sábado, março 30

Uma visão


Magia

Alessandra Vitelli
A leitura é prazer e alegria de estar vivo ou tristeza de estar vivo, e sobretudo é conhecimento de perguntas. [... ] É necessário haver muitos livros, muitos pinheiros enfeitiçantes, para que velem de olhares avessos o livro que realmente importa, a porra da gruta da nossa desgraça, a flor mágica do inverno!
Roberto Bolaño

Livro ilumina

 Klaas Verplancke

A sociedade

Denis Chiasson
— Filha minha não casa com filho de carcamano!

A esposa do Conselheiro José Bonifácio de Matos e Arruda disse isso e foi brigar com o italiano das batatas.

Teresa Rita misturou lágrimas com gemidos e entrou no seu quarto batendo a porta. O Conselheiro José Bonifácio limpou as unhas com o palito, suspirou e saiu de casa abotoando o fraque.

O esperado grito do cláxon fechou o livro de Henri Ardel e trouxe Teresa Rita do escritório para o terraço.

O Lancia passou como quem não quer. Quase parando.

A mão enluvada cumprimentou com o chapéu Borsalino.

Uiiiiia-uiiiiia! Adriano Meli calcou o acelerador. Na primeira esquina fez a curva. Veio voltando. Passou de novo. Continuou. Mais duzentos metros. Outra curva. Sempre na mesma rua. Gostava dela. Era a Rua da Liberdade. Pouco antes do número 259-C sabe: uiiiiia-uiiiiia!

— O que você está fazendo aí no terraço, menina?

— Então nem tomar um pouco de ar eu posso mais?

Lancia Lambda, vermelhinho, resplendente, pompeando na rua. Vestido de Camilo, verde, grudado à pele, serpejando no terraço.

— Entre já para dentro ou eu falo com seu pai quando ele chegar!

— Ah meu Deus, meu Deus, que vida, meu Deus!

Adriano Melli passou outras vezes ainda. Estranhou. Desapontou. Tocou para a Avenida Paulista.

Na orquestra o negro de casaco vermelho afastava o saxofone da beiçorra para gritar:

Dizem que Cristo nasceu em Belém…

Porque os pais não a haviam acompanhado (abençoado furúnculo inflamou o pescoço do Conselheiro José Bonifácio) ela estava achando um suco aquela vesperal do Paulistano. O namorado ainda mais.

Os pares dançarinos maxixavam colados. No meio do salão eram um bolo tremelicante. Dentro do círculo palerma de mamãs, moças feitas e moços enjoados. A orquestra preta tonitroava. Alegria de vozes e sons. Palmas contentes prolongaram o maxixe. O banjo é que ritmava os passos.

— Sua mãe me fez ontem uma desfeita na cidade.

— Não!

— Como não? Sim senhora. Virou a cara quando me viu.

… mas a história se enganou!

As meninas de ancas salientes riam porque os rapazes contavam episódios de farra muito engraçados. O professor da Faculdade de Direito citava Rui Barbosa para um sujeitinho de óculos. Sob a vaia do saxofone: turururu-turururum!

— Meu pai quer fazer um negócio com o seu.

— Ah sim?

Cristo nasceu na Bahia, meu bem…

O sujeitinho de óculos começou a recitar Gustave Le Bon mas a destra espalmada do catedrático o engasgou. Alegria de vozes e sons.

… e o baiano criou!

— Olhe aqui, Bonifácio: se esse carcamano vem pedir a mão da Teresa para o filho, você aponte o olho da rua para ele, compreendeu?

— Já sei, mulher, já sei.
Alcântara Machado. de "Gaetaninho"

sexta-feira, março 29

Dica de passeio


O triunfo do amor

O moço morava no outro lado do rio. Lá havia uma olaria. Trabalhava ali, fazia moringa, panela, bonecos e santos. Mãos caprichosas, artesão afamado. A moça morava no lado de cá, margem esquerda do rio, onde havia a pequena cidade com o seu comércio próspero. Fazia toalha, tapete, rede. As mãos delicadas, tecelã admirada.

Em cada domingo, empreendia o caminho das águas. Na canoa remava. Sentia-se bem com a manhã clara, a aflorar sentimentos de ternura, a cada lance que remava. ”Rema, rema, remador, se queres ver o teu amor”.

Manejava o remo com serenidade, a canoa singrava no espelho das águas. Prosseguia na manhã sem nuvens, o moço concentrado em cada remada que dava, a canoa como uma folha deslizando nas águas claras, de fontes puríssimas. “Se a canoa não virar, devagar chegarás lá, o teu amor vais encontrar.”

Lorenzo Mattotti
O casamento foi marcado para maio, mês de nascimento do moço artesão e da moça tecelã. Era para acontecer num desses domingos de sol radiante. Na igrejinha de paredes alvas, erguida na colina, no pátio enfeitada de bandeirolas. Lá dentro os vasos com cravos e rosas, os ares ativados com o perfume das flores. O sino velho na torre saudaria os noivos, as batidas fazendo blem, blem, blem, alegrando a cidadezinha na manhã luminosa.

Vontade de chegar depressa, abreviar o caminho das águas. Bater à porta da casa onde a moça o esperava desde cedo, o coração temeroso, o rosto de ânsia. A canoa impelida pelo remo em lances cadenciados. O vento, a princípio manso, de repente assoviou forte, no peito do moço bateu enraivado. Mostrava que também estava enamorado da moça. Vento virado em bicho ciumento, danado, como se quisesse derrubar nas águas o moço, impedindo-o de se encontrar com a moça. Bateu mais forte na canoa, que bateu na pedra, virou de lado, encheu de água. Desceu para o fundo do poço.

Nadou com firmes braçadas. Para se encher de ânimo, o moço dizia para si, entre os redemoinhos da alma. “Nada, nada, nadador, se queres ver o teu amor.” Até que pisou em terra firme. Estava cansado, o peito arfava. Colheu flores silvestres no barranco, antes de prosseguir na jornada.

Já desanimada, a moça não mais esperava que ele aparecesse. Ouviu alguém bater palmas lá fora. “Tem alguém aí em casa?” Apressada foi abrir a porta. Queria saber de quem eram as palmas fortes. Assustada, viu o moço que aparecia risonho, um rosto de expressão vitoriosa.

Entregou à moça o buquê de flores. Pediu uma xícara de café quente. Sentou na cadeira da sala, vestido com outras roupas, limpas e engomadas, que a própria moça providenciara. Depois de aquecer o peito com o café, bebido aos poucos, começou a contar por que se atrasara. O vento cheio de ciúme bateu na canoa com uma rajada medonha, suficiente para fazer um rombo na popa. A canoa afundou. Para não esmorecer na travessia, fortaleceu a vontade com uma coragem impressionante. Impeliu-se em arrojadas braçadas. Nada o atemorizava. Nem o poço fundo, a correnteza poderosa, o vento incontrolável, que enciumado assoviava na manhã tormentosa.

Durante a difícil travessia, só queria que chegasse aquela hora para dizer à moça o que sempre desejara:

– Estou esperando na igrejinha para receber você como a minha esposa.

