segunda-feira, setembro 30

Socorristas

 


Depois da Guerra

Depois da Guerra vão nascer lírios nas pedras, grandes lírios cor de sangue, belas rosas desmaiadas. Depois da Guerra vai haver fertilidade, vai haver natalidade, vai haver felicidade. Depois da Guerra, ah meu Deus, depois da Guerra, como eu vou tirar a forra de um jejum longo de farra! Depois da Guerra vai-se andar só de automóvel, atulhado de morenas todas vestidas de short. Depois da Guerra, que porção de preconceitos vão se acabar de repente com respeito à castidade! Moças saudáveis serão vistas pelas praias, mamães de futuros gêmeos, futuros gênios da pátria. Depois da Guerra, ninguém bebe mais bebida que não tenha um bocadinho de matéria alcoolizante. A coca-cola será relegada ao olvido, cachaça e cerveja muita, que é bom pra alegrar a vida! Depois da Guerra não se fará mais a barba, gravata só pra museu, pés descalços, braços nus. Depois da Guerra, acabou burocracia, não haverá mais despachos, não se assina mais o ponto. Branco no preto, preto e branco no amarelo, no meio uma fita de ouro gravada com o nome dela. Depois da Guerra ninguém corta mais as unhas, que elas já nascem cortadas para o resto da existência. Depois da Guerra não se vai mais ao dentista, nunca mais motor no nervo, nunca mais dente postiço. Vai haver cálcio, vitarnina e extrato hepático correndo nos chafarizes, pelas ruas da Cidade. Depois da Guerra não haverá mais Cassinos, não haverá mais Lídices, não haverá mais Guernicas. Depois da Guerra vão voltar os bons tempinhos do carnaval carioca com muito confete, entrudo e briga. Depois da Guerra, pirulim, depois da Guerra, vai surgir um sociólogo de espantar Gilberto Freyre. Vai se estudar cada coisa mais gozada, por exemplo, a relação entre o Cosmos e a mulata. Grandes poetas farão grandes epopeias, que deixarão no chinelo Camões, Dante e Itararé. Depois da Guerra, meu amigo Graciliano pode tirar os chinelos e ir dormir a sua sesta. Os romancistas viverão só de estipêndios, trabalhando sossegados numa casa na montanha. Depois da Guerra vai-se tirar muito mofo de homens padronizados pra fazer penicilina. Depois da Guerra não haverá mais tristeza: todo o mundo se abraçando num geral desarmamento. Chega francês, bate nas costas do inglês, que convida o italiano para um chope Alemão. Depois da Guerra, pirulim, depois da Guerra, as mulheres andarão perfeitamente à vontade. Ninguém dirá a expressão ‘mulher perdida”, que serão todas achadas sem mais banca, sem mais briga. Depois da Guerra vão se abrir todas as burras, quem estiver mal de cintura, logo um requerimento. Os operários irão ao Bife de Ouro, comerão somente o bife, que ouro não é comestível. Gentes vestindo macacões de fecho zíper dançarão seu jiterburgue em plena Copacabana. Bandas de música voltarão para os coretos, o povo se divertindo no remelexo do samba. E quanto samba, quanta doce melodia, para a alegria da massa comendo cachorro-quente! O poeta Schmidt voltará à poesia, de que anda desencantado e escreverá grandes livros. Quem quiser ver o poeta Carlos criando, ligará a televisão, lá está ele, que homem magro! Manuel Bandeira dará aula em praça pública, sua voz seca soando num bruto de um megafone. Murilo Mendes ganhará um autogiro, trará mensagens de Vênus, ensinando o povo a amar. Aníbal Machado estará são como um perro, numa tal atividade que Einstein rasga seu livro. Lá no planalto os negros nossos irmãos voltarão para os seus clubes de que foram escorraçados por lojistas da Direita (rua). Ah, quem me dera que essa Guerra logo acabe e os homens criem juízo e aprendam a viver a vida. No meio tempo, vamos dando tempo ao tempo, tomando nosso chopinho, trabalhando pra família. Se cada um ficar quieto no seu canto, fazendo as coisas certinho, sem aturar desaforo; se cada um tomar vergonha na cara, for pra guerra, for pra fila com vontade e paciência - não é possível! Esse negócio melhora, porque ou muito me engano, ou tudo isso não passa, de um grande, de um doloroso, de um atroz mal-entendido!
Vinicius de Moraes, "Prosa"

Tempo de utopias


Este é o tempo das utopias. É isso mesmo.
A utopia está lá no horizonte.
Caminho dez passos e o horizonte corre dez passos.
Por mais que eu caminhe, jamais alcançarei.
Para que serve a utopia?
Serve para isso: para que eu não deixe de caminhar.",
Eduardo Galeano

O que não se deve pedir ao amor

Pule de que andar for, sangre a jugular, aperte a corda até sufocar, morra como lhe der vontade, mas nunca ao amor implore por piedade. Peça ao seu fornecedor um punhal ameno, uma boa cicuta ou um simples veneno, mate-se como lhe der vontade, mas nunca ao amor implore por piedade. Tranque-se no congelador, afogue-se no mar, ponha nisso todo o empenho e vá tentando até acertar, mas nunca ao amor implore por piedade.

***

Um desejo de adoecer gravemente, de estar à morte, como estive quando tinha dez anos. Todos corriam para me socorrer, me acarinhar, me consolar. Era bom estar deitado, com febrões de quarenta graus. Nunca fui tão protagonista. Não me negavam nada. Tornei-me um chantagista. Cada remédio que precisava tomar, cada injeção, me rendiam alguma coisa. Tenho vontade de adoecer assim, seriamente, e ameaçar morrer se não me derem o quê? De que me valeriam os gibis agora, as figurinhas, a bola? E quem teria boa vontade comigo agora? Uma pessoa? Duas? Minha chantagem hoje precisaria ser outra: ameaçar viver muito tempo ainda, se não me dessem… o quê?

***

Então ele a olhou com os olhos ainda mais tristes: “Sabe? Eu já estou bem no meu tempo de morrer.” Antes que ela pensasse em lhe dizer alguma coisa, ele completou: Vontade não me falta.”

***

Minha força de vontade é suficiente apenas para manter viva minha apatia.

***

Melhor não pensar, não ouvir, não falar. Deixemos o amor nos esculpir, nos moldar conforme sua vontade, e agradeçamos por tudo que ele fizer de nós. Não nos compete sugerir nada, confiemos na sabedoria de seu cinzel. Não lhe façamos nenhuma queixa, nenhum reparo, e, sempre que ele nos fitar, bem-aventurados nos sintamos se com nossos olhos de pedra conseguirmos expressar nossa gratidão.

