estive no hospital. Apareceu lá uma tarde e disse: é para se entreter e o tempo custar menos a passar.”Durante esses seis anos a mulher-a-dias, contou ela, mudou de quarto para parte de casa, daí para casa da sogra, depois para um quarto, e outro, e outro.
Mas o livro, pelos vistos, resistiu a todas essas mudanças e nunca por nunca ser ficou esquecido ou foi perdido. Se lhe chamassem a atenção para tal facto , é possível que ela ficasse espantada ou então que o considerasse sem importância, risível. Um objecto que ela talvez tenha ao lado de uma jarrinha com flor de plástico e de uma pequena moldura com retrato-recordação. Mas quem sabe se o livro não é , sem ela se dar conta, a sua modestíssima quota-parte cultural nesta vida?
No dia em que disse aquilo de só ter um livro, perguntou a quem a ouvia: “ Já leu? É muito bonito. Chama-se o Amor de Perdição. O autor é, deixe-me pensar, Camilo… Camilo de …”
Recearam o pior e propuseram-lhe logo o Castelo Branco. Aceitou-o sem espanto e até falou na Ana Plácido. No entanto, a mulher-a-dias só tinha aquele livro e lera-o porque estivera imobilizada numa cama. Depois, talvez o houvesse relido, mas aos pedacinhos , às escondidas, com a convicção de estar a roubar tempo a alguém ou até a proceder como uma tonta. Porque no seu ambiente o tempo não é de leituras.
Maria Judite de Carvalho, “ Este tempo - Crónicas”
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