sexta-feira, agosto 21

Centenário de Ray Bradbury é comemorado com edição de luxo de 'Fahrenheit 451', inéditos e maratona de leitura

Quando Ray Bradbury, autor de “Fahrenheit 451” nasceu, em 22 de agosto de 1920, na cidadezinha de Waukegan, no Meio-Oeste americano, a pandemia de Gripe Espanhola, que matou mais de 50 milhões de pessoas, se aproximava do fim. Bradbury cresceu numa família enlutada. Em 1918, o vírus levara seu irmão Sam, gêmeo de Leonard Jr., e seu tio Samuel. Sua mãe, Esther, quase morrera de Influenza (gripe comum).

Em “Becoming Ray Bradbury” (“Tornando-se Ray Bradbury”), o biógrafo americano Jonathan Eller, professor da Escola de Artes Liberais da Universidade Indiana, escreve que a família Bradbury desejava, silenciosa e talvez inconscientemente, que o pequeno Ray ocupasse o lugar o irmão morto. Segundo Eller, se estivesse vivo hoje, Bradbury “compreenderia os sacrifícios que devemos fazer para salvar vidas” durante a pandemia de Covid-19 e ficaria contente ao observar que as bibliotecas, sua grande paixão, foram capazes de reinventar em tempos de isolamento social.

– Bradbury quis preservar as bibliotecas como instituições livres e abertas que nos apresentam a preciosidade da palavra escrita em um mundo onde somos constantemente distraídos por maravilhas tecnológicas – diz Eller, que assina um texto introdutório à edição de luxo de “Fahrenheit 451” que a Biblioteca Azul, selo da Globo Livros, envia às livrarias no mês que vem.


Bradbury revolucionou a ficção científica ao publicar livros como “Fahrenheit 451” e “Crônicas marcianas”, uma reunião de narrativas curtas sobre a colonização do planeta vermelho. Sempre desconfiado da tecnologia, ele só autorizou a publicação de “Fahrenheit 451” em e-book aos 91 anos, poucos meses antes de sua morte, em junho de 2012.

O romance apresenta uma sociedade distópica onde, distraídos pelas telas, ninguém mais lê e os bombeiros, em vez de apagar incêndios, queimam livros. O título indica a temperatura em que o papel entra em combustão: 451 graus Fahrenheit (ou 233 graus Celsius). Em 1966, o cineasta francês François Truffaut (1932-1984) adaptou o romance para o cinema. Bradbury gostou do filme, mas continuou antipático às telas. Dizia que os leitores eletrônicos cheiravam a “combustível queimado” e que a internet era “uma grande distração”.

No entanto, é graças a essa “grande distração” que os leitores de Bradbury podem celebrar o centenário do autor em tempos de pandemia e bibliotecas fechadas. Neste sábado, a partir das 17h30 (horário de Brasília), ocorre uma leitura coletiva de “Fahrenheit 451” no site http://raybradburyreadathon.com/. Participam 40 leitores: a maioria deles são estudantes e bibliotecários, mas alguns famosos também confirmaram presença, como ator William Shatner e o escritor Neil Gaiman, que também assina um texto incluído na nova edição de “Fahrenheit 451”. A maratona de leitura deve durar cinco horas e continuará disponível na rede por duas semanas.

Além dos textos de Eller e Gaiman, a edição de luxo de “Fahrenheit 451” traz trechos do diário que Truffaut manteve enquanto dirigia na adaptação cinematográfica do romance e o ensaio “Luz ardente” no qual o próprio Bradbury recorda a escrita do livro e seu carinho por bibliotecas públicas. “Fui oficialmente ‘formado’ pela biblioteca”, escreveu. Para celebrar o cententário do autor, a Biblioteca Azul planeja reeditar, até 2021, alguns títulos do autor e também publicar alguns inéditos.

As comemorações começaram em junho com o lançamento de “Prazer em queimar”, coletânea de 16 contos (13 deles anteriores a “Fahrenheit 451”). Num deles, “O bombeiro”, aparece pela primeira vez Montag, o herói do romance mais famoso de Bradbury. No conto, ele já queimava livros. Em setembro, chega às livrarias uma nova edição de “Zen na arte da escrita”, reunião de ensaios sobre a criação literária. No mês seguinte, sai uma nova tradução, assinada pelo escritor Eric Novello, de “O homem ilustrado”, conhecido antes pelo título “Uma sombra passou por aqui”. Publicado originalmente em 1951, o livro traz 18 contos nos quais o protagonista encontra um homem cujo corpo é completamente coberto por tatuagens. Cada uma delas conta uma história.

– São contos muito diferentes entre si: aventura, guerra, casamentos problemáticos, autores que precisam se exilar em Marte e livros queimados – conta Novello, autor de “Ninguém nasce herói” (Seguinte), romance inspirado por Bradbury que descreve um Brasil totalitário onde livros são proibidos pelo governo.

No ano que vem, saem alguns inéditos de Bradbury, como seus ensaios de futurologia e uma fábula infanto-juvenil sobre viagem no tempo. Também serão publicadas novas traduções da antologia de contos “O frutos dourados do sol” e dos romances “A árvore do Halloween”, “A morte é uma transação solitária”, “Licor de dente-de-leão” e “Um cemitério para lunáticos” – essas obras talvez ganhem novos títulos em português.

Segundo Mauro Palermo, diretor da Globo Livros, Bradbury faz cada vez mais sucesso entre os leitores brasileiros. As vendas de “Fahrenheit 451” quase decuplicaram nos últimos cinco anos: de 8.200 exemplares comercializados em 2015 para 75 mil em 2019. Para Novello, Bradbury ainda encanta porque sua ficção científica, preocupada com o impacto da tecnologia em nossas relações interpessoais, antecipou dilemas do nosso presente e também outros que ainda estão por vir.

– A ficção científica sempre nos ajuda a digerir melhor o que estamos vivendo, a refletir sobre o presente sem sermos sufocados pela realidade. Bradbury fala de temas importantes de um jeito que é filosófico e também descontraído – diz. – Ele destrói a ilusão de que existe arte apolítica.

Para Eller, o biógrafo, Bradbury nunca quis prever o futuro, mas “impedir que determinados futuros virassem realidade”.

– Se a obra de Bradbury nos ensina alguma coisa é a empatia: aprender, por meio da literatura, a ver as coisas pelos olhos dos outros.

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