Buraco nas trevas


À noite era um pouco melhor. Podia passar cuidadosamente as mãos pela realidade, alisando-a para a observar com a esperança de, um dia, obter dela uma perspectiva geral, como se examinasse uma tapeçaria inacabada e multicolor cujo padrão oculto e intrincado poderia porventura deslindar, mais cedo ou mais tarde. No silêncio noturno, recordava-se das vozes que ouvira durante o dia e, com um pouco de paciência, desemaranhava-as umas das outras como fios de um novelo. Podia pensar com toda a calma nas palavras, sem temer o aparecimento de novos termos antes que a noite terminasse. Naquela fase da sua vida, a noite só com muita dificuldade apartava os dias, e se abrisse com um sopro um buraco nas trevas – como se desembaciasse uma vidraça coberta de gelo –, a manhã penetraria nos seus olhos muitas horas antes do tempo devido.
Tove Ditlevsen, "Os Rostos"


domingo, setembro 29

Bom amigo

 


Pelada de barranco


Nada havia de mais prestante em nós senão a infância.
O mundo começava ali. Nosso campo encostava na beira
do rio. Um menino Guató chegava de canoa e embicava
no barranco. Teria remado desde cedo para vir ocupar
a posição de golquíper no Porto de Dona Emília Futebol
Clube. Nosso valoroso time. As cercas laterais do campo
eram de cansanção. Espinheiro fechado pra ninguém botar
defeito. Guató já trazia do barranco duas pedras para servir
de balizas. Os craques desciam da cidade como formigas.
José de Camos, nosso beque de espera também tinha a
incumbência de soprar as bexigas. Porque a nossa bola
era de bexiga, que às vezes caiam no rio e as piranhas
devoravam. E se caísse no cansanção os espinhos furavam.
Nosso campinho por miúdo só permitia times de sete:
O goleiro, um beque de espera, um beque de avanço e
três na linha. Chambalé nosso técnico impunha regras:
só pode mijar no rio e não pode jogar de botina.
Sabastião era centroavante. Chutava no rumo certo. Sabia
as variações da bexiga no vento e botava no grau certo.
Quando alguém enfiava as unhas na pedra abria uma vaga.
Metade de nossos craques eram filhos de lavandeiras e
outra metade de pescadores. Na aba do campo a namorada
do Sabastião torcia: quebra esse saba, destina eles pras
piranhas. Mas Chambalé não deixava destinar. Quem destina
é Deusi – falava. No fim do jogo alguns iam bater bronha,
outros iam no mato jogar o mantimento e outros iam
pelotear passarinho. Guató pegava a canoa e remava até
a aldeia a mil metros dali. A cidade onde a gente morava
foi feita em cima de uma pedra branca enorme. E o rio
paraguaio, lá embaixo, corria com suas piranhas
e os seus camalotes.

Manoel de Barros, "Memórias Inventadas – A segunda infância"

Troca de excelência


Então, por favor, oh por favor, pedimos, oramos, jogue fora sua televisão e, em seu lugar, coloque uma bela estante de livros na parede
Roald Dahl

Doce música

Naquela noite tornaram a suceder-se os sonhos. Por que esse recordar intenso de tantas coisas? Por que não simplesmente a morte e não essa música doce do passado?

— Florencio morreu, senhora.

Como aquele homem era comprido! Que alto! E sua voz era dura. Seca como a terra mais seca. E sua figura era borrosa, ou se tornou borrosa depois?, como se entre ela e ele se interpusesse a chuva. “O que tinha dito? Florencio? De que Florencio ela falava? Do meu? Ah!, por que não chorei e me alaguei então em lágrimas para enxugar minha angústia? Senhor, tu não existes! Pedi tua proteção para ele. Que cuidasses dele. Isso eu te pedi. Mas tu só te ocupas das almas. E o que eu quero dele é seu corpo. Nu e quente de amor; fervendo de desejo; amassando o tremor de meus seios e de meus braços. Meu corpo transparente suspenso pelo dele. Meu corpo leve preso e solto às suas forças. O que farei agora com meus lábios sem sua boca para preenchê-los? O que farei de meus lábios doloridos?”

Enquanto Susana San Juan se revolvia inquieta, de pé, ao lado da porta, Pedro Páramo a olhava e contava os segundos daquele novo sonho que já durava muito. O óleo da lamparina faiscava e a chama tornava seu pestanejar cada vez mais débil. Logo se apagaria.

Se pelo menos fosse dor o que ela sentisse, e não esses sonhos sem sossego, esses intermináveis e esgotadores sonhos, ele poderia buscar-lhe algum consolo. Assim pensava Pedro Páramo, os olhos fixos em Susana San Juan, seguindo cada um de seus movimentos. O que aconteceria se ela também se apagasse como se apagou a chama daquela luz débil com a qual ele a via?

Depois saiu fechando a porta sem fazer ruído. Lá fora, o ar limpo da noite descolou de Pedro Páramo a imagem de Susana San Juan.

Ela acordou um pouco antes do amanhecer. Suada. Jogou no chão as cobertas pesadas e se desfez até do calor dos lençóis. Então seu corpo ficou nu, refrescado pelo vento da madrugada. Suspirou e em seguida tornou a adormecer.

Foi assim que horas depois o padre Rentería a encontrou: nua e adormecida.

Juan Rulfo, "Pedro Páramo"

Velhos ipês

Há uma certa nostalgia na Primavera, já notou? Essa beleza fugaz da floração que nos rodeia, o namoro pouco discreto dos animais, a sede de sol e calor que nos faz renascer… Mais um ciclo que se inicia, provando a cada instante que tudo começa e termina, que o planeta não é eterno e muito menos, nós. Os dias escoam pelos dedos, o espelho exibe novas rugas, os cabelos embranquecem. Apesar disso, mesmo tendo visto esse filme tantas vezes, ainda nos encantamos com o perfume das manhãs, as cores do ocaso, o luar e as estrelas que conhecemos de cor.


Brotam flores em todos os ipês, brota em nós a pulsão de vida, o desejo de viver intensamente os alegres meses da estação. Como um precioso baú, eles guardam vivências da infância, quando desconhecíamos por completo a noção de finitude, estreando o mundo. Trazem também os amores imaturos da juventude, sonhos possíveis e impossíveis, as primeiras vitórias, planos de aprendiz.

E, ao atingir a idade adulta, a coleção ganhou viagens, desafios profissionais, o filho, os livros. Tudo impregnado com o sabor do amor. Numa reunião acontecida este mês, jornalistas de várias gerações que frequentaram a redação de um extinto jornal da cidade puderam renovar laços de algumas décadas. “Nossos ídolos ainda são os mesmos, mas as aparências não enganam, não”. Muitas cabeças brancas, algumas bengalas, quilos a mais, visão e audição em decadência, ausência dos que já se foram.

Mas as risadas e as lembranças continuam jovens. Nossa inocência congelada no tempo. Velhos ipês florindo, apesar de tudo.

sábado, setembro 28

Proteja-se dos ETs

 


Asa de borboleta

E, no planeta, um jardim,
e, no jardim, um canteiro;
no canteiro uma violeta,
e, sobre ela, o dia inteiro,

entre o planeta e o sem-fim,
a asa de uma borboleta
Cecília Meireles

Nkali

É impossível falar sobre a história única sem falar sobre poder. Existe uma palavra em igbo na qual sempre penso quando considero as estruturas de poder no mundo: nkali. É um substantivo que, em tradução livre, quer dizer “ser maior do que outro”. Assim como o mundo econômico e político, as histórias também são definidas pelo princípio de nkali: como elas são contadas, quem as conta, quando são contadas e quantas são contadas depende muito de poder.

O poder é a habilidade não apenas de contar a história de outra pessoa, mas de fazer que ela seja sua história definitiva. O poeta palestino Mourid Barghouti escreveu que, se você quiser espoliar um povo, a maneira mais simples é contar a história dele e começar com “em segundo lugar”. Comece a história com as flechas dos indígenas americanos, e não com a chegada dos britânicos, e a história será completamente diferente. Comece a história com o fracasso do Estado africano, e não com a criação colonial do Estado africano, e a história será completamente diferente.

Há pouco tempo dei uma palestra numa universidade e um aluno me disse que era uma grande pena que os homens nigerianos fossem agressivos como o personagem do pai no meu romance. Eu disse a ele que tinha acabado de ler um livro chamado "O psicopata americano" e que achava que era uma grande pena que os jovens americanos fossem assassinos em série.