Como havia prometido, desde aquele dia em que o artesão afamado deu o seu primeiro beijo na tecelã amada.
Cyro de Mattos

Aventura


A importância da leitura

Está cada vez mais em voga no Brasil e no exterior o tema referente a habilidades sócio-emocionais, com ou sem evidência empírica que sustente as afirmações. A questão é se isso realmente importa quando não se sabe ler ou escrever. Este post trata de hábitos de leitura dos alunos brasileiros a partir dos dados do Sistema de Avaliação do Ensino Básico (Saeb) 2017.

A figura abaixo refere-se a alunos do 9º ano do ensino fundamental de escolas públicas e privadas. Especificamente, a figura mostra a porcentagem de alunos que leem livros de literatura sempre ou quase sempre, de vez em quando, e nunca ou quase nunca, de acordo com a escolaridade da mãe. O foco no 9º ano ocorre porque não há esta informação para alunos do 5º ano do fundamental nem para os do 3º ano do ensino médio.

Observa-se que somente cerca de um quarto dos alunos tem o hábito de ler regularmente, enquanto aproximadamente 50% leem de vez em quando. A figura mostra também que o hábito de leitura está correlacionado com desempenho em Língua Portuguesa na Prova Brasil: a média de quem lê sempre é mais de 10 pontos maior do que a média de quem nunca lê, uma diferença equivalente a quase um ano escolar.


O que mais chama a atenção, entretanto, é que a porcentagem praticamente não varia com a escolaridade da mãe. Isso abre a possibilidade para várias interpretações. Uma interpretação mais pessimista seria que pais mais escolarizados não estão repassando para seus filhos a importância da educação em geral – e da leitura, em particular.

Uma segunda interpretação, mais otimista, seria que, apesar da baixa escolaridade, pais menos escolarizados conseguem cultivar em seus filhos hábitos de leitura equivalentes ao de pais mais escolarizados. Nesse sentido, iniciativas como a do programa de leitura em voz alta direcionado a famílias carentes implementado em Boa Vista (leia aqui) podem impulsionar hábitos de leitura.

O brasileiro lê pouco, independentemente de sua condição socioeconômica. A baixa produtividade do trabalhador tão mencionada atualmente não é uma coincidência. Hábitos de leitura, esforço, pontualidade, desempenho escolar: está tudo correlacionado.

quinta-feira, março 28

Escolha

Entre livro e internet, prefiro livro. Pelo menos ele só cai quando durmo
Eugênio Mohallem

Para melhor ver o mundo


Bibliotecas épicas

Falamos muitas vezes aqui no blogue (os Extraordinários nos seus comentários, bem entendido) das saudosas bibliotecas itinerantes da Fundação Calouste Gulbenkian, montadas em carrinhas que atravessavam o País de lés a lés, parando em locais onde não havia livrarias e distribuindo livros por crianças e adultos. Descobri, porém, umas antecessoras curiosíssimas na América da Grande Depressão: bibliotecárias que, em plenos anos 1930, andavam quantas vezes mais de uma semana fora, a cavalo, para distribuírem livros pelos seus conterrâneos em zonas isoladas dos EUA. Geralmente, os destinatários eram pessoas que não tinham acesso à cultura de outro modo e que assim mesmo tinham de dar uma educação aos filhos. Então, o presidente Franklin Roosevelt criou a Pack Horse Library Initiative para que os Americanos se pudessem informar e estudar e, desse modo, arranjassem mais facilmente emprego numa época em que as coisas andavam mesmo mal. As bibliotecárias atravessavam estradas e caminhos lamacentos só para entregarem os livros. Estes eram frequentemente doados por bibliotecas fixas nas capitais do Estado onde as senhoras os levantavam regularmente. Deixo-vos com algumas das fotografias do artigo do History Daily onde dei com esta bonita notícia.

quarta-feira, março 27

Bom passeio


Escolhas

Escolhia A Metamorfose em vez de o Processo, escolhia Bartleby em vez de Moby Dick, escolhia Um Coração Simples em vez de Bouvard e Pécuchet, e Um Conto de Natal em vez de Um conto de duas cidades ou de As aventuras do sr. Picwick. Que triste paradoxo, pensou Amalfitano. Nem mais os farmacêuticos ilustrados se atrevem a grandes obras, imperfeitas, torrenciais, as que abrem caminhos no desconhecido. Escolhem os exercícios perfeitos dos grandes mestres. Ou o que dá na mesma: querem ver os grandes mestres em sessões de treino de esgrima, mas não querem saber dos combates de verdade, nos quais os grandes mestres lutam contra aquilo, esse aquilo que atemoriza a todos nós, esses aquilo que acovarda e põe na defensiva, e há sangue e ferimentos mortais e fetidez
Roberto Bolaño

terça-feira, março 26

Leitura é para todos

Dennis Wunsch

O romance

C.F.Payne
O romancista narra uma história. E narrar uma história é, em outras palavras, tomar a iniciativa de adentrar no inconsciente. É descer para as trevas do interior da mente. Quanto maior for a história que o escritor quiser contar, mais fundo ele precisará descer. Da mesma forma que, quanto mais alto for o prédio a ser construído, maior terá que ser sua fundação subterrânea. Quanto mais densa for a narrativa, mais pesada e mais espessa serão as trevas subterrâneas
Haruki Murakami, "Romancista como vocação"

Curiosos


O mandarim

Uma noite, há anos, eu começara a ler, num desses in-fólios vetustos, um capítulo intitulado "Brecha das Almas"; e ia caindo numa sonolência grata, quando este período singular se me destacou do tom neutro e apagado da página, com o relevo de uma medalha de ouro nova brilhando sobre um tapete escuro: copio textualmente:

"No fundo da China existe um mandarim mais rico que todos os reis de que a fábula ou a história contam. Dele nada conheces, nem o nome, nem o semblante, nem a seda de que se veste. Para que tu herdes os seus cabedais infindáveis, basta que toques essa campainha, posta a teu lado, sobre um livro. Ele soltará apenas um suspiro, nesses confins da Mongólia. Será então um cadáver: e tu verás a teus pés mais ouro do que pode sonhar a ambição de um avaro. Tu, que me lês e és um homem mortal, tocarás tu a campainha?"

Estaquei, assombrado, diante da página aberta: aquela interrogação "homem mortal, tocarás tu a campainha?" parecia-me faceta, picaresca, e todavia perturbava-me prodigiosamente. Quis ler mais; mas as linhas fugiam, ondeando como cobras assustadas, e no vazio que deixavam, de uma lividez de pergaminho, lá ficava, rebrilhando em negro, a interpelação estranha – "tocarás tu a campainha?"

