Tenho em casa uma arma, vou matar-te.
Aposto que o Candé abanou os ombros e sorriu, aquilo não podia ser a sério, se deus não o queria matar, muito menos um homem quereria. Deus já provara duas vezes que o Candé era preciso nesta vida,
A minha mãe sempre me disse que eu não era para estar aqui, que eu não pertencia a este mundo,
contava, comovido, o ator Candé a fazer de Candé no espetáculo Rifar o Meu Coração. Estivera à morte em criança, uma doença teimava em não lhe largar o corpo, e voltara a estar há dois anos, quando teve o acidente,
Vai para a tua terra, preto.
Quantas vezes outros lhe haviam dito o mesmo?, tantos, tantos outros, que os insultos tinham passado a ser uma vozeria. Não, ninguém o queria matar. Não, não ia morrer. Estava a meio da vida, talvez menos de meio, nem 40 anos fizera. Recuperava do acidente que o deixara em coma, mas ainda era ele que carregava o lado esquerdo do corpo. Há dois anos, numa noite, o Candé pedalava na sua bicicleta por uma estrada deserta quando um carro veio do nada e para o nada fugiu. Entre esses nadas, o carro embateu nele, abandonando-o no chão.
O corpo dele outra vez no chão. Desta vez durante o dia, perto da uma da tarde. Desta vez quatro furos no corpo. Quatro balas,
Onde está a Pepa?
perguntou o Candé e morreu.
A morte é a máscara da revolução, a revolução é a máscara da morte.
Conheci-o num outro espetáculo da Mónica, Noites Brancas. Eu estava sentada na plateia, ele convidou-me para dançar com ele no palco. Recusei. Nunca tinha pisado um palco e sou desajeitada, o meu corpo perdeu há muito o dom da dança.
Confia em mim,
segredou-me com firmeza e lá fui eu pela mão dele
Ne me quitte pas
Il faut oublier
Tout peut s’oublier
sem saber ainda que aquela era a canção dele, o corpo do Candé, um escudo humano a proteger-me das luzes do palco e das sombras da plateia, senti-me por uma vez a bailarina da caixa-de-música que havia no quarto das minhas primas, como eu invejava a elegância da bailarina, uma mão quase a segurar o peito, e a outra presa ao braço graciosamente dobrado sobre a cabeça. Quando a canção terminou, voltei a ter consciência de mim e do meu corpo enferrujado,
E agora, como é que volto para onde estava?
O Candé terá ouvido a minha pergunta muda, pegou-me ao colo e devolveu-me ao meu lugar de espectadora com a gentileza de um gigante bom. Um gigante bom. Foi assim que passei a pensar nele.
Obrigada, Candé, eu estava com medo,
disse-lhe quando o espetáculo acabou,
Medo de quê?, não se pode ter medo de nada,
respondeu com a sua gargalhada inconfundível.
Preto, vai para a senzala, é lá o teu lugar
Onde está a Pepa?
No final de outro espetáculo, julgo que Esta Noite Improvisa-se, já na Zona J, em Chelas, fiquei à conversa com os atores. Estávamos na rua, com outros espectadores e moradores do bairro, era uma bonita noite de verão. Discretamente, um cão pulguento apareceu ali com uma perna partida e foi enroscar-se debaixo da luz do candeeiro,
Não o podem ter neste estado,
afligi-me, e logo um dos moradores,
O cão tem dono, a perna já cicatrizou,
Leva-o contigo, vou tentar descobrir porque o dono o tem maltratado,
disse o Candé, contrariando a maioria, e eu assim fiz. No dia seguinte, ele calcorreou as duas encostas do vale de Chelas até saber que o cão se chamava Piruças e pertencera a um homem do bairro da Flamenga que uns dias antes o fechara na sua carrinha. O homem, desempregado há muito, não quis que o Piruças estivesse em casa quando se enforcou. Desde então, o pobre cão deambulava pelos caminhos que costumava fazer com o seu companheiro.
Como podia o Candé adivinhar que a sua cadela Pepa também iria ficar sem ele? Logo a Pepa que tanto o ajudou no regresso à vida, à sua mulher, aos seus filhos. Saiu do coma em que o acidente de bicicleta o deixou com muitas lesões e, com a Pepa a guiá-lo, recuperou a locomoção, a fala, as memórias que se tinham apagado,
Quando os vivos não mais conseguirem lutar, os mortos lutarão.
A Pepa e as palavras do Heiner Müller,
Voltei a mim porque ainda tinha o texto d’A Missão decorado, fui repetindo-o, repetindo-o, repetindo-o na minha cabeça até que ganhou sentido outra vez,
confidenciou ele,
A morte é a máscara da revolução.
Palavras que o salvaram, palavras que ele criou. Numa tarde fui com o Luís assistir aos ensaios d’A Boa Alma que ele escreveu para a Mónica. O Candé veio ao nosso encontro e disse-lhe,
Tens razão, o amor é caro.
Citava uma frase da peça que tinha acabado de ouvir pela boca da Mónica. Já me esqueci de muito desse texto, mas o Candé, ao identificar e destacar aquela frase, guardou-ma. Mais do que o Luís que a escreveu, o Candé criou-a. Pertence-se mais a quem cuida do que a quem concebe, e foi o Candé que cuidou de
O amor é caro.
Ouvi-o dizer esta frase várias vezes. Como se quisesse torcê-la. E agora isto. O amor é caro e o ódio barato. Por isso o ódio se espalha, viral.
Violei muitas pretas em Angola, quem sabe se uma delas não era a tua mãe
Vai para a tua terra, preto de merda.
Quantas vezes outros lhe haviam dito o mesmo? Mas agora ele estava caído no chão. As balas tinham-lhe aberto o corpo e ele ia gelando,
Onde está a Pepa?
Num inverno levado da breca, em Sousel, emprestou-me o casaco dele. E, com o casaco, um abraço,
Então eu sou o africano e tu é que tens frio?
Se pudesse ser eu agora a abraçá-lo, a aquecê-lo, se pudesse prometer-lhe que será feita justiça, que isto não volta a acontecer, se ouvisse mais uma vez a sua gargalhada.
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