quinta-feira, agosto 27

Quem era o homem feio dos sonhos

Ela já estava chegando aos 31 anos e, desde o início da adolescência, quase todas as noites sonhava com um homem feio. Nunca era o mesmo homem, mas era sempre um homem feio, muito feio, alguém que ela havia visto naquele dia em algum lugar. Nos sonhos, o homem nunca falava. Olhava para ela, aproximava-se, cada passo durando uma eternidade, e quando chegava perto, muito perto, parava e ficava mais uma eternidade olhando para ela, só olhando. Quando esses sonhos se desfaziam, ela permanecia de olhos abertos, fitando o escuro, mas sem medo. Era sempre uma decepção o desfecho. Preferiria que o homem a atacasse, a xingasse, a aterrorizasse. O que não aguentava era aquele silêncio, aquela omissão, aquela indiferença pior do que um insulto. O que ele queria, afinal, com ela? Por que aparecia assim nas suas noites, nas suas madrugadas e até, às vezes, quando o sol e os primeiros ruídos da manhã já se elevavam?

Jacques Chapiro


O sonho era sempre aquele: um homem muito feio, que andava na sua direção e parava de repente, como se descobrisse que tinha se enganado. Os amigos, ao interpretar o sonho, resvalavam para a comédia e até para a galhofa. Um viu no homem o Diabo, outro adivinhou nele um príncipe que se revelaria em toda sua formosura se fosse beijado ou tocado com carinho. Mas, quando ela estava com 15 anos, uma amiga sugeriu que o visitante noturno poderia ser a Morte. Por muito tempo, talvez pelo nome de vidente da amiga (Zora), ela achou lógica essa hipótese, mas agora, com quase 31 anos, não acreditava numa Morte que tivesse a pachorra de se anunciar com tanta antecedência e empenho.

Aos 21 anos, tinha ido morar com um homem tão belo que, quando saía com ele, ela sentia dores no pescoço, enjoo, comichões: era a inveja feroz das outras mulheres. Viveu com esse homem um ano e meio e não sonhou com ele uma noite sequer. Continuava a sonhar com desconhecidos: alguém que tivesse visto no escritório dele, no elevador, no restaurante onde jantavam. Sempre alguém feio – não horrendo, não assustador, mas muito feio. Não podia dizer que eram pesadelos, porque o homem dos sonhos se mantinha calado e a uma distância mais que respeitosa. Mas isso ainda a perturbava: o que, afinal, ele queria com ela?

Com 28 anos, havia morado com um homem de 21, inacreditavelmente mais belo que o anterior, e nem nos seis meses em que viveu com ele, nem depois, quando se separaram, sonhou com ele. Assim que completou 30 anos, começou a sonhar com um homem que era tão feio quanto os outros, mas tinha algo que ela, se fosse definir, diria que era charme. Isso a inquietou profundamente, e também o fato de que nunca, antes, havia sonhado mais de uma vez com o mesmo rosto. E, agora, sonhava com esse até três vezes por noite. E ele, ao contrário dos outros, falava, embora só uma palavra: o nome dela.

Num fim de tarde, voltando para casa, ao descer do metrô, ela viu o homem. Ele se aproximou, chamou-a pelo nome e a conduziu suavemente por uma dezena de ruas que ela conhecia mas que pareciam diferentes, como se ela estivesse num sonho. “Fazia muito tempo que eu queria falar com você. Vamos, minha casa é logo ali”, disse o homem. Ela foi. A casa parecia simples, mas ao entrar ela se viu numa sala descomunal. Na parede, havia uma tela muito grande, na qual o homem aparecia sorrindo ao lado de gente que ela não conhecia, e também de pessoas célebres, algumas de fama recente, outras de meio século antes, de um século, de um milênio atrás. Ela quis perguntar como aquilo era possível, mas ele já a tinha levado para a cozinha. Quando viu a faca na mão dele, soube que a amiga Zora tinha razão.
Raul Drewnick

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