sábado, agosto 1

O sul da vida

A terra quente cheira às figueiras que vão tombando os ramos para a estrada, uma fita de asfalto que se estica para longe, pontilhada aqui e ali pela cal de pequenos povoados. Tudo parece abafado por uma campânula de silêncio que as cigarras raspam, raspam, raspam. Há também, horizontal, a indolência lodosa da Ria, a que quase se cola a outra, mais horizontal ainda, do mar. O céu é uma calma monotonia azul-bebé. São quase cinco da tarde, a vila está deserta. Ninguém na esplanada do Sumol nem na dos Cuernitos Bimbo, ninguém nos lounges do brunch orgânico, ninguém nas lojas de souvenires a 2 euros, ninguém nos restaurantes das vistas panorâmicas, as ruas vazias. O sol amareleceu as letras por baixo dos arco-íris afixados nalgumas montras das lojas, Vai ficar tudo bem.


Um acaso qualquer – já não sei qual – trouxe-me pela primeira vez a Santa Luzia no verão de 2000, esse marco longínquo da minha adolescência, Que idade terei no ano 2000?, as contas teimavam sempre na mesma resposta: trinta e seis anos, Ui, que velha. A contrapartida da velhice consistiria em estar perto de atingir ou ter já atingido os destinos para que pais e escola me empurravam, um bom emprego, um marido atencioso e bem-sucedido, filhos bonitos e espertos, uma vivenda num bairro chique,… no ano 2000 eu seria velha, mas teria uma vida muito melhor do que a dos meus pais, só era preciso que o tempo passasse, talvez não viessem a existir os robôs e o teletransporte, mas ainda assim, ala, futuro, que aí ia eu. Nessa altura, a passagem do tempo engonhava tanto, o que era compreensível, a construção de um futuro confortável tinha de ser morosa. Só que, de repente, o tempo resolveu desembestar e num abrir e fechar de olhos eu estava às portas do novo milénio, ali estava ele, na vida e não no calendário, anunciado com fogos de artifício na agência de viagens da Avenida de Roma, só precisava de escolher se o festejava com champanhe em Paris junto da Tour Eiffel ou em Nova Iorque na Times Square. Não fiz nem uma coisa nem outra. O novo milénio chegava e afinal eu não era assim tão velha ou não me via assim tão velha. Por outro lado, também acumulara mais fracassos do que sucessos: desalentara-me da advocacia, fora preterida nos concursos para técnica superior de primeira na Função Pública, não pudera acompanhar as minhas amigas na compra dos T4 nos subúrbios perto da A5 quanto mais na segunda casa na Aroeira, falhara a maternidade, a grande festa da Expo e a inauguração do Lux, as discussões éticas sobre a clonagem da ovelha Dolly, a organização familiar das ceias de natal, as manifestações para a independência de Timor Leste, as férias em Cuba, o peso ideal, em suma, dessintonizara-me dos que me rodeavam. Mas nesse verão passei uma quinzena em Santa Luzia numa casa alugada, um quarto, uma sala, um pátio e uma açoteia em frente à Ria. Fui tão feliz a nadar na praia da Terra Estreita e a tomar banho de mangueira no pátio, que a memória desse agosto é um dos bens mais preciosos que possuo. Quando regressei a Lisboa anunciei, pomposa, Quero envelhecer a sul. Não, eu não era velha. No ano seguinte o meu pai morreu, os aviões incendiaram-se contra as torres, publiquei o meu primeiro romance, o Clude nasceu e continuei a perder antigas certezas, substituindo-as por renovadas vontades.

A piscina do aldeamento onde agora me hospedo está também quase sem ninguém. Em forma de um infinito torto, é rodeada por um relvado onde, na parte mais estreita, um trio de palmeiras da Califórnia se abismam para o céu. Para além de mim, do Pedro e do pequeno Tomás, só um casal a fazer paciências nas espreguiçadeiras. Quando entram na água, começam a conversar comigo. Apesar de morarem cá há muitos anos, não sabem falar português, Não precisamos, explica a mulher, os portugueses entendem-nos. Dirão várias vezes, Os portugueses isto, os portugueses aquilo, e vou avaliando mentalmente se me encaixo nas diversas características que nos apontam. Expressando-se num inglês perfeito, esclarecem que são holandeses, Aqui é tudo muito barato e o clima, meu deus, o mar, o marisco, a paisagem. Também têm queixas, a desorganização dos serviços, a burocracia, a falta de civismo na estrada, a pouca oferta de produtos biológicos. Apesar disso, não têm saudades da Holanda. Dizem saudades em português com um sotaque engraçado. Estávamo-nos a despedir, quando a mulher comenta, No ano passado, por esta altura, havia umas quarenta pessoas aqui na piscina, este ano está uma maravilha. Respondo que isto assim não pode durar. Ela concorda, Vão acabar por descobrir uma vacina e volta tudo ao mesmo. Não era isso que eu queria dizer, mas o casal já se afastava em direção às suas espreguiçadeiras.

Ao fim da tarde, na ida ao supermercado, levo a máscara presa ao pulso pelos elásticos, Pensava que já tinha visto tudo, diz uma velha sentada à frente da loja que vende golfinhos e crocodilos insufláveis, Como é que ia imaginar que pudesse não haver verão?, mais à frente, Oh amigo isto sem turistas não dá para nada, confessa o dono do restaurante a um cliente que está à espera do pedido takeaway de frango e batatas fritas, O dali da frente já fechou de vez, se perco o negócio perco a minha vida. Tem a pele maltratada pelo sol e as mãos calejadas. As suas palavras desfazem-se nas voltas gritadas das andorinhas. Daqui a nada o sol põe-se, a rebentar de vermelho, mas até lá vai embaralhando o horizonte de rosas, amarelos e lilases.

Ainda aqui não estou, no meu sul. Sei que este lamento se torna obsceno entre o lamento maior e coletivo em que agora vivemos, mas não consigo evitá-lo. É que vai sendo tarde, na minha vida.

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