quinta-feira, agosto 6

Xôôô

Quantos anos disse que tem? – Cinqüenta. – Mentira. – ... e cinco. – Muitos, para ser espantalho. – Mas é o que tenho sido. – Dá para correr? – Quanto for preciso. – Sabe atirar pedras? – Em três acerto duas. – Uhnn ... sei lá! Empregar um velho nesse serviço. – Pois faça condições. – Bem, o arrozal deve dar trinta sacos. O que faltar, desconto no seu ganho. Espantalho paga pelo que não espanta. Topa? Topou. 

Naquele lugar, naquela idade, era só o que havia. Três horas no abrir do dia, três no fechar. Assim que a planta botou espiga, os pássaros chegaram. Cem, duzentos. Pousa aqui, foge ali, piando, bicando, trinando, comendo. Arruinando o arrozal. O velho, braços abertos de crucificado, corria para lá e para cá, apedrejava, gritava, forte, cavernoso:

– Xôôô.

No amornar da manhã, as aves se iam. O homem media os estragos, xingava, prometia fazer melhor. As mulheres que lavavam roupa na corredeira, comentaram: 

– Até espantalho de capim parece que descansa. Esse, não. Endoidou.


À tardinha, erguia-se, colérico, braços estendidos gritando a intimação:

Xôôô. Os pássaros vinham, como se convidados, vozeando, pipilando, trilando, subindo, baixando, comendo, bicando. Aves e espantalho disputavam espigas e grãos, até o anoitecer. As lavadeiras, oltando para casa, admiravam: 

– Nem se feito a propósito seria melhor espantalho.

Semanas, assim. O lavorista colheu a roça: 

– Só vinte e cinco sacos. Vou descontar o que os pássaros comeram. A paga recebida não dava para mais do que continuar espantalho. Por culpa dos pássaros. Permaneciam por ali, debicando o restolho. Na alegria da fartura, cantavam, triçavam, tagarelavam. Aos ouvidos do homem, aqueles sons eram caçoada. – Malditos. Correu, apedrejou. Não mais pelo ganho. Era como dizia que não desistira, continuava espantalho. O patrão viu, gostou, propôs: 

– Quer continuar? Vá para o meu alfaçal. Deve dar mil pés. O que faltar será descontado. Serve?

Servia. Era só o que havia para fazer. Assim que a alface enfolhou, os pássaros chegaram. Cem, duzentos. Taralhando, bicando, ciciando, negaceando, galrando, fugindo, voltando. Estragando o alfaçal. De escuro a escuro.

Perseguidos pelo tropegar, o gritar roufenho do espantalho: Xôôô... No anoitecer, os pássaros se iam. O espantalho ficava, exausto, arfante. Os vizinhos ofereceram: – Vá descansar no rancho. Não ia: – Logo, eles voltam.

Tenho de estar aqui. As mulheres se assombraram: 

– Aloucou. E como se feito de capim.

Semanas, assim. O alfaceiro completou o corte: – Só novecentos pés em bom estado. Vou descontar os estragados pelos pássaros. Eles continuavam por ali, retouçando o alfaçal. Gorjeando, atitando, pipilando. Isso doeu no espantalho:

 – E ainda caçoam de mim?! Partiu contra eles a roufenhar: – Xôôô.

Não por obrigação, mas por teima. As mulheres, na corredeira, lamentaram: – Coitado. Não é mais gente. E só espantalho.

O patrão não tinha outra lavoura para onde levar o espantalho. Vinha chegando o tempo frio. A terra iria repousar. Onde existira arrozal e alfaçal, cresciam ervas, flores selvagens. Um que outro pássaro, caladamente, procurava sementes, insetos, frutinhas. Coisas que nunca mereceram a atenção de
nenhum espantalho. Mas aquele, plantado na várzea, agitando molemente os braços, balbuciava: –Xô... xô contra os vultos esvoaçantes ao seu redor. E não havia pássaros por ali. Havia meninos excitados pela loucura e pela brincadeira: – Ei, espantalho?! Caçoavam, avançando, recuando, assoviando, rindo, gritando: – Xô...
Hernani Donato

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