Ouvi um toc‑toc‑toc, virei de lado, tentava pegar no sono, calor e pernilongos, ouvi de novo o toc‑toc‑toc, levantei, escancarei a janela e me deparei com meu irmão montado em sua Göricke preta com frisos dourados, segundo andar do prédio do conjunto habitacional onde morava, perguntando, daquele jeito bonachoso, Vai me deixar muito tempo aqui fora ainda, Tiquim? Ele pousou dentro do quarto sem dificuldade, abriu o descanso, estacionou a bicicleta num canto, E aí, como vão as coisas? Foi quando notei que eu estava bem mais velho que ele, ele havia morrido com vinte e dois anos, um negócio esquisito, chegou da fábrica, trabalhava de tecelão na Irmãos Prata, falou que não estava sentindo bem, se jogou na cama de roupa e tudo, a mãe ainda perguntou se queria tomar um chá de boldo, disse que não, queria apenas dormir um pouco, deitou, dormiu, não acordou mais, e fiquei com a sensação de que uma manhã eu ia despertar e lá estaria ele na cozinha tomando café, enfiado no macacão fedendo a graxa, pronto pra ir pra fábrica, mas os anos passaram, ele não levantou mais. E agora reaparece, como não tivessem decorrido trinta anos, a cara ainda com marcas de espinhas, o cabelo emplastrado de vaselina, E aí, como vão as coisas? Intrigado, perguntei como me havia achado em São Paulo, tão grande, ele riu, disse que tinha demorado um tanto pra me encontrar, mas que precisava saber notícias, afinal desde que saí de Cataguases nunca mais ninguém escutou falar de mim. Respondi que vivia preso na labuta, sabe como é, mas na verdade havia jurado só voltar quando tivesse juntado dinheiro suficiente pra deixar todo mundo com inveja, o que nunca aconteceu. Ele olhou pra um lado e outro, mexeu no guarda‑roupa, vasculhou debaixo da cama, abriu a gaveta da mesinha, Você não está muito melhor do que quando a gente morava em Cataguases, falou, e começou a criticar, Se a mãe visse você assim, nessa dificuldade, ia ficar muito triste, Criar um filho pra isso!, posso até ouvir ela choramingando. Pra não aborrecer ainda mais, mudei de assunto, perguntei se via muito ela lá onde estavam, e fiquei com medo de perguntar onde estavam, ele respondeu, Rapaz, é uma felicidade aquilo, eu, o pai, a mãe, a vovó, o vovô, e desfilou um monte de nomes de parentes, vizinhos, colegas e amigos, nem sabia tanta gente assim, e disse que onde estavam era sempre uma festa, Depois que a gente morre junta todo mundo de novo, e fiquei com vontade de morrer também, pra encontrar com minha mãe, meu pai, sentia tanta falta deles!, e quis saber o que ficavam fazendo lá, e ele explicou que onde estavam viviam em comunidade, todos se conheciam, o dia inteiro à toa, a mãe cozinhava, comida não faltava, e o pai andava pra cima pra baixo, vestido dentro do terno dele, chapéu na cabeça, pregando, que desde que virou crente tinha aquela mania de pregar, o dia inteiro só falava em Bíblia, e na hora do almoço sentavam todos juntos numa mesa enorme, depois descansavam, porque fazia calor lá tanto quanto em Cataguases, e eu desconfiei então onde eles estavam, mas a minha mãe, será?, e ele, meu irmão, num dia saía cedo de casa e ia pescar no rio, que era igual ao rio Pomba, mas limpo, A gente vê os peixes chegando e mordendo a isca, e quando é pequeno demais a gente espanta ele, chipe, chipe, só aproveitamos os grandes, e noutro saía pro brejo pra caçar rã de noite, junto com o Chiquim Rãzinha, Lembra dele?, Ele morreu?, perguntei espantado, Morreu, ele disse, tem uns anos já, atropelado, fiquei pasmo, o Chiquim era da minha idade, tinha ido pro Rio de Janeiro trabalhar num banco, gostava muito dele, Quando voltar, dá um abraço nele, diz que mandei lembranças, puxa vida, que pena, Pena nada, meu irmão falou, ele está feliz agora, passa o dia inteiro à toa, inventando armadilhas pra pegar rã, e o bom é que tomou gosto por bola, Mas ele nem gostava de futebol, falei, Pra você