sexta-feira, março 8

Não olhes para trás que para trás mija a burra

É tarde. Ouves as vozes do silêncio

– É tarde

Susa Monteiro
mas continuas aqui a escrever na nudez da casa, onde tudo às escuras excepto este quartito. Na janela o rio ao fundo, casas que se não vêem, luzes na estrada, faróis distantes. Nenhum ruído a não ser um pequeno som dentro de ti às vezes, um som quase silêncio, um suspiro que parece feito da tua carne, talvez um músculo ou o eco de um móvel, uma cadeira, o vento, quando não há vento, num suspirozinho leve. Tudo é tão diferente de noite, as janelas do prédio em frente apagadas. Às vezes o assobio de um elevador, se calhar almas que sobem ao céu, brancas, sem pecados, e tu a penares no livro, a correres os dedos no cabelo, a olhares em torno antes de recomeçares. Papéis nesta mesa, um coelho de chocolate com uma fitinha encarnada ao pescoço e olhos e boca pintados na prata doirada. Está aí há anos, nunca lhe tocaste. A fitinha tem um sino e tudo, que nunca tocou também. Tu e a fitinha são parecidos. Quem me garante que não és a fitinha de alguém? Um avião lá ao fundo porque luzes insignificantes que palpitam numa descida lenta. Estrelas. Barcos no rio. Nada a não ser esta casa, cheia de silêncio e penumbra, e tu às voltas com o teu livro. Para quê? Já existem tantos livros, não é, quem consegue fazer-se ouvir acima deste ruído monótono? Vais à janela e um cão lá em baixo, na espécie de jardim, à volta da casa, que ora cheira ora se suspende a pensar. Se fosses cão em que pensarias? Passa-te tanta coisa pela cabeça. Saudades do teu avô, por exemplo, ou uma espécie de vazio esquisito? Uma espécie de vazio esquisito. Qualquer dia morro. Tenho medo. Noutras alturas não tenho medo nenhum embora seja horrível a ideia de enfrentar o nada, da mesma forma que tenho horror a escrever estas crónicas.

Mas não posso, para já, desistir delas: é preciso ganhar a vida, não é? Todos os meses duas, todos os meses duas, todos os meses duas. Enganei-me: todos os meses quatro, que fadário. Espero, em breve, poder desistir delas, largá-las. O cão, no jardim, a olhar um morcego que gira em volta de um candeeiro como um papel que se amarrota sozinho. Sobe, desce, insiste, desaparece no muro. Eram tão grandes em África. Saíam das mangueiras à noite a tropeçarem no vento, mangueiras enormes, infinitas, tão lindas durante o dia, tão ameaçadoras depois das seis horas. Eu no jango do quartel, à espera, enquanto um africano ou outro passava junto ao arame. Espiavam a gente? Os crocodilos do Cambo devem estar a dormir na areia ou então na água, só com os olhos de fora. Volta e meia matavam uma cobra com um único golpe horrível de dentes. São tão feios, tão estranhos. No jardim desta casa há uma piscina. Por um instante tenho cinco anos de novo e apetece-me fazer chichi lá dentro. Nada de especial, um chichizinho apenas, sempre fui um ás em chichis. O João e eu costumávamos jogar à espada com os jactos ou acertar num gargalo de garrafa. Quer dizer tentar acertar: os gargalos de garrafa são dificílimos. Não me lembro quem ganhava mais vezes. O João era sardento.

Volto a olhar os papéis do romance, peço-lhes que esperem, tenho de acabar este texto, e lá ficam eles para ali, nessa ameaçadora quietude das coisas. O retrato da minha avó com dezassete anos, em Moçambique, fita--me à minha direita com os seus imensos olhos azuis. Gosto de olhos azuis. Tenho um par, eu. As professoras do secundário, era eu miúdo

(– Já viste os olhos dele?)

achavam-lhes muita graça, eu que só queria ser moreno e desaparecer do liceu. O doutor da Ginástica, quando marchávamos às voltas no ginásio, gritava-me

– Não olhes para trás que para trás mija a burra

ou seja um velho cheio de bigode e impaciência. Já deve estar há séculos na Pradaria das Caçadas Eternas, como diziam os Sioux nas histórias aos quadradinhos: era velho. Sempre de fato e gravata. O fato coçado, a gravata mal posta. Doutor Serra, acho eu. Não sei porquê tinha uma espécie de pena dele, parecia-me que cheirava a sopa da véspera. As professoras, em geral, cheiravam bem e cochichavam umas com as outras. Uma vez, ao passar por um grupinho delas, a de Francês disse às colegas

– Quando esse crescer

e como não achei graça nenhuma talvez por isso não cresci. Estou quase no fim deste texto: até o cão desapareceu lá de baixo, ao passo que eu continuo, sozinho, com o coelho de chocolate, nesta mesa, sei lá porquê a lembrar-me do meu pai. Era magro e andava sempre na mecha, subia para o andar de cima em três pulos e fumava cachimbo. Nunca experimentei. Tabaco inglês em latas em cima da secretária dele. Sabia-se que tinha chegado a casa porque o cheiro do tabaco

(nunca acender com isqueiro)
crescia. Quase não falava, embora tivesse uma voz muito bonita. Com as senhoras ficava cheio de eloquência e olhinhos. Se estivessem cinco numa sala, é um supor, ele namorava seis. A minha mãe fingia não dar por nada, claro, nem sequer

– Oh João oh João

que já era um discurso grande para ela. Achava esquisito porque João era o meu irmão, o meu pai era

– Pai

quando tinha de ser alguma coisa.

– Pai

e entupíamos que ele não era para graças. Parecia--se com a sua mãe, o mesmo sorriso feio, os mesmos olhos pequeninos. E não era horrível, havia não sei quê de atraente nele para além da voz, claro. Uma ocasião chamou-me

– Filho

e deu-me vontade de chorar, comovido. Ouvir

– Filho

é tão bom, por favor repita

– Filho

para me dar coragem de acabar isto e voltar para o livro. Não leve a mal mas gostava que lesse o que eu escrevi. Assim como assim já sou grande, não é?

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