Bem, obviamente disse isso num leve ataque de irritação. Mas jamais teria me ocorrido pensar que, só porque li um romance no qual o personagem era um assassino em série, ele de alguma maneira representava todos os americanos. Não digo isso porque me considero uma pessoa melhor do que esse aluno, mas porque, graças ao poder econômico e cultural dos Estados Unidos, tive acesso a muitas histórias sobre esse país. Já tinha lido Tyler, Updike, Steinbeck e Gaitskill. Não tinha uma história única dos Estados Unidos.


Quando descobri, alguns anos atrás, que se esperava que os escritores tivessem tido infâncias muito infelizes para ser bem-sucedidos, comecei a pensar em como inventar coisas horríveis que meus pais poderiam ter feito comigo. Mas a verdade é que tive uma infância muito feliz, cheia de riso e amor, numa família muito próxima.


Também tive avós que morreram em campos de refugiados. Meu primo Polle morreu porque não recebeu tratamento médico adequado. Um dos meus melhores amigos, Okoloma, morreu num acidente de avião porque nossos caminhões de bombeiros não tinham água. Minha infância transcorreu durante governos militares que desvalorizavam a educação, de modo que às vezes meus pais não recebiam seus salários. Então, quando eu era criança, vi a geleia desaparecer da mesa do café, depois a margarina, depois o pão ficou caro demais, depois o leite foi racionado. Acima de tudo, uma espécie de medo político normalizado invadiu nossa vida.

Todas essas histórias me fazem quem eu sou. Mas insistir só nas histórias negativas é simplificar minha experiência e não olhar para as muitas outras histórias que me formaram.

A história única cria estereótipos, e o problema com os estereótipos não é que sejam mentira, mas que são incompletos. Eles fazem com que uma história se torne a única história.

É claro que a África é um continente repleto de catástrofes. Existem algumas enormes, como os estupros aterradores no Congo, e outras deprimentes, como o fato de que 5 mil pessoas se candidatam a uma vaga de emprego na Nigéria. Mas existem outras histórias que não são sobre catástrofes, e é muito importante, igualmente importante, falar sobre elas.

Chimamanda Ngozi Adichie, "O perigo de uma história única"

Ná havendo novidade

O tempo apagará para sempre o que fomos até não termos sido nada. E as palavras que deixarei são provisórias como todas as palavras que se pronunciaram no mundo. Ná havendo novidade, dizia o velhote sem pernas. Mas havendo ou não havendo novidade será assim. A sua cadeira de rodas desaparecerá também. Mesmo o teu nome, António Lobo Antunes, não terá sequer a sombra de uma sombra

Era um camponês alentejano, já idoso, seja o que for que isso signifique, com uma diabetes muito grave, condenado a uma cadeira de rodas porque lhe amputaram as pernas. Os resultados das análises eram uma miséria mas continuava a não tomar a medicação, a beber, a comer o que não devia quando tinha dinheiro para comer. Morava num sítio perdido onde ninguém passava. A sua única frase à despedida foi

– Ná havendo novidade a gente vê-se daqui a dez anos

e lembro-me tantas vezes desta frase. Ná havendo novidade. Ná havendo novidade o meu futuro é muito claro. Faltam-me quatro livros, contando este em que estou a trabalhar agora. Ná havendo novidade o último estará pronto em 2022 e não torno a escrever porque a obra ficará finalmente redonda e o círculo definitivamente fechado. Não consinto que mais nada meu seja publicado, rascunhos, planos, esboços, falsas partidas, seja o que for. Proíbo que desrespeitem a minha vontade. Proíbo que me traiam. Nem uma palavra mais.


Claro que também não farei estas crónicas a partir do momento da saída desse livro de 2022. Depois disso, e ná havendo novidade, irei ler esses textinhos. Se achar que têm alguma qualidade reúno-os num livro com o título Crónicas.

Publica-se esse volume e acabou-se.

Como dizia Newton não sei o que o futuro pensará de mim, mas sei o que eu pensarei dele, como sei o que penso acerca do que fiz. Simplesmente as pessoas não têm direito ao que eu penso. Têm direito ao que eu fiz e é um pau. Digam o que lhes der na gana: é igual ao litro. As opiniões flutuarão com os tempos, inevitavelmente, e as águas deixarão de se agitar a pouco e pouco quando eu for apenas um nome, uns retratos, umas lembranças vagas. Depois as lembranças desaparecerão como desaparecerão os retratos. Fica o nome e a obra. Depois…

Dos dez grandes dramaturgos de que Aristóteles falou nem uma peça resta. Nem uma linha. Temos Eurípides, Ésquilo, Sófocles, que Aristóteles omitiu: parece que dava mais importância aos outros, não há certeza de espécie alguma a esse respeito. De Safo sobrevivem meia dúzia de palavras. A única vez que Cristo escreveu fê-lo com o dedo na terra, ninguém conhece o que rabiscou. Tudo o que fizemos não passou disso: escrevemos com o dedo na terra e nem a mulher adúltera, a única pessoa que estava com Ele, o soube. Como o não soube quem declarou que ele escreveu com o dedo na terra. Mas teria escrito de facto ou esboçado apenas uns riscos?

Ao fim e ao cabo esboçámos apenas uns riscos. Mesmo que não os tenhamos apagado com a mão o tempo encarregar-se-á disso por nós. Vaidade das vaidades, garante o Eclesiastes, tudo é vaidade: o tempo apagará para sempre o que fomos até não termos sido nada. as palavras que deixarei são provisórias como todas as palavras que se pronunciaram no mundo. Ná havendo novidade, dizia o velhote sem pernas. Mas havendo ou não havendo novidade será assim. A sua cadeira de rodas desaparecerá também. Mesmo o teu nome, António Lobo Antunes, não terá sequer a sombra de uma sombra. Ao escrever isto lembrei-me de um poema babilónico com mais de dez mil anos. Ficou o início

Ó casa de bambu escuta
ó casa de bambu compreende
e isto comove-me até às lágrimas. Como me comove um poema de Bachô
(estou a aportuguesar-lhe o nome)
feito no século dezasseis:
Os quimonos secam ao sol.
Ai as mangas pequenas
Da criança morta.

Ontem não te vi em Babilónia diz a inscrição numa pedra que aproveitei para um livro. De facto não vimos ninguém em Babilónia nem sequer a nós mesmos. Vaidade das vaidades, eu preocupado com a minha pobre obra. Pela janela aberta chegam os gritos dos presos no recreio da cadeia lá em baixo. Parecem alegres, riem, cantam. Ná havendo novidade daqui a quarenta anos estão cá fora a aliviarem os bolsos do pagode. Quanto a mim, ná havendo novidade, daqui a dez estarei com o amigo alentejano, sem pernas, a comermos à colher um pacotão de açúcar.”

António Lobo Antunes, Visão, 24 de Maio de 2018

Pranto para o homem que não sabia chorar

Havia quitandas naquele tempo. Vendiam verduras, legumes, ovos, algumas chegavam a vender galinhas em pé, quer dizer, vivas, mas eram poucas, pois todas as casas tinham quintal e todos os quintais tinham galinhas. Ia esquecendo: as quitandas mais sortidas tinham à porta, bem visíveis aos passantes, um feixe de varas de marmelo.

Para que serviam? Fica difícil explicar, mas serviam para os pais comprarem uma delas e a guardarem em casa, num lugar à mão e bem visível aos filhos. Quem nunca tomou uma surra de vara de marmelo não pode saber o que é a vida, de que ela é feita, de suas ciladas e enigmas. Há aquela frase: “Quem nunca passou pela rua tal às cinco da tarde não sabe o que é a vida”. A frase não é bem essa, mas o sentido é esse.


