quarta-feira, agosto 19

Jardi ou jardim sem fim

Tenho alguns livros de botânica na minha estante. De vez em quando pego num deles e sento-me na cadeira de baloiço. Folheio-os como se passeasse por um bosque que nunca conhecerei. Não aprendi botânica nem penso que venha a aprender, mas gosto da vã tentativa de fazer corresponder os nomes escritos nos livros às árvores lá fora: tipuana, choupo, olaia, casuarina, pilriteiro, ginkgo, pimenteira bastarda, árvore da castidade. As árvores fogem-me sempre às palavras com que tento agarrá-las, erguem-se desde sempre, antes do Verbo. Ainda o primeiro poema não tinha sido segredado e já, há muito, os pássaros lhes cruzavam as copas. Também os seus nomes existem para mim desencontrados deles: chapim real, toutinegra-de-barrete, estorninho, guarda-rios.

À medida que vou envelhecendo, aprendo e desaprendo muitas coisas. Desaprendo mais do que aprendo. Não me angustio com isso, confio que a cabeça guardará o que é importante. A cabeça e o coração. Mas tenho pena de desaprender a esperança. Pena ou medo. Resisto. Tento resistir. Por isso desde que o Pedro me contou a história da menina do jardim, sento-me amiúde à beira dela e peço-lhe, Diz lá isso outra vez.


Entre a minha casa e o jardim da Fundação Calouste Gulbenkian há apenas uma rua. Estando eu tão perto, seria simples escapulir-me para lá e esquecer por instantes a maldisposta e cansativa pressa da cidade. No entanto, passam-se semanas sem que eu atravesse a rua. É verdade que me falta sempre tempo para fazer tudo o que quero, mas também é verdade que o gasto sem propósito em atividades bastante desinteressantes. Se calhar não gostas da natureza, disse-me a Luísa, num jantar, quando lamentei o facto de quase não aproveitar a proximidade do jardim. Como é que não gosto?, defendi-me ao sentir a lâmina de uma acusação. Era de mim que a acusação partia, a Luísa tentava ajudar-me. Ainda pensei numa das minhas tiradas ocas, Um jardim é um museu da natureza e aquilo de que gosto não quero que exista fechado, mas estaria a ser desonesta. A razão tem mais a ver com a minha existência desregrada, caótica. É acima de tudo esse desregramento que faz com que tantas vezes me desencontre do que está perto. E que aconteça encontrar-me com o que está longe.

Durante muitos anos, o Pedro e eu vivemos longe um do outro. Se dominássemos a arte do funambulismo e o equador e os paralelos fossem fios de atar o mundo como os mapas nos fazem crer, poderia ter acontecido que numa noite de lua cheia nos tivéssemos aventurado, cada um do seu lado, ao longo do paralelo 39, sobre o Atlântico, e nos avistássemos perto do meio do oceano antes de cada um fazer meia volta, de regresso a sua casa. Sendo as coisas como são, foi preciso esperar que o Pedro deixasse Nova Iorque e viesse para Lisboa. Só então nos conhecemos. Vivemos juntos há poucos meses, mas o Pedro já usou mais o jardim do que eu desde que para aqui me mudei, há vários anos. Nas raras vezes em que o acompanho ao jardim, enterneço-me ao ver como os patos se aproximam de nós, esperando que o Pedro apanhe bagas e lhas dê, ou como o Fatness, o nome pelo qual chama o arisco e gordo gato branco e preto, deixa que ele lhe faça festas.

Não conheci a menina, mas de tanto a imaginar é como se fosse eu que a tivesse encontrado e não o Pedro. Dois totós bem presos em laços feitos com fitas brancas, da mesma cor da camisa, os olhos preto-azeviche por detrás das lentes de uns óculos de armação rosada, mochilinha de serapilheira, saia azul, sapatos vermelhos, meias subidas, a menina estacada, as mãos juntas num nervosismo inabitual numa criança com uns quatro ou cinco anos. Os pais repetem, no limite da paciência, Já te explicámos que neste jardim não há pandas, mas a menina teima em não ir embora, recomeça a andar, obstinada, no sentido contrário ao da saída, tentando perscrutar o que haverá para além da curva, e diz, Temos de continuar a andar, se continuarmos a andar, encontramos um panda.

Não conheci a menina, mas desde então acontece-me sentar-me à beira dela e pedir-lhe, Diz lá isso outra vez. E ela, com a generosidade esperançosa e expectante das crianças, repete, Se continuarmos a andar, encontramos um panda. Tem razão, temos de continuar a andar, a menina tem razão. E estou em crer que não foi um acaso ter sido o Pedro a trazer-ma. Se continuarmos a andar, encontramos um panda.

Ensinaram-me que é nula a probabilidade de dois passeios aleatórios se encontrarem no espaço, mas se os passeios estiverem assentes numa superfície é certo que se encontrarão. Mais cedo ou mais tarde. É um resultado matemático, não preciso sequer de ter fé. Sou caótica, a minha vida é um passeio aleatório. Por uma vez, agradeço não ter asas e estar condenada ao chão. Se eu não morresse nunca e eternamente buscasse…

Quando o tempo ficar quente, o Pedro e eu dormiremos de janelas abertas como fizéssemos no verão passado. Tenho a certeza de que nessa altura ouvirei o panda a ressonar no jardim. Muito obrigada, menina dos totós com fitas brancas, prometo arranjar maneira de dizer ao panda que não desistimos de encontrá-lo.

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