Eça de Queirós, "O Mandarim"

segunda-feira, março 25

Livro dá alegria

María Simavilla

O acidente

Clint Eastwood em Londres
E não abrandava. Podia a “vespa” saltar nos buracos da estrada, moer-lhe o fígado e os rins, cortar-lhe a respi-ração. Iam muito em breve fraquejar-lhe as mãos exaustas. Os pés, doridos daquele esforço atroz, relaxar-se-iam, soltar-se-iam, gratos, do estribo. E seria o fim. Embora! Não havia de ceder. Pouco lhe importavam já o Gonçalo e a Mané, o resto do mundo, o motivo, se motivo houvera, daquele desafio. O duelo era só de si para consigo, o duelo era com a noite vasta. (...)

Gonçalo ultrapassava-o agora, numa rajada de insânia. Levava o lenço de seda verde amarrado ao pescoço, esticadas as pontas para trás, pelo vento.

Não. Não queria consentir. Tinha de reconquistar a frente. Mais depressa, ainda mais depressa! Escuros rumores, inimigos, golpeavam-no como setas. Uma lua de pedra no céu, a ameaçá-lo. E o outro a distanciar-se. Acelerou. Viesse a morte, que viesse! A estrada devorada estremecia, vibrava como uma cobra pisada. Os seixos pulavam e faiscavam adiante do guiador. Já não saberia parar. Já lhe parecia impossível parar.

Distante, perdida, quase esquecida, toda a vida anterior. Só ele no meio da noite e dentro daquela euforia dolorosa, terrível, sobre a “vespa” veloz, gelada pelo hálito da morte. Mais depressa, ainda mais depressa!

De repente, aquele estrondo. E, lá adiante, uma imagem minúscula, absurda, tão nítida, tão sem sentido, como num documentário de cinema: a “vespa” pequenina saindo da estrada, guinando, chocando com uma árvore, arremessada ao ar, e aquele boneco de feltro, desarticulado, voando até cair inerte sobre as ramas cloróticas, numa poça de luz.

Começou a travar, suavemente. Quase não podia dar um passo, ao largar a “vespa”. Tinha as pernas hirtas, como se houvessem sido prensadas entre blocos de ferro.

Olhou. E logo voltou a cara. Nem uma esperança sequer de lhe pedir perdão! Gonçalo devia ter caído, com certeza, de cabeça para baixo. Estava todo torcido, o pescoço à banda .

Ricardo venceu finalmente o pavor que o lacerava e curvou-se sobre aquela caricatura morta. Voltou-o com jeitinho . Não havia uma só mancha de sangue no rosto duro, muito branco. Encostou-lhe o ouvido ao peito. Nada. Já não respirava.
Urbano Tavares Rodrigues, "Uma Pedrada no Charco"

domingo, março 24

O dia já está a postos

 Ellen Jiang

Nosso terceiro outono

Descansando mientras medita lo leído (ilustración de Mikyung Lee)
Mikyung Lee
Vê que de novo é época de goiabas e romãs? Goiabas gordas e romãs já meio devoradas e ainda presas nos galhos. Fizemos tantas coisas até aqui, tantas viagens à lua, festas do alfabeto, danças com palmas, tambor e pau-de-chuva. Você já sabe que uma boa rega atiça o cheiro do manjericão, sabe que amarelo com azul dá verde e que o mar pode ter muitas cores. Você já sabe qual é a letra do seu nome, uma letra às vezes branca, às vezes azul, às vezes roxa. Mas agora vem crescendo uma vontade de amigo como uma nova fome que a nossa casa não supre. Uma fome de grupo, fome de brincar com meninos e meninas, como na farinhada daquela cantiga de roda que chama todo mundo que gosta de farinha para peneirar junto. Sábio provérbio africano que diz que é preciso uma aldeia para educar uma criança. Pois é essa vontade que desponta no nosso terceiro outono, como fosse uma daquelas goiabas do bairro, um daqueles brilhos de polpa dizendo com seu rubor: é hora. O mundo vai mal? Tem muita torre de vigia, muita sirene de polícia e jogos de tiro ao alvo, coisas que serão estranhamente brutais para você, eu sei. Coisas que seus olhos grandes, por mais que vejam, não poderão entender. Queria lhe pedir desculpas por isso, queria que fosse outra a nossa aldeia, mais de berimbau e capoeira, mais de samba de coco e poema, que fosse mais calorosa e ao mesmo tempo leve, e dançassem vermelhos, brancos, azuis e verdes como numa das nossas aquarelas. Quisera. Mas o outono está aí e vai cumprindo seu curso, com frutos dando lindamente mesmo dentro de retângulos farpados. É hora. Vá com Malala, minha criança, e você encontrará amigos. Com sua caneta, seus pincéis de guache e aquarela, seus olhos grandes. Vá com Malala, meu amor, e a sua alegria.
Mariana Ianelli

Não perca tempo!


Não se pode chamar leitura a essa tremenda quantidade de tempo que se perde com os jornais
Lin Yutang

Malabarista leitor

Julie Paschkis

Doença

Santo Agostinho escreveu que, entre as tentações do homem, nenhuma era mais perigosa do que a “doença da curiosidade”. Era ela que nos levava a tentar descobrir os segredos da natureza, “que estão além da nossa compreensão, que em nada nos beneficiarão e que o homem não deve saber”. Em outras palavras, o mesmo conselho que Deus deu a Adão e Eva no Paraíso, advertindo-os a não comer o fruto da árvore do saber para não contrair a doença. Eva — sempre elas — não se aguentou e comeu o fruto proibido. Resultado: perdemos o paraíso da ignorância satisfeita e estamos, desde então, tentando descobrir que diabo de universo é este em que nos meteram, esta bola girando entre outras bolas num espaço imensurável, sem manual de instrução. Santo Agostinho e outros tentaram nos convencer a aceitar os limites da fé como os limites do conhecimento. Tentar compreender mais longe só nos traria perplexidade e angústia e nenhum benefício. Mas a doença da curiosidade já estava adiantada demais.

A fase mais aguda da doença chegou com a inauguração, há dez anos, num subterrâneo na fronteira da Suíça com a França, do tal acelerador gigante que jogaria prótons contra prótons em condições inéditas para tentar reproduzir a origem do mundo, liberar uma partícula subatômica que até então só existia em teoria e chegar mais perto de descobrir como funciona o universo. Quer dizer, os descendentes de Adão e Eva pretendiam levar a rebeldia do casal ao máximo e espiar por baixo do camisolão de Deus. Mas, dez anos e alguns bilhões de dólares depois, fora a importante descoberta da subpartícula presumida chamada Bóson de Higgs, o acelerador não tem muito a festejar no seu décimo aniversário. Não vieram o prometido redimensionamento do espaço, a explicação dos buracos negros, revelações sobre a origem de tudo. Etc.

Quanto mais se sabe sobre o funcionamento do universo, mais aumentam a perplexidade e a angústia das quais Santo Agostinho quis nos poupar. Pois não se pode compreender tudo — pelo menos não com este cérebro que mal compreende a si mesmo.

