domingo, agosto 2

A cidade e o coronavírus

Quando a cidade comemora outro ano de emancipação política, falam do progresso e vocação de seu povo para o trabalho. A cidade vive o clima de festa e desperta muito cedo com a descarga de foguetes que crepitam no céu. Os moradores sabem que a cidade é antes de tudo raiz que se aninha no peito e seiva que escorre no esforço dos dias.


É trama com ânsia e sonho. Acontece nas mãos generosas do padeiro, no feijão preparado pela cozinheira, que o ano todo tem calo e calor nas mãos. Na colher do pedreiro. No sermão do padre, na filarmônica tocando na praça, convidando o povo para voar na valsa. Na cuia do cego, na cartilha da professora. Na bola do menino que quebrou a vidraça do vizinho. Com os namorados que passeiam de mãos dadas no jardim. Na rua, na loja, no armazém, no banco, a cidade com o seu modo de estipular o mundo.

Na guerra da palavra em tempo de eleições quando a vitória é uma questão de vida ou morte. No jornal televisivo que dá a notícia boa ou má, sempre veloz, indo de canto a canto. Nos dias de hoje, desse terrível coronavírus e de um governo executivo que se nutre de ódio com um presidente incendiário, certamente a notícia fere e deixa o brasileiro atônito.

Com sangue nas veias que sangram todos os dias, a cidade anda às vezes triste, os pés descalços, adormece embaixo de marquises. Atropela na dura lei da vida, converte-se em tempo de violência e miséria, que cada vez mais assusta.

Com vários jornais, emissoras de rádio, canais de televisão, colégios, hospitais, ruas e avenidas asfaltadas, universidade como brasa verdejante em seu novo dizer da lavra, a cidade vive agora a época da automação, da moderna sociedade de massas. Sabe que hoje o mundo é uma aldeia global, não podendo desviar-se dessa sintonia. Mas na cidade ainda encontramos a maneira sensível de alguns conceberem a vida com a razão e a emoção na mais completa leitura do mundo através da arte da palavra. Existem aqueles que lambem as palavras e se alucinam. Falam de coisas agudas. Tentam com a palavra permanecer na vida, negando a morte.

Mas ninguém imaginaria que a cidade fosse interrompida no seu fluxo de vida com essa guerra do coronavírus. Agora todos andam de máscara quando uma necessidade impõe que vá comprar algum remédio na farmácia. Em nossas casas vivemos recolhidos na quarentena. A notícia na televisão informa os estragos que o coronavírus vem fazendo aos frágeis seres humanos. A cidade está vazia. Vivemos um clima de filme de ficção científica. De pesadelo e desalento. As ruas desertas. Impiedoso, sorrateiro, veloz, o coronavírus ataca todo o planeta e não se satisfaz com as vítimas que mata a todo instante.

Mas venceremos essa impiedosa guerra bacteriana, esperando-se que no próximo ano estejamos comemorando o dia de aniversário da cidade com abraços, euforia de risos no rosto aberto de contente, sem faltar as badaladas do sino na catedral de São José, o padroeiro da cidade, e a descarga de foguetes no céu.
Cyro de Mattos

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