Uma surra de vara de marmelo era o recurso mais eficaz para colocar a prole em bom estado de moralidade e bom comportamento. Acima dela, só havia o recurso capital de ameaçar o filho com um colégio interno da época: Caraça! Ir para o Caraça, a possibilidade de ir para o Caraça era uma pena de morte, uma condenação ao inferno, um atestado de que o guri não tinha jeito nem futuro.

Houve a tarde em que o irmão mais velho fez uma lambança com umas tintas que o pai comprara para pintar a casa de Segredo, o cachorro, que era solto à noite para evitar que os amigos do alheio pulassem para o quintal e roubassem as galinhas -repito, todas as casas tinham galinhas.

E “amigos do alheio” era uma expressão, uma metáfora civilizada que os jornais usavam para se referirem aos ladrões de qualquer coisa, inclusive de galinhas.

Pois o irmão foi surrado com vara de marmelo e chorou. O pai então proferiu a sentença que ele jamais esqueceria:
Homem não chora!

Em surras seguintes e sucessivas, com a mesma vara de marmelo (ela nunca se quebrava, por mais violenta que tivesse sido a surra anterior), o irmão tinha o direito de gritar, de urrar, de grunhir como um leitão na hora em que entra na faca, mas não de chorar.

Por isso, mesmo sem nunca ter tomado uma surra daquelas, ele sabia que um homem não pode chorar, nem mesmo quando açoitado por vara de marmelo. O vizinho do Lins, que tinha um filho considerado perdido, percebendo que a vara de marmelo era ineficaz como um remédio com data de validade vencida, adotou uma tira de borracha que servira de pneu a um velocípede desativado. Tal como a vara de marmelo, era maleável mas inquebrável, deixava lanhos nas pernas do filho -que mais tarde chegaria a ser capitão-do-mar-e-guerra, medalhado não em guerra nem em mar, mas por tempo de serviço.

Homem não chora e, por isso, ele decidiu que seria um homem e jamais choraria. O irmão, sim, era um bezerro desmamado, chorava à toa, nem precisava de vara de marmelo. Chorou no dia em que Segredo morreu envenenado -um amigo do alheio, antes de pular no quintal, jogou-lhe um pedaço de carne com arsênico.

Chorou mais tarde, quase homem feito. Esquecido de que homem não chora, ele chorou quando o Brasil perdeu para o Uruguai no final da Copa do Mundo de 1950. Não era homem. Atrás do gol, viu quando Gighia chutou e o estádio emudeceu e logo depois chorava, seguramente o maior pranto coletivo da história da humanidade, 200 mil pessoas que não eram homens, chorando sem vergonha de não serem homens.

Ele não podia ou não sabia chorar? Essa era a questão. Volta e meia forçava a barra, lembrava as coisas tristes que lhe aconteceram, o dia em que o pai o colocou de castigo, atribuindo-lhe a quebra de uma moringa. A perda da medalhinha de Nossa Senhora de Lourdes que a madrinha lhe dera, uma medalhinha de ouro que, segundo a madrinha, o livraria de todo o mal, amém. Não chorou nem mesmo quando, naquela primeira noite após a morte de sua mãe, ele se sentiu sozinho na vida e perdido no mundo.

Daí lhe veio a certeza. Poder chorar até que podia. O diabo é que ele não sabia mesmo chorar. Chorar é como o samba que não se aprende na escola: ou se nasce sabendo, ou nunca se sabe. Bem verdade que ele desconfiou de que os outros chorassem errado, misturando motivos. Por exemplo: o irmão, que era um Phd na matéria, quando chorava, fazia um embrulho de coisas e desditas, um mix de quebrações de cara e obtinha um pranto copioso, sincero, lágrima puxando lágrima, soluço puxando soluço.

Quando perdeu uma bolada num cassino de Montevidéu, foi para o quarto do hotel, bebeu meia garrafa de uísque e, tarde da noite, telefonou dizendo que, passados 40 e tantos anos, ainda estava chorando pela morte de Segredo.

Tivera ele essa virtude, aquilo que os ascetas chamam de “dom das lágrimas”! José, vendido por seus irmãos ao faraó do Egito, tornou-se poderoso e um dia recebeu os irmãos que o procuraram para matar a fome. Os irmãos não o reconheceram. José perguntou-lhes sobre o pai e retirou-se a um canto para chorar. Depois, sim, deu-se a conhecer e matou a fome dos irmãos que o venderam.

Jesus chorou quando soube da morte de Lázaro e o ressuscitou. A lágrima é um dom, e ele não mereceu esse dom nem mesmo quando Débora foi embora de seus sonhos e, como nos tangos, nunca mais voltou.
Carlos Heitor Cony

sexta-feira, setembro 27

Berço esplêndido

 


A noite

À noite era um pouco melhor. Podia passar cuidadosamente as mãos pela realidade, alisando-a para a observar com a esperança de, um dia, obter dela uma perspectiva geral, como se examinasse uma tapeçaria inacabada e multicolor cujo padrão oculto e intrincado poderia porventura deslindar, mais cedo ou mais tarde. No silêncio noturno, recordava-se das vozes que ouvira durante o dia e, com um pouco de paciência, desemaranhava-as umas das outras como fios de um novelo. Podia pensar com toda a calma nas palavras, sem temer o aparecimento de novos termos antes que a noite terminasse. Naquela fase da sua vida, a noite só com muita dificuldade apartava os dias, e se abrisse com um sopro um buraco nas trevas – como se desembaciasse uma vidraça coberta de gelo –, a manhã penetraria nos seus olhos muitas horas antes do tempo devido.

Tove Ditlevsen, "Os Rostos"

A última instância

A cidade ficava entre o rio e o mar, praias belíssimas, os coqueiros nascendo ao largo de todo o areal. Um poeta, que certa vez passara por Ilhéus e dera uma conferência, a chamara de “cidade das Palmeiras ao vento” numa imagem que os jornais repetiam de quando em vez.

A verdade, porém, é que as palmeiras nasciam nas praias e se deixavam balançar pelo vento. A árvore que influía em Ilhéus era a árvore do cacau, se bem não visse nenhuma em toda a cidade. Mas era ela que estava por detrás de toda a vida de São Jorge do Ilhéus. Por detrás de cada negócio que era feito, de cada casa que era construída, de cada armazém, de cada loja que era aberta, de cada caso do amor, de cada tiro trocado na rua. Não havia conservação em que a palavra não entrasse como elemento primordial. E sobre a cidade pairava, vindo dos armazéns de depósito, dos vagões da estrada de ferro, dos porões dos navios, das carroças e da gente, um cheiro de chocolate que é cheiro de cacau seco.

Existia outra ordenança municipal que proibia o porte de armas. Mas muito poucas pessoas sabiam que ela existia e mesmo aqueles poucos que o sabiam, não pensavam em respeitá-lo. Os homens passavam, calçados de botas ou de botinas de couro grosso, a calça cáqui, o paletó de casimira, e por debaixo deste o revólver. Homens de repetição a tiracolo atravessavam a cidade sob a influência dos moradores, Apesar do que já existia de assentado, de definitivo, em Ilhéus, os grandes sobrados, as ruas calçadas, as casas de pedra e cal, ainda assim restava na cidade um certo ar de acampamento. Por vezes, quando chegavam os navios abarrotados de emigrantes vindos do sertão, de Sergipe e do Ceará, quando as pensões de perto da estação não tinham mais lugar de tão cheias, então barracas eram armadas na frente do porto. Improvisavam-se cozinhas, os coronéis vinham ali escolher trabalhadores. Dr. Rui, certa vez, mostrara um daqueles acampamentos a um visitante da capital.

