quinta-feira, março 14

'Os amantes', de Amitava Kumar, mostra como a leitura ajuda a moldar a experiência

O narrador de Os amantes (Todavia, tradução de Odorico Leal), recém-lançado romance do indiano-americano Amitava Kumar , é Kailash (o sobrenome dele nunca é revelado), um jovem migrante saído de Bihar, um estado predominantemente rural no nordeste da Índia, próximo à fronteira com o Nepal. Kailash se muda para Nova York, onde cursa pós-graduação, submerge em leituras desconstrutivistas e ganha apelidos espirituosos de seus colegas universitários: Kalashnikov, AK-47 e AK. A paisagem familiar de Bihar não sai da cabeça dele, como se fosse uma dolorida fotografia de Itabira pendurada na parede (todo migrante “meio intelectual, meio de esquerda” é um itabirano metafórico). “Também é possível que, separado da vida rural por apenas uma geração, eu esteja embasbacado pelos adereços da civilização urbana”, diz AK ao leitor. Que “adereços da civilização urbana” são esses? Talvez as luzes que ofuscam as estrelas, o concreto, os trens velocíssimos que circulam debaixo do chão da metrópole. Ou talvez sejam o conjunto de novas experiências que se insinuam ao jovem migrante da periferia do capitalismo e o tentam — como o sexo e os livros.

"Os amantes" recorre o tempo todo ao sexo e aos livros (discussões teóricas, literárias e filosofantes) como metáforas para a imigração. A metáfora sexual está implícita no título e explícita na primeira frase do romance: “Eu era um imigrante recém-chegado, louco para brilhar e, caso a masturbação seja omitida da conta, puro de corpo e coração”. A experiência migratória de AK é indissociável de sua iniciação sexual. “Fazer a América” é quase sinônimo de transar com moças americanas. Mas não é aquela metáfora cafona do aventureiro viril d’além-mar a conquistar terras virgens. Aqui é o estrangeiro que é virgem e desajeitado e se deixa conquistar, deixa-se “civilizar” ao aprender os códigos sexuais pós-anos 60, impraticáveis nos campos de Bihar, onde os casamentos ainda eram arranjados. E, como nos ensinou o marxismo cultural de Herbert Marcuse, eros e civilização (ou cultura) andam de mãos dadas: “Meritíssimo, como é feroz o romance cujas labaredas são alimentadas por páginas arrancadas de livros de Bakhtin e outros estudos subalternos”, exclama AK sobre seu namoro com Nina, uma moça americana que ele conheceu na universidade. “Meritíssimo” é um juiz imaginário a quem AK se dirige às vezes, esforçando-se para convencê-lo da pureza de seu coração e impedir que ele o mande de volta para a Índia.

O romance “feroz” de AK com Nina era informado por suas leituras, como se ele aprendesse a amá-la (era amor?) lendo Bakhtin, teóricos franceses e filósofos do pós-colonialismo. Quando viaja com Nina no verão, AK conta ao leitor que “era preciso ter trazido um guia de viagem”, mas eles preferiram se concentrar em “selecionar os livros certos”. A vida amorosa de AK era mediada por suas leituras, ganhava sentido graças ao que ele aprendia nos livros. Sua experiência migratória também. “O que eu vinha aprendendo na América era novo e iluminador, mas só se tornava valioso quando se ligava ao meu passado”, confessa AK. Na América, ele leu a obra do intelectual palestino Edward Said, leu memórias de soldados indianos que defenderam o Império Britânico nas trincheiras e leu sobre os revolucionários que queriam estender a experiência maoísta chinesa à Índia. Essas leituras, novas e iluminadoras, valiosas, se ligavam a seu passado na periferia do capitalismo. Ajudavam-no a moldar sua experiência do exílio, a agarrar-se (a construir?) a uma identidade que tentava ser fiel a suas origens e não se diluir na liquidez cosmopolita.

Nos livros e nas aulas, AK adquiriu um vocabulário capaz de explicar o passado rural de sua família, a pobreza de seus parentes e vizinhos e seus “privilégios” de migrante intelectual, que não foi forçado a atravessar o mar pela fome ou pela guerra. O que eram vivências individuais, afetivas, transformaram-se, à luz da leitura, em experiências coletivas e políticas, inseridas e ordenadas na História. “Se quisesse, poderia ter usado talvez os termos que propagávamos nos nossos seminários, falando sobre as vidas frustradas ou as mortes desnecessárias de pessoas — por conta de sua classe social ou formação —, presas entre uma ordem feudal antiga e uma sociedade capitalista emergente”, pensa AK ao compartilhar causos familiares indianos com a namorada. As leituras politizam a experiência, fornecem ferramentas para uma melhor apreensão da realidade, mas sem empobrecê-la ou transformá-la em pura lógica fria e esquemática. Pelo contrário: ler ajuda AK a sentir. Ler não o afasta ou o protege da realidade, como insiste aquele velho clichê sobre os leitores, mas ajuda-o a viver, a enfrentar a dureza do real, a criar uma vida mais autêntica.

Num dos maravilhosos ensaios de "O último leitor", o escritor argentino Ricardo Piglia aponta para um outro leitor exilado que, como AK, organiza sua experiência a partir do ato de ler: Robinson Crusoé. Inglês e protestante, Crusoé naufraga perto de uma ilha nos trópicos, onde se dedica a ler a Bíblia com fervor calvinista. “A leitura da Bíblia tem, para ele, o sentido de uma explicação da experiência. De forma deliberada, o sentido é colocado no interior dessa leitura. “O que lê se dirige a ele, pessoalmente”, escreveu Piglia. O ato de ler permite a Robinson Crusoé e a AK ordenar suas vidas, circunscrevê-las numa narrativa maior. Para o náufrago protestante, essa narrativa é a história da redenção; para o jovem indiano, é a história de todos os itabiranos metafóricos espalhados pelo mundo. A leitura torna mais inteligível a experiência sem despi-la daquilo que é mais individual.

O ensaio em que Piglia menciona Robinson Crusoé se chama “O lampião de Anna Kariênina”, um referência à pequena lamparina usada por Anna para ler romances ingleses no trem de Moscou a São Petersburgo . O título lembra também um trecho bíblico que Crusoé decerto conhecia de cor: “Lâmpada para os meus pés é a tua palavra, e luz para o meu caminho” (Salmo 119, 105). Essa luz que emana de páginas sagradas e profanas não é como a luz cosmopolita que apaga as estrelas. É a luz que ajuda a ver melhor as formas da realidade, e torna valiosas as vivências de imigrantes lascivos, de náufragos acéticos, e de quem mais se deixar embasbacar pelos livros, esses espantosos “adereços da civilização urbana”.

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