Uma história de amor
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Susa Monteiro |
O meu pai passou boa parte dos últimos anos da sua vida às voltas com a árvore genealógica da família, juntando papéis de toda a ordem, fotografias, tralha variadíssima, esquemas cheios de setas, obsessivo como sempre, miudinho, numa busca feroz de exactidão, desejoso de saber quem era na altura em que ia deixar de ser. Havia na sua inquietude um desejo confuso de eternidade, como se as raízes pudessem impedir o arbusto de morrer. Deixou-me aquilo juntamente com uma página cheia de instruções, entreguei o material às minhas filhas, praticamente sem olhar salvo umas cartas enviadas da guerra da Crimeia, que pensei que talvez pudessem servir-me para um livro e não serviam, e nunca mais lhe pus a vista em cima. Para quê? Não era um cemitério de gente, era uma vala comum de almas opacas onde o meu nome bruxuleava aqui e ali, como tristes lampadazinhas de azeite nos nichos dos caminhos de província, diante de imagens de barro que iam perdendo a tinta no tempo sem fim dos invernos do Minho ou em terras alemãs e brasileiras, que nunca conheci e para quem eu seria, quando muito, o contorno pouco nítido de um futuro de que não faziam parte, demasiado ocupados, como estavam, com o nada da sua própria morte. Havia retratos de feições desconhecidas, alguns dos quais já era eu em esboços arcaicos, testas que se transformariam noutra testa, narizes que dariam lugar a outro nariz, às vezes olhos surpreendentemente claros como os meus, um cabelo loiro não inteiramente estranho, uma boca que saltou gerações até eu falar por ela, a orelha esquerda um bocadinho mais descolada, a curva estranhamente evasiva dos sobrolhos. Vim de perto de Braga, de Belém do Pará, da fronteira da Alemanha com a Suíça, de uma maternidade que já não existe em Lisboa, na qual quase me extingui ao nascer, mas vim sobremodo do ventre da minha mãe, tão distante de todos estes bigodes e de todas estas senhoras a maior parte delas feias que me observavam, como sempre nas fotografias, com uma distância severa. Não andei a disparar contra os franceses, nem a desmaiar de calor na Amazónia, nem a morrer à fome numa aldeia perto da Póvoa do Lanhoso. Da aldeia perto da Póvoa do Lanhoso ficou-me o Antunes, de Belém do Pará o Lobo, da Alemanha boa parte das feições: que estranha mistura de sangues, latino, judeu, teutónico, sem falar do árabe que a talassemia da minha mãe me legou, ou fenício, ou cartaginês, ou sei lá, perdido numa bruma confusa de gerações silenciosas, nos acasos de cruzamentos que desconheço, nos ziguezagues de um cursozinho de água que passou por Cabo Verde e por Lagos antes de desaguar no meu pequenino corpo, iniciado no Algarve e concluído com as primeiras lágrimas de Lisboa: de tanta coisa, meu Deus, é feito o pobre homem que uma criatura começou a restaurar no termo da sua vida, quando o filho já andava por aqui em busca de si mesmo no interior de um corpo a que chamava seu, porque, ao construir-se numa esperança de duração, o meu pai me entregou a minha própria finitude. E talvez fosse essa finitude que eu não quis levantar face à sua eternidade. Muito pouco tenho a ver com ele fisicamente, muito pouco tenho a ver com ele por dentro. Se calhar sou ainda mais seu filho por ser o seu oposto, se calhar estou tão longe que fiquei pertíssimo. Para o fim da vida estava sempre sentado no que tinha sido o meu quarto, com um poster da editora alemã na parede, encostado, de blusão aberto,
à Catedral de Colónia e uma fotografia num restaurante de Paris, entre Jorge Amado e Ernesto
Sábato, tirada por Tom Colchie, então agente de nós três. Nem um retrato de nenhum dos meus irmãos lá estava e lembro-me da minha mãe me dizer sempre
– Vai ter com o pai porque ele gosta tanto de falar contigo
quando, na realidade, falávamos quase nada, ele na cadeira onde o João estudava, eu de cócoras numa ponta da cama, a olhar. Uma tarde mostrou-me uma coisa que tinha escrito:
– O que é que achas disto?
respondi
– Acho uma merda
e ele guardou-a logo na gaveta
e gastou o resto do gesto a acender
o cachimbo, enquanto me fitava com as suas duas covinhas azuis,
a encher tudo de fumo.
– Uma merda
disse ele, depois silêncio e outra vez
– Uma merda
e depois um silêncio muito mais comprido.
Não esqueço a mão magra, não esqueço o peito magro, não esqueço o gesto com que apontou para mim
– Mas tu vais salvar-me com o que escreves
e palavra de honra que só agora, neste momento, compreendi que a árvore genealógica que lhe levou tanto tempo a fazer e quis deixar-me era
(sou uma besta e apetece-me bater em mim mesmo)
a carta de amor mais linda que recebi de alguém.
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