- Aqui é o mercado de escravos...

Dizia com um certo orgulho e certo desprezo, era assim que ele amava aquela cidade que nascera de repente, filho do porto, alimentada pelo cacau, já se tornando a mais rica do estado, a mais próspera também. Existiam poucos ilheenses de nascimento que já tivessem importância na vida da cidade. Quase todos fazendeiros, médicos, advogados, agrônomos, políticos, jornalistas, mestre-de-obras eram gente vinda de fora, de outros estados. Mas amavam estranhamentos aquela terra venturosa e rica. Todos se diziam "grapiúnas" e, quando estavam na Bahia, em toda parte eram facilmente reconhecíveis pelo orgulho com que falavam.

- Aquele é um ilheense... – diziam.

Nos cabarés e nas casas de negócios da capital eles arrotavam valentia e riqueza, gastando dinheiro, comprando do bom e do melhor, pagando sem discutir preços, topando barulhos sem discutir o porquê. Nas casas de rameiras, na Bahia, eram respeitados, temidos e ansiosamente esperados. E também nas casas exportadores de produtos para o interior os comerciantes de Ilhéus eram tratados com a maior consideração, tinham crédito ilimitado.

De todo o Norte do Brasil descia gente para essas terras do Sul da Bahia. A fama corria, diziam que o dinheiro rodava na rua, que ninguém fazia caso em Ilhéus, de prata de dois mil-réis. Os navios chegavam entupidos de imigrantes, vinham aventureiros de toda espécie, mulheres de toda idade, para quem Ilhéus era a primeira ou a última esperança.

Na cidade todos se misturavam, o pobre de hoje podia ser o rico de amanhã, o tropeiro de agora poderia ter amanhã uma grande fazenda de cacau, o trabalhador que não sabia ler poderia ser um dia chefe político respeitado. Citavam-se os exemplos e citava-se sempre a Horácio que começara tropeiro e agora era dos maiores fazendeiros da zona, e o rico de hoje poderia ser o pobre de amanhã se um mais rico, junto com um advogado, fizesse um “caxixe” bem feito e tomasse sua terra. E todos os vivos de hoje poderiam amanhã estar mortos na rua, com uma bala no peito. Por cima da justiça, do juiz e do promotor, do júri de cidadãos, estava a lei do gatilho, última instância da justiça em Ilhéus.
Jorge Amado. "Terras do sem-fim"

Primavera

A primavera chegará, mesmo que ninguém mais saiba seu nome, nem acredite no calendário, nem possua jardim para recebê-la. A inclinação do sol vai marcando outras sombras; e os habitantes da mata, essas criaturas naturais que ainda circulam pelo ar e pelo chão, começam a preparar sua vida para a primavera que chega.

Finos clarins que não ouvimos devem soar por dentro da terra, nesse mundo confidencial das raízes, — e arautos sutis acordarão as cores e os perfumes e a alegria de nascer, no espírito das flores.

Há bosques de rododendros que eram verdes e já estão todos cor-de-rosa, como os palácios de Jeipur. Vozes novas de passarinhos começam a ensaiar as árias tradicionais de sua nação. Pequenas borboletas brancas e amarelas apressam-se pelos ares, — e certamente conversam: mas tão baixinho que não se entende.

Oh! Primaveras distantes, depois do branco e deserto inverno, quando as amendoeiras inauguram suas flores, alegremente, e todos os olhos procuram pelo céu o primeiro raio de sol.

Esta é uma primavera diferente, com as matas intactas, as árvores cobertas de folhas, — e só os poetas, entre os humanos, sabem que uma Deusa chega, coroada de flores, com vestidos bordados de flores, com os braços carregados de flores, e vem dançar neste mundo cálido, de incessante luz.

Mas é certo que a primavera chega. É certo que a vida não se esquece, e a terra maternalmente se enfeita para as festas da sua perpetuação.

Algum dia, talvez, nada mais vai ser assim. Algum dia, talvez, os homens terão a primavera que desejarem, no momento que quiserem, independentes deste ritmo, desta ordem, deste movimento do céu. E os pássaros serão outros, com outros cantos e outros hábitos, — e os ouvidos que por acaso os ouvirem não terão nada mais com tudo aquilo que, outrora se entendeu e amou.

Enquanto há primavera, esta primavera natural, prestemos atenção ao sussurro dos passarinhos novos, que dão beijinhos para o ar azul. Escutemos estas vozes que andam nas árvores, caminhemos por estas estradas que ainda conservam seus sentimentos antigos: lentamente estão sendo tecidos os manacás roxos e brancos; e a eufórbia se vai tornando pulquérrima, em cada coroa vermelha que desdobra. Os casulos brancos das gardênias ainda estão sendo enrolados em redor do perfume. E flores agrestes acordam com suas roupas de chita multicCecília Meireles

Tudo isto para brilhar um instante, apenas, para ser lançado ao vento, — por fidelidade à obscura semente, ao que vem, na rotação da eternidade. Saudemos a primavera, dona da vida — e efêmera.
Cecília Meireles

O conde e o passarinho

Rubem Braga é, sabidamente, um conhecedor de passarinhos. Suas crônicas alegram-se e se entristecem com frequência de nomes de pássaros nacionais que eu só conheço de ouvir dizer – o que me dá um certo complexo de inferioridade. Já andei, certa vez, planejando estudar ornitologia por causa disto, e lembro-me de que na viagem que fiz com ele à sua Cachoeiro do Itapemirim, quando da homenagem que lhe prestou a cidade, foi com um sentimento de gula que recebi o maravilhoso disco de pios artificiais de passarinhos, feito pela família Coelho, que disso criou uma pequena indústria local. Tais projetos nunca foram adiante, como vários outros, entre os quais um de estudar carpintaria: e este, inclusive, concertado com o próprio Rubem – e que resultou em arrancarmos, ato contínuo, a porta da garagem da minha antiga casa, sairmos meia hora depois para matar o calor com uma cerveja gelada, e nunca mais voltarmos à dita porta, que se quedou jazente por dias a fio, vítima de nossa impostura.

O Braga conhece bem sua passarada, isso ninguém lhe tira. O que não impede, porém, que tenha dado um “baixo” ornitológico que merece registro, segundo me conta minha irmã Lygia, testemunha ocular do mesmo. Pois o que se deduz da história é que o Braga pode conhecer muito bem tico-tico, curió, sanhaço, cardeal, tiê-sangue, sabiá, gaturamo, cambaxirra e até mesmo vira-bosta – mas em matéria de canário trata-se de um otário completo e acabado. Dito o quê, passemos à narrativa.

Parece que o Braga vinha um dia assim muito bem pela Cinelândia, quando topou com um vendedor de passarinho oferecendo a preço de ocasião um casal de canários dentro de uma gaiola cuja bossinha era ser dividida por uma separação levadiça em dois compartimentos, um para o macho, outro para a fêmea. A gracinha era abrir a portinhola do macho, deixá-lo fugir e depois vê-lo voltar docemente, no pio da fêmea.

O Braguinha, que além de gostar de pássaros não é tolo (imagina para quanta mulherzinha ele não ia poder fazer aquele truque!), assistiu com o maior interesse a mais essa demonstração de que, como diz o samba, o homem sem mulher não vale nada, entregou o dinheiro, meteu a gaiola debaixo do braço e tocou-se para o Leblon, sequioso de mostrar seu novo brinco ao aborígene. E deu-lhe a sorte de encontrar minha irmã Lygia, que além de ser uma esplêndida assistência para demonstrações desse teor, é pessoa mais de se apiedar que de caçoar da desdita alheia.