Mas os efeitos da fruta proibida ainda são fortes. E a doença da curiosidade não tem cura.

sexta-feira, março 22

Implosão


Uma história de amor

Susa Monteiro
O meu pai passou boa parte dos últimos anos da sua vida às voltas com a árvore genealógica da família, juntando papéis de toda a ordem, fotografias, tralha variadíssima, esquemas cheios de setas, obsessivo como sempre, miudinho, numa busca feroz de exactidão, desejoso de saber quem era na altura em que ia deixar de ser. Havia na sua inquietude um desejo confuso de eternidade, como se as raízes pudessem impedir o arbusto de morrer. Deixou-me aquilo juntamente com uma página cheia de instruções, entreguei o material às minhas filhas, praticamente sem olhar salvo umas cartas enviadas da guerra da Crimeia, que pensei que talvez pudessem servir-me para um livro e não serviam, e nunca mais lhe pus a vista em cima. Para quê? Não era um cemitério de gente, era uma vala comum de almas opacas onde o meu nome bruxuleava aqui e ali, como tristes lampadazinhas de azeite nos nichos dos caminhos de província, diante de imagens de barro que iam perdendo a tinta no tempo sem fim dos invernos do Minho ou em terras alemãs e brasileiras, que nunca conheci e para quem eu seria, quando muito, o contorno pouco nítido de um futuro de que não faziam parte, demasiado ocupados, como estavam, com o nada da sua própria morte. Havia retratos de feições desconhecidas, alguns dos quais já era eu em esboços arcaicos, testas que se transformariam noutra testa, narizes que dariam lugar a outro nariz, às vezes olhos surpreendentemente claros como os meus, um cabelo loiro não inteiramente estranho, uma boca que saltou gerações até eu falar por ela, a orelha esquerda um bocadinho mais descolada, a curva estranhamente evasiva dos sobrolhos. Vim de perto de Braga, de Belém do Pará, da fronteira da Alemanha com a Suíça, de uma maternidade que já não existe em Lisboa, na qual quase me extingui ao nascer, mas vim sobremodo do ventre da minha mãe, tão distante de todos estes bigodes e de todas estas senhoras a maior parte delas feias que me observavam, como sempre nas fotografias, com uma distância severa. Não andei a disparar contra os franceses, nem a desmaiar de calor na Amazónia, nem a morrer à fome numa aldeia perto da Póvoa do Lanhoso. Da aldeia perto da Póvoa do Lanhoso ficou-me o Antunes, de Belém do Pará o Lobo, da Alemanha boa parte das feições: que estranha mistura de sangues, latino, judeu, teutónico, sem falar do árabe que a talassemia da minha mãe me legou, ou fenício, ou cartaginês, ou sei lá, perdido numa bruma confusa de gerações silenciosas, nos acasos de cruzamentos que desconheço, nos ziguezagues de um cursozinho de água que passou por Cabo Verde e por Lagos antes de desaguar no meu pequenino corpo, iniciado no Algarve e concluído com as primeiras lágrimas de Lisboa: de tanta coisa, meu Deus, é feito o pobre homem que uma criatura começou a restaurar no termo da sua vida, quando o filho já andava por aqui em busca de si mesmo no interior de um corpo a que chamava seu, porque, ao construir-se numa esperança de duração, o meu pai me entregou a minha própria finitude. E talvez fosse essa finitude que eu não quis levantar face à sua eternidade. Muito pouco tenho a ver com ele fisicamente, muito pouco tenho a ver com ele por dentro. Se calhar sou ainda mais seu filho por ser o seu oposto, se calhar estou tão longe que fiquei pertíssimo. Para o fim da vida estava sempre sentado no que tinha sido o meu quarto, com um poster da editora alemã na parede, encostado, de blusão aberto, 
à Catedral de Colónia e uma fotografia num restaurante de Paris, entre Jorge Amado e Ernesto 
Sábato, tirada por Tom Colchie, então agente de nós três. Nem um retrato de nenhum dos meus irmãos lá estava e lembro-me da minha mãe me dizer sempre

– Vai ter com o pai porque ele gosta tanto de falar contigo


quando, na realidade, falávamos quase nada, ele na cadeira onde o João estudava, eu de cócoras numa ponta da cama, a olhar. Uma tarde mostrou-me uma coisa que tinha escrito:

– O que é que achas disto?

respondi

– Acho uma merda

e ele guardou-a logo na gaveta 
e gastou o resto do gesto a acender 
o cachimbo, enquanto me fitava com as suas duas covinhas azuis, 
a encher tudo de fumo.

– Uma merda


disse ele, depois silêncio e outra vez

– Uma merda

e depois um silêncio muito mais comprido. 
Não esqueço a mão magra, não esqueço o peito magro, não esqueço o gesto com que apontou para mim

– Mas tu vais salvar-me com o que escreves

e palavra de honra que só agora, neste momento, compreendi que a árvore genealógica que lhe levou tanto tempo a fazer e quis deixar-me era

(sou uma besta e apetece-me bater em mim mesmo)

a carta de amor mais linda que recebi de alguém.

quinta-feira, março 21

Livraria da esquina


Tecnologia x livro físico

A tecnologia trouxe um upgrade para a escrita e a leitura. Escrever no bloco de notas do celular, ler no tablet, ter uma biblioteca num aplicativo são experiências nunca imaginadas quando só tínhamos a opção do livro físico. Tenho alunos que já vivem a extinção do livro físico por antecipação porque só leem em dispositivos móveis. O importante é ler, contudo há que se ter cuidados com leituras excessivas em telas de computadores, notebooks e dispositivos móveis.

 Camille Ferrari
Nunca acreditei no fim do livro em papel. Um mundo sem livros para folhear me parece desabitável, seco, morto. Leio de todas as formas possíveis e faço da tecnologia uma aliada do trabalho, não a substituta, para acelerar o processo de compreensão e aprendizagem. Um exemplo disso é que a leitura num tablet te fará ler mais rápido podendo pular de um livro para outro rapidamente.

Se agirmos em prol de só exacerbar o tecnológico pregando contra livros impressos teremos ainda mais retrocesso cultural, é renegar o próprio passado em troca de um futuro mal desenhado, nebuloso.

Precisaremos do livro físico para provar que existimos, preservar as origens, espantar a manipulação, redescobrir apelos intelectuais. E também da tecnologia para conviver com o futuro, para estilhaçar sem medo vidraças futurísticas. Porque daquilo que me fascina e ainda não sei lidar sairão as respostas tão procuradas para acalentar o que me perturba.

