segunda-feira, agosto 17

O pior cego é o que não quer ler

Como era previsível, cada português tem inventado o verão à sua maneira. Habituados ao desenrascanço ancestral, caminhamos de sandálias como que entre os raios do sol, buscando soluções engenhosas para não abdicar, nem das férias, indispensáveis, nem da segurança, obrigatória. O equilíbrio perante um quadro tão apertado é dificílimo, mas é possível, e o cidadão luso é especialista na arte do contorcionismo. Ao mesmo tempo tem graça. Em cada semaninha de estio há um jogo de tabuleiro, em cada praia um sudoku onde tentamos sentar-nos em quadradinhos, a nós e às nossas famílias, seguindo as regras. O verão de 2020 é um puzzle. No plano cultural, há quem acredite que a Covid veio despertar instintos positivos nas pessoas, entre os quais a valorização da informação, da leitura e do conhecimento. Durante a quarentena, a Internet encheu-se de sugestões de livros, listas bibliográficas, pessoas sem hábitos de leitura a irem às estantes, pais a lerem histórias aos filhos, jovens a lançar-se à odisseia de ler a Odisseia. Foi a melhor moda de sempre, apesar de fugaz. Num país onde, por motivos históricos, o povo praticamente não lê, poderemos sonhar com a ideia de que, este ano, já há quem leve o livrinho para a praia pela primeira vez?


Seria fantástico e um grande passo. Se as pessoas leem pouco em Portugal, a História explica-nos porquê. Curiosamente, o destino até quis que a exaltação online do consumo cultural acontecesse em abril, isto é, no mês que nos trouxe a liberdade e a literacia. Há 46 anos, Portugal distinguia-se no quadro da Europa pelos piores motivos: uma taxa de analfabetismo ao nível do terceiro mundo, um grau de escolaridade muito abaixo da média – tendência que, infelizmente, se mantém até hoje – e uma fraca ou nula sensibilização generalizada para o valor da cultura, das artes e do conhecimento.

Em 1974, vir de um país da Europa Ocidental para Portugal era viajar no tempo e encontrar, por entre as espigas de trigo deste país, uma sociedade cristalizada a pão e vinho, um modo de vida arcaico e uma economia quase feudal. Tirando uma escassa elite intelectual, ou alinhada com o regime, ou desalinhada e então obrigada a esconder-se, tirando a resistência subterrânea que acendia velas no escuro, Portugal vivia nas trevas, alheio a uma Europa que já desde o pós-guerra, ou seja, trinta anos antes, criara estratégias para a Cultura e Educação. Por cá, a lógica era outra. Era mais na senda do “vai trabalhar, malandro”. O povo bondoso, inocente e trabalhador, todavia paupérrimo, oprimido e analfabeto, vivia para trabalhar, sorrindo sem dentes – e quem duvidar disto faça favor de se informar. Os números estão acessíveis a todos.

Com a passagem para a democracia, a Constituição de 1976 consagrou, por fim, os valores fundamentais do Estado Social europeu, com uma estratégia prioritária e intensiva de escolarização para o país. Aqui, para além do investimento público, foi graças ao envolvimento massivo da sociedade civil, dos movimentos, partidos, associações, colectividades e, em última instância, dos próprios indivíduos que abraçaram esta missão. Nesta embarcação, milhares de heróis anónimos – hoje bisavós, avós e pais – remaram dia e noite para que hoje, com todos os problemas que persistem, o país apanhasse o comboio da Europa. É essencial que isto esteja claro. Portugal continua abaixo da média em vários indicadores, em especial no domínio cultural, os hábitos de leitura, por exemplo, mas não há dúvida de que saltámos da Idade Média para o século XXI em 40 anos. É notável. Todavia, é necessário continuar este trabalho.

A propósito da leitura. Quem não lê bons livros não tem vantagem nenhuma sobre quem não sabe ler, escreveu Mark Twain. A ideia é mais literária do que literal, claro. A literacia é necessária às vivências básicas do quotidiano, receber informações, interpretar cartas e mensagens. Ao mesmo tempo, há verdade nesta frase. Quem não lê por puro prazer ou curiosidade, por paixão e interesse no universo, por amor próprio e autocultivo, não retira da leitura a sua principal vantagem: a elevação do espírito. Ler é apaixonarmo-nos por ideias e imagens que não são nossas, mas passam a ser, elevando-nos em relação ao que éramos. Nesse sentido, é facto que se saber ler nos serve apenas para receber informações práticas – o preço da dourada, o rodapé do telejornal, a carta das finanças ou o resultado do dérbi -, não estamos muito longe de um analfabeto. Somos analfabetos que sabem ler.

No mundo contemporâneo, onde a informação jorra em correntes alucinadas, bombardeando-nos em todas as frentes com anúncios, notificações e mensagens vibratórias, abrir um livro, ler um artigo ou um ensaio é um refúgio e uma rara oportunidade para pensar com clareza. Ler é um abrigo para imaginar com clareza. Ao contrário das televisões, dos computadores e dos telemóveis, cujo conteúdo é tantas vezes estupidificante, o livro corre ao nosso ritmo, adaptando-se à nossa velocidade e ao nosso ânimo. O livro respeita-nos a esse ponto. Um livro respeita-nos a ponto de não nos atazanar com sons e imagens berrantes, lançando apenas pistas para que os criemos nós próprios, no nosso imaginário, fertilizando-o. Um livro é um oásis no meio do ruído, é um antibiótico que ninguém usa. Seria extraordinário que a pandemia obtusa nos empurrasse a todos para o colo de um livro.

Uma sociedade que não lê, não evolui. É, ainda assim, de assinalar uma evolução positiva em Portugal. Os estudos apontam para alguma melhoria, em grande parte graças a políticas educativas e culturais bem sucedidas. Aqui, não se trata de pedir a cada cidadão que se passeie em Monte Gordo com a Eneida debaixo do braço. Exige-se, antes, que um país civilizado, onde se promove o pensamento, a consciência e a crítica, se eleve dando uso ao que tanto custou a construir.

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