quarta-feira, agosto 26

‘Viagem ao redor do meu quarto' mostra como burlar o tédio da quarentena

Desde o início da quarentena, muitos aproveitaram a reclusão forçada para experimentar novidades. Há quem tenha começado a fazer ioga, quem leu as 1.200 páginas de “Guerra e Paz”, quem aprendeu a fazer o próprio pão, quem recuperou projetos pessoais abandonados. A ideia de driblar a paralisia do confinamento não é nova, claro. E tem, em um livro curto de 1794, uma de suas referências mais famosas. Clássico incontornável do isolamento, o relato de “Viagem ao redor do meu quarto”, do conde e militar francês Xavier de Maistre, atravessou mais de dois séculos e inúmeras epidemias, e acaba de ganhar por aqui, em momento oportuno, uma nova tradução, pela Editora 34.


A obra nasceu quando seu autor foi condenado a 42 dias de detenção por ter duelado com outro oficial. No quarto em Turim, onde ficou preso, Maistre encontrou a maneira de driblar o tédio. Criou uma bem-humorada viagem pelo “encantador país da imaginação”, transformando o seu aposento em um espaço de reflexão sobre si mesmo — e sobre o mundo que o espera lá fora.

Best-seller já em seu tempo, o livro voltou com força total na pandemia. Entre março e abril, a versão digital da primeira edição francesa, disponível no site da Bibliothèque Nationale de France, foi acessada 6700 vezes. Chegou a ser um dos 200 documentos (entre 6 milhões) mais procurados do site.

— O livro é um sucesso porque pega uma situação que deveria ser ruim e a transforma em algo positivo — diz o editor Samuel Titan Jr, da 34. — Influenciado pela experiência da pandemia, o leitor de 2020 espera um relato soturno, mas o que acaba vindo é leve e para cima. O que autor diz é: nada pode me prender, porque o espírito é livre. Funciona como um convite ao leitor.

“O prazer que há em viajar dentro do próprio quarto está a salvo do ciúme inquieto dos homens; ele tampouco não está ao sabor da fortuna”

“Viagem ao redor do meu quarto” desmonta com graça os clichês dos livros do gênero: em vez de sermos apresentados a cidades imponentes ou bela paisagens, nos deparamos com descrições dos móveis que cercam o autor. Maistre dá uma dimensão filosófica aos objetos mais triviais. Celebra sua poltrona (“da mais alta utilidade para todo homem meditativo”), o espelho (“proporciona ao viajante sedentário mil reflexões interessantes”) e discorre sobre os benefícios de uma boa cama (“nesse móvel delicioso que olvidamos, durante metade da vida, os dissabores da outra”). Descreve a história por trás das gravuras nas paredes e, como um bom booktuber, comenta os títulos da sua biblioteca.

E vai além. Nos 42 capítulos (um para cada dia de detenção), o narrador se entrega a reminiscências, imagina diálogos entre pensadores clássicos, lembra amizades perdidas, aprende “lições de filosofia e de humanidade” com o criado e com o seu cão, e disserta sobre pintura e música.

Maistre percorre seu quarto experimentando todas as linhas possíveis da geometria (ziguezague, diagonal, comprimento), sem seguir regra nem método. E assim avança na narração extravagante, que vai e volta no tempo, faz pausas inesperadas e provoca o leitor a sair da sua zona de conforto (“seguir no encalço das ideias, como o caçador persegue a caça, sem pensar em manter qualquer rota”, escreve).

Até pela estrutura em capítulos curtos, lembra muito “Memórias póstumas de Brás Cubas”. O que não é um acaso: Machado de Assis assumiu sua dívida com o autor francês em mais de uma ocasião.

— Há saltos com ironia fina de um assunto a outro, e acho que tudo isso, narrado com elegância e concisão, fascinou o Bruxo — observa o escritor Milton Hatoum sobre o “livrinho precioso”, que começou a reler na nova tradução. — É uma narrativa sobre uma viagem interior, que ecoa com força nesse tempo de reclusão e impasse. É também uma busca metafísica: “ensinar a alma a viajar sozinha”. Mas nesse mundo imaginário a vida enclausurada chama à realidade (do cárcere, dos “pobres da cidade, de seus gritos dignos de compaixão e da indiferença de certas pessoas à sua condição”). 

A obra pode servir quase como um manual para o momento difícil que atravessamos. O esforço para reeditá-la ainda este ano, aliás, ajudou os envolvidos a ocupar a cabeça durante a quarentena. Uma triangulação por três países se formou via trabalho remoto, com a tradutora Veresa Moraes em Rennes (França), a preparadora Rafaela Biff Cera em Montreal (Canadá) e a equipe da 34 em São Paulo. O posfácio é do autor espanhol Enrique Vila-Matas.

— O Maistre burlou o confinamento dele com o livro, nós burlamos o nosso fazendo essa nova edição — resume Titan Jr.
Bolívar Torres

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