Biblioteca robô


Literatura e empatia

 Miren Asiain Lora
Leio um artigo maravilhoso do grande Alberto Manguel sobre a capacidade que a literatura tem de nos tornar pessoas melhores. Diz ele que um dos seus livros de infância foi o romance Coração, de Edmundo de Amicis (que curiosamente o Manel também refere sempre como um dos que mais o terão marcado em jovem), hoje praticamente esquecido. É a história de um rapaz genovês que sai de casa para ir à procura da mãe, que trabalha na Argentina, e Manguel conta que chorou pela dor do rapaz e se perguntou se seria capaz de fazer o mesmo. E que, daí em diante, muitas das personagens dos romances – Jane Eyre, Anna Karénina, Robinson Crusoe, Dom Quixote – o ensinaram a pôr-se na pele do outro e a perceber o que era realmente o sofrimento e a alegria alheios. Diz que a literatura, não tendo aparentemente utilidade, tem-na, justamente por nos tornar muito mais atentos para o outro, disponíveis para escutar as suas angústias, nomear as nossas e partilhar problemas quotidianos. E conclui que isso é mais importante hoje do que no passado, pois muitas lutas têm hoje de se fazer de forma colectiva e solidária (em relação às crises migratórias, por exemplo). Depois apresenta números de um estudo universitário sobre a relação entre a leitura literária e a empatia. E ela existe, claro: quem lê literatura é de longe mais empático. Se ensina crianças e jovens, pense nisto.
Maria do Rosário Pedreira

*Eis o artigo de Manguel no New Iork Times em espanhol

quarta-feira, março 20

Leitura sensual


As duas coisas fundamentais que uma casa deve ter, segundo Truman Capote

Em um de meus contos favoritos, O Convidado do Dia de Ação de Graças, Truman Capote sugere, diria que quase sem perceber, duas coisas fundamentais que uma casa deve ter. Primeiro, algo bonito. O que for, mas belo. No conto é uma toalha de linho branco: “Pode chegar o dia em que tudo o que poderemos oferecer seja água de poço, mas pelo menos poderemos servi-la em uma mesa coberta com puro linho”.

Na casa de Hamptons (Nova York), Capote posa no salão de dois andares de uma imensa biblioteca. O prédio foi à venda em 2014 por 60 milhões de reais
A segunda coisa essencial é que a casa tenha recantos. Buddy, o menino protagonista do conto, autobiográfico, chama seu esconderijo de A Ilha: “Um lugar ao que ia quando me sentia triste e inexplicavelmente entusiasmado ou quando queria pensar nas minhas coisas. Em muitos apartamentos contemporâneos essa ilha cabe somente em um banheiro. Na grande casa do Alabama em que o pequeno Parsons —ainda não era Capote— passou sua infância em companhia de sua amiga, a anciã Miss Sook, A Ilha também estava no banheiro.

Com Capote as coisas ocorreram como a muitos: precisou crescer para perceber que cozinhando pão de milho e comendo esquilo frito de café da manhã havia sido feliz. Também tendo como amiga a menos esperta da família de três irmãs com as quais cresceu. As mesmas que antes adotaram sua mãe, Lillie, até que essa, com 16 anos “e o tipo de beleza que vemos nos concursos de beleza infantil”, se casou com seu pai. Carregando o bebê e com 18 anos, Lillie foi à universidade e, quando acabou de estudar, se divorciou. De modo que, antes de conhecer o senhor Capote —um comerciante cubano de quem Truman herdaria o sobrenome—, enviou o futuro escritor ao Alabama, à casa das três velhas que a haviam criado. Até os oito anos Truman cresceu entre brigas de travesseiro com a anciã Miss Sook.

Mesmo sem estar enunciado nesse conto —cuja moral é que duas coisas ruins não fazem uma boa—, o terceiro assunto fundamental para uma casa fica implícito na história. Descobrir o que é não parece difícil. Mas também não é fácil. O terceiro ponto que mede a virtude de uma casa consiste em sair dela. E nessa questão, na saída, é onde tenho algo a propor.

Há anos penso que nós espanhóis precisamos de um Erasmus estatal para adolescentes. Podemos dar-lhe um nome pátrio —María Zambrano, Rosalía de Castro, Fortunata ou Jacinta— mas visto que os adolescentes não irão ler Galdós para perceber que os mesquinhos, os aduladores, e também os corajosos, o são à margem da província em que nascem, pode ser que tenha chegado o momento de aprenderem tanto convivendo com uma família espanhola como com uma família inglesa.

Uma vez que somos um país de pessoas intensas, não precisaríamos sequer de seis meses para observar o melhor e o pior de cada casa: a diferença entre o recebimento e a convivência cotidiana, a ordem e a distribuição de tarefas, a gastronomia e a logística, a limpeza e a obsessão pela limpeza. Veríamos também o que têm, e deixam de ter, os demais. Como passam suas horas. Com quanta luz leem. Ou se leem. Pode ser que aprendêssemos cedo a fazer uma paella, polvo à galega e arrumar a cama. Há níveis em tudo.

Alguns jovens ficariam mais atentos ao que se passa no mundo. Se isso acontecer, a saúde pessoal e a exigência com os políticos amadureceriam. Os muito radicais aprenderiam, pelo menos, a ver como o mundo funciona quando a pessoa se cerca de gente que não é como ela. De tudo o que vissem algo os faria pensar. O mesmo aconteceria com as casas. Os ricos aprenderiam do pouco. E talvez do que está próximo. Os pobres, da abundância. E da mesquinhez. Ocorreriam surpresas. O Erasmus nacional serviria para isso, para surpreender.

Bruce Chatwin escreveu sobre a claustrofobia de algumas pessoas que nunca deixam a casa em que nasceram e "vivem uma relação circular onde nada pode acontecer ". Por isso uma casa com recantos, algo bonito e a porta aberta tem o fundamental para se transformar em uma grande casa.

O vagamundo


Assim começa o livro....

Pela cabeça de Jan passaram os fantasmas e os dias fantasmais, creio que foi rápido, um suspiro e agora só restava Jan no chão, suando e dando gritos de dor. Também há que destacar suas expressões, a impressão de suas expressões geladas, como me dando a entender que havia algo no teto, o quê?, falei enquanto meu indicador subia e descia com uma lentidão exasperante, ai, merda, disse Jan, como dói, ratazanas, ratazanas alpinistas, babaca, e depois disse ah-ah-ah, e eu o segurei com os braços, ou o sujeitei, e foi então que me dei conta de que não só suava a cântaros, mas que o mar era frio. Sei que devia ter saído em disparada para procurar um médico, mas intuí que ele não queria ficar sozinho. Ou talvez eu tenha tido medo de sair. (Nessa noite eu soube que a noite era verdadeiramente grande.) Na verdade, visto com certa perspectiva, creio que para Jan dava na mesma eu ir ou ficar. Mas não queria um médico. Assim, eu disse a ele não morra, você está igualzinho ao idiota de Dostoiévski, eu te traria um espelho se tivéssemos um, mas como não temos, acredite em mim e trate de relaxar e não vá morrer. Então, mas antes suou pelo menos um rio norueguês, ele disse que o teto do nosso quarto estava invadido por ratazanas mutantes, não está ouvindo?, sussurrou com minha mão em sua testa e eu disse que sim, é a primeira vez que ouço guinchos de ratazanas no teto de um quarto na cobertura de um oitavo andar. Ah, disse Jan. Pobre Posadas, falou. Seu corpo era tão magro e comprido que eu me prometi que no futuro me preocuparia mais com sua comida.