O Braga colocou a gaiola em posição, abriu a porta e lá se foi o canarinho pelo azul afora, em lindas evoluções. A fêmea, como previsto, abriu o bico e o canário, ao ouvi-la, fez direitinho como mandava o figurino: voltou e posou junto à porta aberta. Mas o divórcio entrou? Nem o canário. O bichinho ficou prudentemente à porta, mas entrar dentro mesmo da gaiola que é bom... ahn-ahn. O Braga animou a ave canora com milhões de piu-pius, fez-lhe mentalmente enérgicas perorações contra a sua calhordice – tudo isso, conta minha irmã Lygia, com olhos onde se começava a notar uma certa apreensão. O canário, nada.

Quem sabe, ponderou minha irmã, um elemento verde qualquer colocado junto à porta, uma folha de alface, por exemplo, não animaria o bichinho? Foi trazida a folha de alface e colocada junto à porta. Durante essa operação o canário levantou voo, e a canarinha, aproveitando-se da ocupação dos dois, fez força com o biquinho e acabou por erguer a portinhola da separação; dali para o Jardim Botânico, não teve nem graça.

Diz minha irmã que o Braga ficou triste, triste. E como a esperança é a última que morre, antes de ir embora ainda ajeitou a gaiolinha para uma espera: quem sabe os pilantras não voltariam à noite...

Canário, hein Braguinha?…
Vinicius de Moraes, "Para viver um grande amor"

quinta-feira, setembro 26

Esportistas



Talvez


Repara como o poeta humaniza as coisas: dá hesitações às folhas, anseios ao vento. Talvez seja assim que Deus dá alma aos homens.
Mário Quintana, "Caderno H"

Educação pobre

Não existe coisa mais perigosa que poder sem sonho, dinheiro sem visão. Dinheiro sem visão desanda a fazer besteiras que, depois de feitas, viram elefantes coloridos que comem e defecam em excesso sem nada produzir. Desconfio muito dos que, ao falar da educação, falam logo na falta de verbas. A maior pobreza da educação não se encontra na escassez dos recursos econômicos. Ela se encontra na pobreza da imaginação.

A educação se divide em duas partes: educação das habilidades, educação da sensibilidade. Sem a educação da sensibilidade todas as habilidades são tolas e sem sentido.

Conhecer por conhecer, conhecer tudo o que há para ser conhecido: isso é um estilo suíno de aprender.


Há saberes na cabeça que paralisam os saberes inconscientes do corpo.

“Que espantosos pedagogos nós éramos, quando não nos preocupávamos com a pedagogia!” (Daniel Pennac)

Contou-me o jovem médico, residente de psiquiatria: “Me aguardava uma velhinha. Antes que eu dissesse qualquer coisa, ela tomou a iniciativa: ‘Doutor, quero lhe fazer duas perguntas’. ‘Pois não’, eu disse. ‘O senhor é dos médicos que dão remédio ou só falam para curar?’ Respondi: ‘Sou dos que só falam para curar’. Ela continuou: ‘Agora, a última pergunta: Essa conversa que cura, ela é aprendida na escola ou é de graça?’”. A velhinha sabia muito, sem saber. Há saberes que não se aprendem. Nascemos com eles, por graça dos deuses.

Não basta que o aluno conheça o mundo. É preciso que ele deguste o mundo. Não basta que o aluno tenha ciência. É preciso que tenha sapiência.

Sabe-se muito sobre regras de gramática e análise sintática. Mas onde está o prazer da leitura? Ler gastronomicamente, vagarosamente, por puro prazer, sem a obrigação brochante de ter de preencher um questionário de interpretação.

O educador é um mestre de Kama Sutra, manual de sabedoria erótica. São os prazeres e as alegrias que nos dão razões para viver. Brecht, sofrido, disse que o único objetivo da ciência era aliviar a miséria da existência humana. Mas isso não basta. Não basta aliviar a miséria. É necessário produzir a exuberância dos prazeres.

Os saberes são navios. Para se construir navios é preciso ciência. Os portugueses no século XVI construíam trinta caravelas por mês. Tinham ciência. Aprenderam a ciência da construção de caravelas porque eram fascinados pelo navegar.

“Navegar é preciso; viver não é preciso...” Foi o sonho de navegar que gerou e pariu a ciência da construção de construir caravelas. A ciência é filha dos sonhos.
Caravelas não se fazem sem recursos econômicos. Mas recursos econômicos não fazem caravelas. Educação não se faz sem recursos econômicos. Mas recursos econômicos não fazem educação. É preciso o sonho. Recursos econômicos sem sonhos frequentemente dão à luz seres monstruosos…
Rubem Alves, "Do universo à jabuticaba"

A perfeita sabedoria

A verdadeira sabedoria está nos livros não escritos, isto é, nas folhas de papel em branco, reunidas em volumes encadernados. É a conclusão de um bibliófilo que se tornou filósofo. Trocou os livros impressos, que lhe feriam a vista, por outros de imaculada brancura, e verificou que neles reside a essência do conhecimento.
Gostava de abri-los ao acaso e passar os dedos, suavemente, na superfície virgem. Nenhuma teoria falsa, nenhum erro habitava aquelas páginas. Pelo contrário: era como se o saber fora de discussão se aninhasse ali. O saber é branco, refletiu ele. As mentiras são coloridas, e as letras são a representação visual de sofismas ou enigmas carentes de interpretação.

Sua biblioteca se foi reduzindo, porque a imperfeição do papel era de certo modo um erro, e o nosso homem fugia dele. Às vezes não era defeito de fabricação, mas simples dobra ou sinal de unha deixado por alguém. O volume era condenado e, de redução em redução, a biblioteca se constituiu num só livro, que continha a verdade absoluta e suprema.

Folheá-lo seria risco imensurável, pois se acaso a página se rasgasse? Uma gota de café pingasse, ou a cinza do cigarro? Nunca mais o abriu. O livro foi posto sob redoma. O sábio contemplava-o em êxtase. Dormia feliz, certo de que a sabedoria inefável estava a dois passos da cama, protegida.

O calor partiu o cristal da redoma, e ao retirar o livro dentre os estilhaços ele cortou a mão, que sangrou sobre o volume, conspurcando a perfeita sabedoria.

Nunca mais foi feliz.
Carlos Drummond de Andrade, "Contos plausíveis"

Crônica das mãos

Os gestos, isto é os actos dos mais elementares aos que exigem precisão, faço com a esquerda. A direita é a dos livros. Só para os livros.

Estou aqui sentado à mesa, com papel e esferográfica, à espera que a crónica chegue e não há maneira de chegar(a maior parte das vezes é assim, demora imenso tempo a decidir-se)

