Já tinha chegado o ano de 1348 da fecunda encarnação do filho de Deus, quando a cidade de Florença, nobre, entre as mais famosas da Itália foi vítima da mortal epidemia. Fosse a peste obra de influências astrais ou a consequência das nossas iniquidades e que Deus , na sua cólera, a tivesse precipitado sobre os homens, como punição dos seus crimes , a verdade é que ela se havia declarado alguns anos antes nos países do Oriente, onde arrastara para a perda inúmeras vidas humanas. Depois prosseguindo a sua marcha sem se deter , propagou-se , para nosso mal, na direção do Ocidente. Todas as medidas sanitárias foram sem efeito. Por mais que os guardas especialmente encarregados disso limpassem a cidade dos montes de imundície, por mais que se proibisse a entrada a todos os doentes e se multiplicassem as prescrições de higiene, por mais que se recorresse às súplicas e às orações que se usam nas procissões e àquelas, de outro gênero de que os fiéis se desobrigam para com deus, nada deu resultado . Logo nos primeiros dias primaveris do ano a que me referi, o terrível flagelo começou, de maneira surpreendente, a manifestar as suas dolorosas devastações.
(...)A intensidade da epidemia aumentou pelo facto de os doentes contagiarem , no seu contacto diário, os indivíduos ainda sãos, tal como o fogo quando se aproxima de uma porção de matérias secas ou gordas. E o que ainda propagou mais o desastre foi não só o facto de a prática com os doentes comunicar o mal e dar a morte às pessoas sãs, mas o simples contacto com roupas ou o que quer que fosse que os pestíferos tivessem tocado ou manejado , pois através de tais objetos logo a peste se transmitia a quem deles se servisse.
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Edward Hopper
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(...) Esses acidentes e muitos outros do mesmo gênero, senão piores, fizeram nascer, naqueles que continuavam vivos , pânicos e obsessões de diferentes espécies, que em geral conduziam à mesma atitude cruel: fugia-se ao doente e a tudo o que o cercava. No pensamento íntimo de cada um, era este o meio de se conseguir a própria salvação. Alguns pensavam que uma vida sóbria e a abstenção de tudo o que fosse supérfluo se impunham para combater ataque tão terrível. Formavam pois a sua brigada e viviam afastados dos outros. Agrupados e reclusos em casas, onde não havia doentes e onde a vida era mais agradável, usando com a maior moderação comidas delicadas e vinhos requintados, fugindo a todo e qualquer deboche , não deixando ninguém falar-lhes, recusando-se a ouvir qualquer notícia vinda do exterior a respeito de mortes ou doenças , passavam o tempo a ouvir música ou entretidos com outros prazeres castos. Gente havia, porém, que se conduzia de modo bem diverso. Achavam esses que entregarem-se por completo às bebidas e à licenciosidade , andarem galhofando pela cidade, de canções nos lábios , satisfazerem as paixões na medida do possível , rindo e troçando dos mais tristes acontecimentos , era o mais seguro remédio contra um mar tão atroz.
(...)Ao lado dos indivíduos que praticavam os dois tipos de vida a que me referi, muitos havia que adotavam um meio termo. Menos preocupados do que os primeiros em se restringirem a comer pouco , nem por isso se abandonavam aos excessos de bebida e ao deboche dos segundos. Utilizavam tudo com conta , peso e medida e segundo as suas necessidades. Em vez de se fecharem dentro de casa, circulavam pelos arredores , tendo nas mãos umas vezes flores , outras ervas aromáticas, outras várias especiarias. Levavam-nas por vezes às narinas e consideravam excelente preservar o cérebro aspirando perfumes , porque a atmosfera parecia corrompida e envenenada pelo cheiro horrível dos cadáveres , dos doentes e dos medicamentos.
(...) Quaisquer que fossem os princípios seguidos , muitos eram atingidos , e em qualquer parte. Eles próprios , antes de caírem doentes , tinham dado o exemplo aos que continuavam sãos. Estavam pois abandonados e definhavam por todo o lado . Devo acrescentar que os cidadãos fugiam uns dos outros e que ninguém se preocupava com os vizinhos? As visitas entre parentes, quando aconteciam , eram raras e feitas de longe. O desastre pusera tanto terror no coração dos homens e das mulheres que o irmão abandonava o irmão, o tio o sobrinho, a irmã o irmão, muitas vezes mesmo a mulher e o marido. E até - o que é ainda mais forte e quase inacreditável - os pais e as mães evitavam ir ver e auxiliar os filhos , como se já não lhes pertencessem.
(...) Era uso - uso este que ainda persiste em nossos dias - que as senhoras , primas ou vizinhas de um morto, se reunissem em casa dele , a fim de juntar as suas lágrimas às dos parentes mais próximos.
(...)Os padres apareciam também, conforme a categoria social que o defunto tivera. Depois , as pessoas da mesma condição , carregavam o homem aos ombros e transportavam-no para a igreja que ele escolhera antes de morrer. Mas quando a epidemia começou a manifestar a sua violência, tais práticas cessaram totalmente ou em grande parte. Em seu lugar, estabeleceram-se outras. Muitas pessoas morriam sem ter à sua volta numerosa assistência feminina. Muitas morriam mesmo sem testemunha.
(...) Pegavam no caixão e transportavam -no rapidamente, não à igreja, que o defunto designara antes da morte, mas geralmente à que ficava mais perto. Quatro ou seis padres seguiam à frente , brandindo um magro luminar , que às vezes faltava por completo. Com o auxílio dos gatos-pingados , e sem dar ao trabalho de um ofício demasiado longo ou solene, punham o mais depressa possível o caixão na primeira sepultura vazia que encontravam.
(...)A crueldade do céu e talvez a dos homens , foi tão rigorosa, a epidemia grassou de Março a Julho com tanta violência , uma multidão de doentes foi tão mal socorrida , ou mesmo, em consequência do medo que inspirava às pessoas saudáveis , abandonada numa indigência tal , que se calcula com segurança em mais de cem mil o número de homens que perderam a vida dentro dos muros da cidade de Florença.
Giovanni Boccaccio, " Decameron"