Depois pareceu adormecer, os olhos semicerrados, de cara para a parede. Acendi um cigarro. Pela nossa única janela começaram a aparecer as primeiras luzes do amanhecer. A avenida, lá embaixo, continuava escura e deserta de gente, mas os carros circulavam com certa regularidade. De repente, às minhas costas, ouvi os roncos de Jan. Olhei para ele, dormia, nu no colchonete sem lençóis, em sua testa uma mecha de cabelos louros que pouco a pouco ia secando. Encostei-me na parede e me deixei deslizar até ficar sentado num canto. Pela janela passou um avião: luzes vermelhas, verdes, azuis, amarelas, o ovo de um arco-íris. Fechei os olhos e pensei nos últimos dias, nas grandes cenas tristes e no que eu podia apalpar e ver, depois me despi, me estirei no meu colchonete e tratei de imaginar os pesadelos de Jan, e de repente, antes de adormecer, como se me sugerissem, tive a certeza de que Jan havia sentido muitas coisas naquela noite, mas não medo.

terça-feira, março 19

Tele-livro


Por isso, o soco

O romancista narra uma história. E narrar uma história é, em outras palavras, tomar a iniciativa de adentrar no inconsciente. É descer para as trevas do interior da mente. Quanto maior for a história que o escritor quiser contar, mais fundo ele precisará descer. Da mesma forma que, quanto mais alto for o prédio a ser construído, maior terá que ser sua fundação subterrânea. Quanto mais densa for a narrativa, mais pesada e mais espessa serão as trevas subterrâneas
Haruki Murakami, "Romancista como vocação"

Para se aventurar


Cai a chuva no portal

Se, no entanto, você é um pouco cínico, antissocial ou alguma coisa do gênero, a chuva também é a sua melhor companhia. | 22 coisas que qualquer um que ama a chuva entende
Cai a chuva no portal, está caindo
Entre nós e o mundo, essa cortina
Não a corras, não a rasgues, está caindo
Fina chuva no portal da nossa vida.
Gotas caem separando-nos do mundo
Para vivermos em paz a nossa vida.

Cai a chuva no portal, está caindo
Entre nós e o mundo, essa toalha
Ela nos cobre, não a rasgues, está caindo
Chuva fina no portal da nossa casa.
Por um dia todos longe e nós dormindo
Lado a lado, como páginas dum livro.

Lídia Jorge

segunda-feira, março 18

Suplemento para alimentar o dia


Asas da alma

Cecco Mariniello.

De livros encham-se as casas, eis um conselho excelente, pois o livro, aberto em asas, põe asas na alma da gente
Orlando Brito

Roda da leitura

Helsinki Book Fair 2008

O manuscrito de 'Cem anos de solidão' que García Márquez acreditava ter perdido

Talvez a melhor explicação sobre a prodigiosa imaginação de Gabriel García Márquez seja a de seu pai: “tinha uma capacidade para inventar além da realidade que via. Eu sempre disse que tinha dois cérebros. Ninguém me tira da cabeça a ideia de que Gabito é bicéfalo”, dizia dom Gabriel Eligio García. Usou esse formidável talento fabulador em suas obras, mas também gostava de fantasiar com histórias reais por trás de sua literatura. García Márquez fabricou uma lenda sobre os pormenores de sua legendária obra "Cem Anos de Solidão". Despistava, afirmava que precisou mandar o original em duas partes à Editora Sudamericana porque ficou sem dinheiro na agência de correios e costumava dizer que não sabia onde estavam os manuscritos.


Um desses supostos textos perdidos apareceu na Cidade do México. No bairro Roma, no novo mostruário da Fundação Slim, em um quarto e diante de uma cama, em uma estante colonial, como sancta sanctorum, está o manuscrito de "Cem Anos de Solidão" que Gabriel García Márquez deu a seu amigo, o crítico mexicano Emmanuel Carballo (Guadalajara, 1929), com correções do próprio autor colombiano. O texto datilografado está protegido por uma caixa vermelha em formato de livro na qual se destaca sua lombada com duas faixas negras. Na primeira, se lê o nome do autor e da obra que causou o boom da literatura latino-americana; na segunda, está a legenda em maiúsculas: Cópia datilografada do romance presenteado a seu corretor o escritor mexicano Emmanuel Carballo. Mais abaixo diz com letras douradas: Na Cidade do México, 1965 – 1966.

“García Márquez se referiu várias vezes a esses manuscritos que havia perdido de vista. Fala de sua história, o que acontece é que fantasiou o relato, dizia não saber se existiam outras cópias das quais ele não se lembrava, do que duvido, porque não se ajusta à evidência material e à gênese do texto que eu pude rastrear”, diz Álvaro Santana-Acuña, principal pesquisador da Fundação García Márquez e autor do livro Ascent to Glory: How 'One Hundred Years of Solitude' Became a Global Classic (ascensão à glória: como Cem Anos de Solidão se tornou um clássico global).

A evidência material, o registro que aparece na edição comemorativa da obra da Real Academia Espanhola, constata que existem quatro manuscritos: “Pera Araiza (que se encarregou de passar a limpo o texto escrito à mão) datilografou o original com três cópias. Foi aquele o enviado no começo de agosto à Editora Sudamericana em dois pacotes postais. Álvaro Mutis levou pouco depois a Buenos Aires outra cópia; a terceira, sempre de acordo com o depoimento de García Márquez, “circulou na Cidade do México entre os amigos” que o haviam acompanhado nos momentos ruins, enquanto a quarta foi envidada a Barranquilla “para que fosse lida por três protagonistas íntimos do romance: Alfonso Fuenmayor, Germán Vargas e Álvaro Cepeda, cuja filha Patricia ainda a guarda como um tesouro”. As outras, supostamente, se perderam”. O próprio García Márquez fantasiou ainda mais o relato: “Em alguma parte do mundo, entretanto, podem existir outras cópias”, como explicou em um artigo de 2001 para o EL PAÍS chamado A odisseia literária de um manuscrito.

Seguindo o rastro oficial, atualmente se conhece a localização de somente três cópias: uma está na Universidade do Texas, que comprou o arquivo do escritor em 2011. Outra é a enviada a seus amigos em Barranquilla e Bogotá, hoje em poder da família Cepeda Samudio. E a cópia “que circulou na Cidade do México entre os amigos” deve ser, portanto, a que está exposta na capital mexicana após ser presenteada a Carballo. Do original, que García Márquez dividiu em dois, não há notícias.

“O que eu sei é que Gabo destruiu todos os esboços do romance, todos os rascunhos, diagramas... toda essa parafernália que vem com a escritura de um livro. Gabo se desfez de tudo isso, não sei de que forma, mas realmente a única coisa que resta do livro são esses manuscritos, como o que está no México”, diz seu filho Gonzalo García ao EL PAÍS. A primeira edição de "Cem Anos de Solidão" apareceu em 1967 e, assim que a tiveram em mãos, García Márquez confessou que ele e sua esposa rasgaram “o original anotado que Pera utilizou para as cópias, para que ninguém pudesse descobrir os truques de sua carpintaria secreta”.