e, de repente, reparo nas minhas mãos. Não são grande coisa, coitadas. Quase tão feias como as de Chopin, que eu imaginava etéreas, de dedos como chamas de círios de igreja quando o guarda-vento se abre e elas se inclinam, a fugirem da corrente de ar, e fiquei de boca aberta ao ver-lhes o molde em gesso.Mesmo assim comovi-me, quer dizer tocaram-me imensos sininhos corpo fora e fiquei para ali a olhá-las, a olhá-las, sentido Chopin todo cá dentro. O compositor favorito de Gide. Tanto sofrimento naquele polaco. E tão humanas aquelas mãos, tão vivas. Bom, reparei nas minhas mãos, reparo agora à medida que escrevo, uma com a caneta, a outra com o cigarro, e espanta-me que se mexam sem ajuda, indiferentes a mim. Eu sou canhoto, faço com a esquerda as coisas mais difíceis mas, a partir de certa altura, passei a usar a direita para desenhar palavras. A caligrafia delas é completamente diferente uma da outra e, o mais curioso, a maneira de ser também. Durante anos e anos, até aos vinte e tal, escrevia sempre com a esquerda e o que saía não me agradava: vários livros inteiros para o lixo. Farto daquilo zanguei-me com ela, passei a caneta para o lado oposto e apareceu-me a Memória de Elefante. Era o que eu procurava, ou seja o embrião do que eu procurava. Estava já tudo ali e, de uma forma totalmente desapaixonada, dei conta que, se desenvolvesse o material, teria o que pretendia ter, através de pacientes conquistas sucessivas. Tirando isso a mão direita para pouco mais serve. Os gestos, isto é os actos dos mais elementares aos que exigem precisão, faço com a esquerda. A direita é a dos livros. Só para os livros. Por exemplo no hospital, as receitas, as histórias clínicas, as ajudas nas cirurgias, as palpações, sei lá, tudo pertencia à esquerda. A outra apenas a encaixava no braço para riscar papel. E assim tem sido até hoje, assim continuará a ser. Mas agora estou a observá-las e a dar-me conta que nos conhecemos mal. Volto-as de uma banda, da outra, encolho e estico os dedos, palpo-as, noto as articulações, os ossos, as veias. Coisa esquisita, as mãos. As minhas pelo menos. A direita está cheia dos calos da caneta: no médio, na ponta do indicador, na ponta do polegar, numa prega da palma em consequência de um quisto sinovial que lhe torceu as linhas por causa da posição do anelar e do mínimo quando trabalho. A colega não tem nada disso: esforçando-se para ser estúpida debitaria as palermices sobre Literatura que se publicam nos jornais e nas revistas do nosso País. Curioso como a ignorância e a pretensão andam a par. Mudei, durante a última frase, a caneta para a esquerda, por uma questão de higiene, já estou na direita outra vez. Olha, tem sardas e os dedos um bocadinho tortos do ofício de escrever. As mãos de Chopin. Quietas, de gesso, e no entanto

e no entanto nada, aí estou eu comovido. Porque carga de água os artistas me comovem tanto? Porque carga de água me indigna a sua morte? Sinto-os por aí, à minha volta: músicos, pintores, escritores, cantores, bailarinos. A mão de Liszt, a mão de Delacroix, a mão de Gontcharov, etc. Se me poisassem no ombro, que alegria. Mão morta, mão morta, vai bater àquela porta. O meu irmão Nuno contou ontem que um doente dele, um menino com autismo, foi passar uns dias às termas com os pais. As termas estão cheias de velhos em cadeiras. Vai daí o menino chegava ao pé deles e perguntava

- Vais morrer hoje?

esta pergunta extraordinária trouxe-me à cabeça que, em criança, me interrogava numa espiral de aflição

- Terei morrido?

e espiava as mãos para ter a certeza. Mexer mexiam-se, mas o que é que isso provava? Nunca tinha visto um morto a não ser nos retratos, a começar pelo irmão do meu pai, que morreu bebé, e não imaginava o que fosse. Se calhar os mortos mexem as mãos, pensava eu, se calhar os mortos mexem as mãos, se calhar são eles quem anda no corredor à noite, antes de se acenderem as luzes. Com a luz acesa escondem-se, claro, por qualquer motivo que eu não entendia detestam o escuro e admirava a coragem dos meus pais por serem capazes de andar no meio deles sem medo que os comessem porque, como toda a gente sabe, os mortos pelam-se por comer os vivos. As minhas mãos mexiam-se, sou capaz de ainda estar vivo. Às vezes via gatos mortos na berma das estradas mas isso eram gatos, não eram pessoas. Uma ocasião atrevi-me

- Estou vivo?

responderam-me

- Que pergunta mais parva

e como

- Que pergunta mais parva

não é sim nem não fiquei indeciso. Fui estudar-me no espelho e estava lá, passei as mãos na cara e, com a cara no espelho cheia de dedos, comecei a acreditar que talvez. Para tirar a prova dei, com toda a força, uma palmada no meu próprio rabo e doeu-me. Como continua a doer se me baterem estou vivo. E os dedos obedeciam todos, as mãos igualmente. Resolvi fazer um soneto para comemorar. Tinha aprendido nos Almanaques Bertrand dos meus avós, cheios de sonetos de senhoras veementes. Os sonetos eram perfeitos e, para mim, estupendos, aos meus faltava-lhes um bocado no caminho da perfeição, os versos saíam com tamanhos diferentes mas tudo aquilo rimava que era uma beleza. Com a mão esquerda, é lógico, a direita a pensar noutra coisa. Ainda hoje acho que os fazedores de antologias deviam pescar para a imortalidade aquelas maravilhas. As das senhoras, claro, não as minhas, tinha consciência que para o génio me faltava ser crescido, ter mais experiência de vida, doze anos por exemplo. Provavelmente a mão direita não estava de acordo comigo mas o que interessa o julgamento da mão? Olhem para ela: não é grande coisa, coitada. Acabou esta crónica mesmo agora. E, se bem a conheço, vai passar uma meia hora ou isso a olhar para o tecto, uma das suas actividades favoritas. É o que te apetece, não é? Olha para o tecto então que eu fico a sonhar com as poetisas do Almanaque Bertrand, cheias de andorinhas e estrelas. Qual Chopin! O que me calhava agora era um soneto desses almanaques a desfazerem-se, assinado Viúva Solitária.

António Lobo Antunes, Revista Visão (14/09/2012)

quarta-feira, setembro 25

Começar o dia

 


O caderninho azul de um aprendiz de feiticeiro

O garoto devia ter uns 10 anos e nessa idade hoje eles já estão cansados de saber de onde vêm os bebês. Queria mais. Queria o etéreo, o mistério para além da biologia profana. ‘Tio”, ele perguntou lá do fundo da sala, num encontro que tive com estudantes, “tio, de onde nascem as crônicas?”

Qualquer pessoa que abre uma tela de computador com a obrigação de em seguida enchê-la de palavrinhas sabe que essa é a pergunta basilar. De onde vem o baião, de onde nasce o mote que deflagra a criação? Eu vi, em 1996, na minha frente, Carlos Heitor Cony escrevendo uma crônica de tamanho médio, de qualidade alta, em não mais que 15 minutos. Acho que Cony sabe a resposta.

Eu, modesto aprendiz de feiticeiro, temeroso de oferecer abstrações ao garoto pragmático, recitei como única pista um caderno azul que carrego há décadas. Existe. Nele fui jogando palavras extravagantes, pensamentos curiosos, frases de efeito, pára-choques de caminhão e tudo o mais que pulsasse letras. Eu esperava que, num dia de crise, uma palavra daquelas, friccionada com as enzimas do crânio, provocasse a faísca, fizesse jorrar aquele filetinho de sangue que escorre da testa de todo autor quando ele encontra o assunto. Sabia que um dia ele me faria sentido. Ei-lo.

É íntimo demais e só vai declarado aqui porque li, ou um professor das antigas me disse, que o cronicar é de exposição do autor, um gênero de bermudas em que o dono delas, geralmente um tímido-assanhado, radicaliza o processo e parte para o desnudamento total diante da plateia.

Abrir o caderninho azul é um strip-tease de cabeça. Confesso que em algum momento da vida anotei nele, para reflexões que me poderiam inspirar mais adiante, tanto uma pergunta do barbudo Enéas num debate de televisão (“Lula, o que você pretende fazer com a bauxita refratária?”), como a máxima do filósofo africano Hardy Har-Har (“Não vai dar certo, Lippy!”). O juiz de futebol Mario Vianna também está perpetuado: “No meu dicionário não tem o verbo modéstia à parte.”

