(sempre gostei de o ver de bata)
e nós para o liceu ou para a escola porque os nossos pais tinham filhos com todas as idades, e tudo se passou como se nada se tivesse passado; uma das principais qualidades dele era um imenso pudor e uma imensa discrição em tudo, não fazia perguntas pessoais, não falava de coisas íntimas, quando estávamos doentes sentava-se numa das nossas camas e lia-nos em voz alta os poetas e os prosadores de que gostava, com a voz lindíssima que tinha, chamava-nos a atenção para a construção das frases, nunca havia frio ao pé da sua voz, às vezes encontrava-o na figueira do jardim a vasculhar as pobres produções que eu lá queimava, copiava algumas delas num caderno de capa verde e grossa que tinha no escritório, nunca me fez nenhum comentário mas recordo-me de o ouvir dizer à mãe, sem dar conta que eu andava por ali
– Não o podes tratar como os outros porque esse é diferente
e o respeito dele pelos artistas era infinito embora, claro, eu não fosse artista nenhum, mas sei que secretamente esperava sei lá o quê de mim
(ele esperava sei lá o quê, eu esperava imenso)
reparei que havia agora uma fotografia do avô na sua mesa de trabalho, junto ao microscópio e aos papéis, descobri numa gaveta da sua secretária as cartas que o meu avô lhe escrevera da guerra em França a tratá-lo por Janjão, só falei nisso à mesa uma vez, quando aproveitei um silêncio para dizer Janjão, os minúsculos olhos azuis do meu pai pareceram-me de repente turvos mas não disse nada e compreendi de repente, assustadíssimo, que ele continuava a ser o menino do pai dele, sem nunca o referir e, pela primeira e última vez, senti-o tão perto e tão pequeno. Não falou mas deu-me ideia que, juntamente com a garfada seguinte, engoliu uma espécie de lágrima em que ninguém reparou. Infelizmente nunca mais tornei a ver os óculos escuros porque me deu ideia que ele se achava necessitado deles. Quando houve o almoço dos cinquenta anos de casados dos meus pais disse-lhe
– Não o podes tratar como os outros porque esse é diferente
e o respeito dele pelos artistas era infinito embora, claro, eu não fosse artista nenhum, mas sei que secretamente esperava sei lá o quê de mim
(ele esperava sei lá o quê, eu esperava imenso)
reparei que havia agora uma fotografia do avô na sua mesa de trabalho, junto ao microscópio e aos papéis, descobri numa gaveta da sua secretária as cartas que o meu avô lhe escrevera da guerra em França a tratá-lo por Janjão, só falei nisso à mesa uma vez, quando aproveitei um silêncio para dizer Janjão, os minúsculos olhos azuis do meu pai pareceram-me de repente turvos mas não disse nada e compreendi de repente, assustadíssimo, que ele continuava a ser o menino do pai dele, sem nunca o referir e, pela primeira e última vez, senti-o tão perto e tão pequeno. Não falou mas deu-me ideia que, juntamente com a garfada seguinte, engoliu uma espécie de lágrima em que ninguém reparou. Infelizmente nunca mais tornei a ver os óculos escuros porque me deu ideia que ele se achava necessitado deles. Quando houve o almoço dos cinquenta anos de casados dos meus pais disse-lhe
– Gosto muito de si paizinho
e ele respondeu
– Eu também gosto muito de ti filhinho
e foi a conversa mais comprida que tivemos. Que pena não haver por aí uma peça de Bach agora.
António Lobo Antunes, Visão 20/12/2018
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