O texto datilografado guardado no México fazia parte da biblioteca pessoal de Guillermo Tovar de Teresa, cronista da Cidade do México que morreu em 2013, cuja casa — com sua coleção de coleções — se transformou recentemente no terceiro Museu Soumaya, da Fundação Carlos Slim. Emmanuel Carballo, o crítico literário mais importante do México nessa época, era amigo íntimo de Guillermo Tovar de Teresa. “Guillermo e Emmanuel eram muito amigos e ele conseguiu, com essa capacidade de sedução que Guillermo tinha para conseguir seus objetivos de colecionador, que Carballo vendesse [o texto datilografado de Cem Anos de Solidão] a ele”, afirma seu irmão Fernando Tovar y de Teresa.

O texto datilografado tem algumas correções que supostamente são do próprio Carballo, onde podem ser vistos com mais clareza as correções do autor sob as rasuras. Essa versão também possui mais de 200 correções à mão do próprio García Márquez. “Do ponto de vista de críticos não são ajustes importantes, mas demonstram que era uma pessoa extraordinariamente perfeccionista. E pode-se ver como eliminava coisas quando o romance já estava terminado, ainda assim eliminou parágrafos completos, acrescentou algumas frases, principalmente para dar maior força poética e expressiva ao texto”, diz Santana-Acuña. O texto é testemunha da colaboração fundamental entre García Márquez e Carballo.

Emmanuel Carballo, que escrevia praticamente sobre qualquer livro publicado no México, fundou, junto com Carlos Fuentes, a Revista Mexicana de Literatura, além de colaborar como crítico no México na Cultura, suplemento cultural fundamental da época no qual publicaram, entre outros, Alfonso Reyes, Octavio Paz, Juan Rulfo, Carlos Monsiváis e Elena Poniatowska. “Em 1965 começa a escrever Cem Anos de Solidão e, no outono desse mesmo ano, Gabriel García Márquez se aproxima de Carballo e lhe diz: 'estou começando a trabalhar nesse romance, gostaria que você o lesse', então, durante um período que de acordo com Carballo durou um ano, García Márquez lhe levava todos os sábados, como se fosse um romance por partes, desses antigos do século XIX, o que havia escrito durante a semana. García Márquez se sentava com Carballo para conversar, discutir os personagens, o enredo de coisas que poderia mudar, que poderia melhorar. García Márquez evidentemente apreciava muito a opinião do crítico”, afirma Santana-Acuña.

A elite literária colombiana havia difamado a obra no começo. O crítico Eduardo Gómez disse que "Cem Anos de Solidão" não tinha “lógica interna e rigor estético”, fala “dos estreitos limites culturais do autor” da “falta de unidade na concepção dos temas” e da falta de rigor por misturar “fantasia e realidade indiscriminadamente”. No México, entretanto, Carballo o elogiou: “é um romance perfeito”, afirmou. “Antes de Cem Anos, Gabriel García Márquez era um bom escritor, agora é um escritor extraordinário, o primeiro entre seus colegas de equipe que escreve uma obra prima”, destacou no primeiro texto crítico sobre o romance, onde disse que o leitor estava diante de um dos grandes romances do século XX.

García Márquez escreveu sua obra em folhas de caderno (holandesas) no número 19 da rua La Loma, no bairro San Ángel, na Cidade do México. “Lembro de meu pai escrevendo praticamente o tempo todo que estava na casa, é uma das imagens mais presentes que tenho: ele sentado diante de uma máquina de escrever em seu estúdio, em uma casa pequena e muito austera; no estúdio onde escrevia havia quadros e livros e era, digamos, o lugar mais cálido da casa”, diz seu filho Gonzalo García.

Segundo a história que o próprio Gabo conta, a ideia de "Cem Anos de Solidão" surgiu em 1965, em uma viagem com Mercedes e seus dois filhos a Acapulco. “Eu me senti fulminado por um cataclismo da alma tão intenso e arrasador que quase não consegui desviar de uma vaca que atravessou a estrada”. García Márquez descreve no texto que escreveu no EL PAÍS: “Não tive um minuto de sossego na praia. Na terça-feira, quando voltamos à Cidade do México, sentei diante da máquina para escrever uma frase inicial que não podia suportar dentro de mim: ‘Muitos anos depois, diante do pelotão de fuzilamento, o coronel Aureliano Buendía lembraria daquela tarde remota em que seu pai o levou para conhecer o gelo’. A partir daí não parei um dia sequer, em uma espécie de sonho demolidor, até a linha final em que Macondo foi para a casa do c...”.

domingo, março 17

Leitura surreal

Andrej Mashkovtsev 

Capitu 2019

ANTICASMURRICE
Se fosse uma história
de outro tempo
e de outra autoria
Capitu o Bentinho e o Escobar
num hotel ou num motelzinho receberia
para um poquerzinho
ou para um ménage à trois.

PIOR SEM ELE
Curitiba sem o Vampiro
É como revólver sem tiro.

UTILIDADE
Se vivo ainda estou
é por aquiescência
do amor minha excelência
Tantas mil vezes
à morte ele me sentenciou
quantas mil vezes me perdoou
Sei que nunca se arrependeu:
ninguém lhe beija as mãos
ninguém lhe lambe os pés como eu.

COTAÇÃO DO DIA
Só não me declarei morto, ainda, porque não confio na minha opinião.

O ÓBVIO
Morrer é simples:
é aquilo que ocorre
com quem morre.

ETAPAS
No caminho do silêncio
a concisão
é a penúltima estação.

ETERNIDADE
Nada de novo sob o sol:
todos os dias foram
e serão sempre um só.

SEGUNDA ÉPOCA
Um burro velho como eu
pode ainda aprender poesia
se até hoje não aprendeu?

CARAPUÇA
Os poetas somos assim:
abominamos quem a tem
mas construímos também
nossa torre de marfim.

ATUALIZAÇÃO
Não mais o ramo de oliveira.
O que a pomba hoje no bico nos traz
é uma bomba de fabricação caseira.

VÍTIMAS
Não há leitor que os mereça.
Depois dos versos sem pés,
Agora os faço também sem cabeça.

GUERRA
Comigo me desavim
com tamanha convicção
que ao sim me respondo não
e ao não me respondo sim.

ENJOADA
No aniversário dela
ele lhe deu uma lua nova.
Ela a apalpou,
avaliou
e rejeitou.
Ah, que magrinha,
eu queria aquela,
sabe? toda cheiinha.

DE CAVALEIRO E CAVALO
Quando se proclamou rei
não lhe deram um cavalo,
quando se disse vassalo
três rainhas vieram cavalgá-lo.

MURO
O poeta aponta para cima
e o sol esboça um arco-íris
com a poética urina.

ETIQUETA
Favores sexuais devem ser retribuídos rápida e generosamente.

Aeroplano mágico

Andrea De Santis

Onde começa a felicidade?

"Aurea mediocritas", dizia Horácio, um dos poetas latinos que faz a base da nossa civilização. As palavras com o tempo corrompem-se, alteram-se, adulteram-se. "Mediocritas" em português deu mediocridade, tal como "parvus" deu parvo, ao contrário do castelhano em que apenas significa pequeno, ou "sinistra" em italiano quer apenas dizer esquerda.