ver, agora é viciado em pelada, não joga grandes coisas não, mas é titular do nosso time, Como chama o time, perguntei, Amor e Cana, respondeu, Opa!, e pode beber lá?, e ele, gargalhando, Claro, você bebe e bebe e bebe, fica de fogo, mas no dia seguinte acorda bonzinho, não tem ressaca não, é uma maravilha, e eu sentia cada vez mais aumentar minha vontade de morrer, E a mãe, está bem?, Está ótima!, continua naquela lida de lavar roupa pra fora, Não parou não?, Parou nada, se parar, ela morre, e riu da própria piada, Se parar, ela morre, repetiu. A madrugada ia alta, conversávamos baixo pra não incomodar os vizinhos, ele falava da beleza que era a morte, e eu pensando no meu rol de contrariedades, sozinho, sem dinheiro, largado pela mulher, desprezado pelos filhos, e ele se gabando de que não precisava importar com nada, vivendo alegre ladeado pelos amigos, até que tocou no assunto que verdadeiramente tinha levado ele ali, minha família era assim, rodeava, rodeava, rodeava, até laçar o sujeito, parecia uma coisa de gato brincando com rato, deixava fugir e pegava de novo, deixava fugir e pegava de novo, até cansar e dar o bote final, tchum! No caso, o que tinha levado ele ali, a mando da minha mãe, e do meu pai também, com certeza, porque em algumas coisas eles uniam, era meu estado de abandono. Aí fiquei bravo, falei, alterando a voz, Nem depois de mortos vocês deixam de meter na minha vida, e ele ficou bravo também, disse, Olha como você fala comigo!, e eu, Por quê?, Porque sou mais velho que você, você tem que obedecer, aí ri, falei, Vê se se enxerga! Eu sou mais velho que você agora, você é que tem que obedecer, e então notei que ele ficou confuso, tive pena, não queria brigar com meu irmão, gostava dele, devia muita coisa a ele, ele sempre tinha me protegido, nas brigas na rua, nas vezes que fazia alguma burrada em casa, então falei, Deixa disso, somos sangue do mesmo sangue, e dei a mão pra ele e ele apertou e a gente se abraçou. Então me contou que a mãe e o pai estavam muito preocupados comigo, porque me viam angustiado, batendo cabeça, e perguntavam se não era melhor eu voltar pro lugar de onde vim, afinal não viam vantagem nenhuma estar ali, daquele jeito, como fosse pagão, dali a pouco meu tempo esgotava, e se eu morresse naquela lonjura talvez não conseguisse juntar com eles, É uma bagunça danada na hora que a gente morre, explicou, Parece uma rodoviária lotada em véspera de feriado, se você de repente se perde, pode não encontrar a gente nunca jamais, e essa era a grande aflição da mãe, embora o pai discordasse dizendo que eu não era bobo, tinha até tirado diploma de contador, e gostei da defesa que meu pai fez de mim, mas pensei também que talvez por minha causa ele e a mãe deviam até ter brigado, porque eles eram assim, quando começavam uma discussão levavam até o fim, e o fim era quando meu pai desistia, ia pra rua batendo o pé, e minha mãe gritava, Não falei?, quem cala, consente!, e ele, derrotado, saía cantarolando hinos da Igreja e mastigando a dentadura, porque quando ficava nervoso tinha essa mania de mastigar a dentadura, e falei pro meu irmão que não precisava incomodar não, porque estava tudo bem, passava por um momento complicado mas logo logo tudo se ajeitava, mas no fundo a verdade é que, mesmo que quisesse, não tinha pra onde ir, estavam todos mortos, meu caminho era sem volta, condenado para sempre à solidão e à amargura, mas não quis demonstrar isso pra ele não ficar desgostoso, ele não merecia, parecia tão contente, e notei que a manhã vinha querendo nascer, o firmamento já tinha uma barra avermelhada, meu irmão falou, Bom, Tiquim, acho que já vou indo, é uma grande viagem de volta, pegou a bicicleta, recolheu o descanso, abraçamos novamente, e ele saiu janela afora. Aparece de vez em quando, ainda falei, mas acho que ele não chegou a ouvir.
Nenhum comentário:
Postar um comentário