A cidade toda sabia que o rio era uma dádiva. Tão ser, tão pedra, tão água. À margem o efêmero ante o eterno que passava. Pelas mãos do areeiro a argamassa das casas era feita de fibra específica: calo, suor e areia.
Boi São Bernardo
Foi vendido velho para cumprir seu destino de boi: pasta em conserva de lata. Mas nunca ficou longe de mim. Com seu mugido ausente ecoando no verde.
King
Acompanhou-me nas incríveis aventuras. Tinha o melhor salto, o melhor olfato, o melhor agrado. Tempos depois se tornou uivo em hino. Até hoje patas no meu peito me festejam.
O Aguadeiro
Quando chegava o aguadeiro, o pessoal lá de casa não sabia o que era melhor. Se a água fresca e boa que o jumento trazia nos pequenos barris ou a limpidez de sua voz, amiga, anunciando a manhã cristalina.
Ricardo Cejudo Nogales |
Não ficou fogo morto, nem sucata quando o trem deu o último apito. Permaneceu aquele percurso de vagões em trilhos festivos. Bandeirolas nas janelas interligando estações coloridas. Vales e morros, matas e roças, criaturas simples nos vilarejos e cidades pequenas repletas de surpresas generosas.
A Idade Pequena
Embora eu brincasse por todos os cantos da cidade, de maneira afoita e intensa, sujas não passavam minhas roupas pelas mãos da lavadeira. No sol das manhãs claras certamente havia um fragor de espumas. Certamente as horas com música sem a impressão das impurezas.
O Leiteiro
Ensinava o preto velho a leitura do leite. Do seu amor, sua paz; sua generosidade, sua alegria; de sua justiça, sua sabedoria; de seus sabores brancos e líquidos nunca me esqueço. De seu canto geral para matar todas as sedes no bebedouro da vida. Das manhãs sem mácula na cidade fresca.
O Areeiro
Quando homem passava com os jumentos carregados de latas de areia, cochichavam as casas que a areia sem a pá não seria dádiva e a pá sem a areia não seria inventiva. E tomavam contritas a sua bênção ao velho rio, ajoelhando suas fachadas.
Doceira
Velhas doceiras de minha cidade, cativando com açúcar. Minha mãe era uma delas. Em suas mãos de mel, até certo ponto divinas, lambuzando-me com sorrisos, as amargas nunca.
O Sábio
Um dia, o homem mais velho da cidade, beirando cem anos, disse-me: “Sábio é o que descobre a importância da vida nos seres e coisas comuns”. No rosto enrugado pelo tempo, com a voz serena, disse mais: “A inveja, o ódio, a mentira e a intriga são as bebidas preferidas dos que bebem os dias como cães. Roubam a beleza da vida. Buscam matar Deus”.
O Campeador
De verde gibão, cruz no chapéu, nas manhãs acesas pelo sol do verão, montado no meu burrico sempre vencia a solidão.
A Mãe
Sempre dizia, primeiro a obrigação, depois a diversão. Em tua partida, não regresso, não ouvi mais aquela voz suave, que me abrigava da chuva cortada por relâmpagos e trovoadas. Até hoje continuei apalpando-me nessa viagem pelo chão de forasteiro.
A Chuva
A chuva agora, em meu tempo adulto, quando escorre nas telhas já não conta uma boa história, não me traz o sono com o sonho temperado de verdes e azuis, tomado emprestado à aventura da vida pelos campos de vento e flor.
Viver
É estar no que eu fui, no que sou e no que serei. É perder o presente em cada instante. Enquanto o tempo repete-se, não muda. Mudo eu, muda você, para isso fomos feitos, passamos, como esse vento que aqui apareceu e sumiu num instante. É isso mesmo, vê nascer, vê morrer, nada se pode fazer. Ai de mim. E Deus? Deus é.
O Velho Rio
E dizer que este rio, antes de ser um esgoto a céu aberto, ofereceu água de beber das suas fontes límpidas à cidade quando não tinha um sistema de abastecimento como hoje. Havia peixe em abundância. Gente simples que coloria o visual com cantigas de amor no esforço dos dias. A lavadeira, o tirador de areia, o pescador, o aguadeiro. Os meninos faziam dos barrancos trampolins improvisados. Por que desceram todos eles na canoa rumo ao mar de Ilhéus e nunca mais retornaram? Cachoeira o teu nome, do rio morto de sede, que chora água.
Amada
Bastou encontrar-te para tornar-me campeador no campo dos dilemas. Sem temer os que não querem aceitar um homem desse feito, inventor de ingenuidades. Que nada ambiciona, um pobre homem, do mundo só deseja o belo.
Cyro de Mattos
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