A "Aurea mediocritas" que cantava Horácio era a doce e suave mediania entre as emoções, um equilíbrio quase bucólico na vida a ter e nos negócios a ter na vida. Não, Horácio, romano educado, não era adepto dos desportos radicais. Equilíbrio entre o quê? Distorcendo Horácio, a dois mil anos de distância, podemos dizer, talvez, equilíbrio entre o sonho e a realidade. A felicidade não pode ser só o que há, senão apodrecemos, mas também não pode ser só o que desejamos, senão ficamos com uma neurose de tanto ansiar pelo que há-de vir.

Phoebe Wahl

O resto é com cada qual. Alguns gostam da felicidade bovina de não pensar muito, outros gostam de estar sozinhos no deserto, outros ficam felizes com a desgraça alheia. Estes três exemplos são, cá para mim, desgraçados, mas o que sei eu dos outros? É por não saber nada dos outros que escrevo histórias sobre os outros. Para aprender. Haverá outra razão para fazer as coisas?

Felicidade é, pois, como o Natal - é quando um homem quiser. Nunca me canso de fazer versões sobre este mote do grande Paulo de Carvalho. Hei-de levar isto para a cova e se não me ocorrer mais nada (pode acontecer) esta será a minha última frase. E depois do adeus logo se verá.

*

Agora uma pergunta: por que motivo os adolescentes são tão infelizes? A resposta está, uma vez mais, em Horácio: porque não se encontraram. Não sabem nem quem são nem para onde vão, ou desejam ir. Felicidade começará, então, por ser estas duas coisas: saber o que se é, com um grau de aproximação razoável, e ter pelo menos uma vaga ideia do que se quer. E uma terceira característica: não saber que se é feliz. O excesso de autoconsciência estraga os alimentos.

Homens e mulheres felizes? Conheço bastantes. Todos eles, em comum, tinham estes três traços distintivos: aceitavam-se como eram, sabiam ao que iam, não pensavam demasiado em si próprios.
Rui Zink

sábado, março 16

À luz do lampião

Bettina Baldassari

O mundo em que vivi

O primeiro dia da escola. A saca às costas, caminhei ao lado da minha mãe, cheia de curiosidade e de receios. O sr. Brand, o professor, distribuía sorrisos animadores aos meninos, que o fitavam com desconfiança. A barba grisalha e o colarinho engomado davam-lhe um ar de austeridade, mas os olhos alegres protestavam contra tal impressão. Começou por nos falar, e doseava serenidade com humor para afugentar os nossos medos. De todas as escolas por que passei, a de que verdadeiramente gostei foi a escola primária. Quando o sr. Brand tomou nota do meu nome ninguém se virou para mim com sorrizinhos por soar a judaico, ninguém achou estranho eu responder «Israelita» à pergunta do sr. Brand à minha religião. Fora a mãe que me recomendara: «Quando o sr. Brand te perguntar pela religião, diz-lhe que és israelita. Soa melhor do que judia». Eu não concordava, porque achava «israelita» uma palavra estranha que não parecia pertencer à minha língua e, por isso, corei de embaraço ao pronunciá-la. E quando o sr. Brand quis saber a profissão do meu pai respondi «negociante de cavalos». Coisa natural. Muitos alunos eram filhos de lavradores e conheciam o meu pai. Não me sentia envergonhada daquilo que eu e o meu pai éramos, como aconteceria mais tarde, no liceu, quando a minha mãe me recomendou que às perguntas respondesse, além de «sou israelita», que o meu pai era «comerciante».

O liceu ficava em L..., a cidade onde havia o teatro e a sinagoga. Tomávamos, manhã cedo, o comboio e, com gesto arrogante, estendíamos o passe anual ao revisor.

No primeiro dia de aulas tivemos de dizer o nosso nome e profissão do pai e a religião. Conforme recomendação da minha mãe eu disse:

- O meu pai é comerciante. Sou israelita.

Na escola primária tudo fora natural. No liceu colegas viraram-se e olharam-me. Mais duas judias faziam parte da turma e uma delas, Hanna Berg, respondeu à pergunta com voz firme: «Sou judia». Os gestos de Hanna eram extraordinariamente vivos e comunicativos, enquanto nos seus olhos havia a expressão dessa melancolia penetrante das seculares lendas de sabedorias e flagelos.

Hanna propôs-me que a acompanhasse a uma reunião dos sionistas. E nessa tarde. em que conheci o grupo juvenil a que ela pertencia, compreendi por que razão dissera com tanta firmeza: «Sou judia».

Numa sala espaçosa vi rapazes e raparigas de blusa branca e gravata azul e, encostada a um canto, a bandeira azul e branca. Hanna saudou o grupo com «Shalom», «paz», e todos lhe responderam do mesmo modo.

Desprendeu-se do grupo um rapaz. Bateu palmas. Fez-se silêncio, e ele disse:

- Vamos começar.

Hanna indicou-me uma cadeira e segredou-me:

- É o Bertold. Repara bem nele.

Bertold: alto, de calções de camurça, expressão franca e decidida. Levantou a mão para dar sinal de começar e vi que era uma mão larga e forte. No momento em que Bertold dobrou os ombros para trás, endireitou o tronco e moveu a mão, os rapazes e as raparigas começaram a falar em coro: primeiro um murmúrio crescente, depois vozes altas, vigorosas, que pareciam vir duma grande massa de gente. Diziam de injustiças, de orgulho, de expectativa duma vida livre em Israel. Como um chefe de orquestra, Bertold regia-os. Juntava as mãos em concha para em seguida as erguer num movimento rápido: as vozes elevavam-se; abria os braços como quem pedia para recuarem: as vozes baixavam; rasgava o ar com as mãos: as vozes emudeciam. As frases esperançosas, a convicção com que eram ditas, isso impressionava-me fortemente. Concluí que aniquilaram todas as dúvidas e resignação dos velhos, que encontraram rumos novos. «Devemos ter orgulho por sermos judeus», diziam os velhos, mas na verdade procuravam apenas consolo. Esses jovens, porém, esses sim orgulhavam-se deveras.

Depois das declamações começaram a dançar a «horra». Deitando os braços pelos ombros uns dos outros formavam um círculo, rodavam para a esquerda sempre para a esquerda, alegres e entusiásticos. Cantaram a comunicativa melodia da «hatikwah», a canção da «esperança».

Excitada, falei em casa da reunião. Tencionava voltar lá para aprender a falar em coro, dançar a «horra» e cantar a «hatikwah». Mas tanto o meu pai como a minha mãe acharam que não, que isso não me servia. Só me meteria na cabeça a emigração para a Palestina e eu, como boa alemã, não devia abandonar a pátria a que pertencia.

Quando falei ao sr. Heim, sorriu um tanto triste:

- Repara, Rose, o meu rapaz também anda com os sionistas e por isso há discórdia em casa. Ele e a mãe quase que não se falam
Ilse Losa, "O mundo em que vivi"