Jamais me acudi diretamente dessas sabedorias alheias, mas sabe-se lá como essas coisas funcionam nas engrenagens internas. São frases ora recolhidas em orações católicas (“Zombam da fé, os insensatos”, do hino “Queremos Deus”), ora em hinos de times de futebol (“Ninguém nos vence em vibração”, do Esporte Clube Bahia), ora em panfletos da Madame Cecília (“Resolve problemas de impotência e safra da lavoura”). Um caos de despropósitos. O locutor da Rádio Relógio propagandeia barato que “Depois do sol, quem ilumina seu lar é a Galeria Silvestre” e, em seguida, antes de dar a hora exata, filosofa que “Cada minuto da vida é um milagre que não se repete”. O argentino Hector Babenco explica por que ficou no Brasil: “Só aqui tem Fanta Uva.”

Comecei a registrar esse garimpo desconexo depois de ter lido, nas entrevistas da Paris Review, que dúzias de grandes autores faziam o mesmo. Anotavam o que lhes parecia curioso, engraçado, estimulante, misterioso – e entregavam à depuração de suas almas. É uma espécie de agenda de elucubrações, uma malhação intelectual, tranco que se dá quando o raciocínio não pega. Sabe-se que meia dúzia de supinos turbinam o bíceps. Mas o que fazem com a gente as palavras que jogamos para dentro?

Não sei, por exemplo, o que fiz exatamente com a informação registrada do filme “Aviso aos navegantes”. Está anotada no meu caderninho. Oscarito, falso médico, diagnostica numa paciente “um desequilíbrio no vago-simpático” e lhe receita “bigamatinil propitelamina composta de efeito fulminante”. Um disparate desses não move uma linha no texto de ninguém. Mas, delícia das delícias, sugere aos feixes nervosos do intelecto o tom de por onde você quer trafegar.

Uma crônica pode nascer de uma palavra, eu disse ao garoto enquanto desfolhava o caderninho azul, e dei como exemplo um texto surgido apenas com a intenção, o resto era detalhe, de encher seis mil toques em louvor à existência entre nós, e não deixar que morresse jamais, a palavra borogodó. Torço para que o mesmo não aconteça com bucentauro, berdamerda, nenúfar, alaúza, tremebunda, obnubilar, nefelibata, buteiro, perrengue, parlapatão, peripatético e outras palavras de muitas sílabas que fui anotando na medida em que elas desapareciam dos livros. Costumo recomendar palavras curtas a quem pede conselhos para escrever bem. Mas, de vez em quando, acho que a proparoxítona cai redonda, pedra de gelo que dá choque térmico e muda o ritmo de um texto telegráfico.

O caderninho azul que ora abro em público é uma tremenda bandeira.

Tem pílulas da ética de Don Corleone (“fique perto dos amigos e muito mais dos inimigos”), máximas cínicas do jornalismo (“a função do bom editor é separar o joio do trigo, e publicar o joio”), mandamentos da masculinidade por John Wayne (“fale com calma, fale devagar e não diga muita coisa”). Qualquer dia desses vou mandá-lo para a minha analista freudiana. Alguns escrevem diários, outros anotam frases soltas. Se existe quem leia a vida das pessoas na borra do café, imagine consultando um caderninho desses.

Anotei nele que “Escrevo para ficar louro e de olhos azuis”, declaração de um escritor perguntado sobre a razão de tanto esforço solitário com as palavras. Pode ser daí, por vaidade, que nasçam as crônicas. Anotei também a sabedoria de Tom Jobim (“O prazo é a grande musa inspiradora”). Pode ser daí, da necessidade mais prática. Donde quer que nasçam esses bucentauros de levezas que às vezes parecem querer dizer outra coisa, como o nome estranho da gôndola dos duques de Veneza, as crônicas só querem mesmo é navegar com o leitor até este porto final e desejar que ele tenha se divertido com a viagem.

Joaquim Ferreira dos Santos, "Em busca do borogodó perdido"

O espelho

—Se quer seguir-me, narro-lhe; não uma aventura, mas experiência, a que me induziram, alternadamente, séries de raciocínios e intuições. Tomou-me tempo, desânimos, esforços. Dela me prezo, sem vangloriar-me. Surpreendo-me, porém, um tanto à-parte de todos, penetrando conhecimento que os outros ainda ignoram. O senhor, por exemplo, que sabe e estuda, suponho nem tenha idéia do que seja na verdade — um espelho? Demais, decerto, das noções de física, com que se familiarizou, as leis da óptica. Reporto-me ao transcendente. Tudo, aliás, é a ponta de um mistério. Inclusive, os fatos. Ou a ausência deles. Duvida? Quando nada acontece, há um milagre que não estamos vendo.

Fixemo-nos no concreto. O espelho, são muitos, captando-lhe as feições; todos refletem-lhe o rosto, e o senhor crê-se com o aspecto próprio e praticamente imudado, do qual lhe dão imagem fiel. Mas — que espelho? Há-os “bons” e “maus”, os que favorecem e os que detraem; e os que são apenas honestos, pois não. E onde situar o nível e ponto dessa honestidade ou fidedignidade? Como é que o senhor, eu, os restantes próximos, somos, no visível? O senhor dirá: as fotografias o comprovam. Respondo: que, além de prevalecerem para as lentes das máquinas objeções análogas, seus resultados apóiam antes que desmentem a minha tese, tanto revelam superporem-se aos dados iconográficos os índices do misterioso. Ainda que tirados de imediato um após outro, os retratos sempre serão entre si muito diferentes. Se nunca atentou nisso, é porque vivemos, de modo incorrigível, distraídos das coisas mais importantes. E as máscaras, moldadas nos rostos? Valem, grosso modo, para o falquejo das formas, não para o explodir da expressão, o dinamismo fisionômico. Não se esqueça, é de fenômenos sutis que estamos tratando.

Resta-lhe argumento: qualquer pessoa pode, a um tempo, ver o rosto de outra e sua reflexão no espelho. Sem sofisma, refuto-o. O experimento, por sinal ainda não realizado com rigor, careceria de valor científico, em vista das irredutíveis deformações, de ordem psicológica. Tente, aliás, fazê-lo, e terá notáveis surpresas. Além de que a simultaneidade torna-se impossível, no fluir de valores instantâneos. Ah, o tempo é o mágico de todas as traições... E os próprios olhos, de cada um de nós, padecem viciação de origem, defeitos com que cresceram e a que se afizeram, mais e mais. Por começo, a criancinha vê os objetos invertidos, daí seu desajeitado tactear; só a pouco e pouco é que consegue retificar, sobre a postura dos volumes externos, uma precária visão. Subsistem, porém, outras pechas, e mais graves. Os olhos, por enquanto, são a porta do engano; duvide deles, dos seus, não de mim. Ah, meu amigo, a espécie humana peleja para impor ao latejante mundo um pouco de rotina e lógica, mas algo ou alguém de tudo faz frincha para rir-se da gente... E então?

Note que meus reparos limitam-se ao capítulo dos espelhos planos, de uso comum. E os demais — côncavos, convexos, parabólicos — além da possibilidade de outros, não descobertos, apenas, ainda? Um espelho, por exemplo, tetra ou quadridimensional? Parece-me não absurda, a hipótese. Matemáticos especializados, depois de mental adestramento, vieram a construir objetos a quatro dimensões, para isso utilizando pequenos cubos, de várias cores, como esses com que os meninos brincam. Duvida?

Vejo que começa a descontar um pouco de sua inicial desconfiança, quanto ao meu são juízo. Fiquemos, porém, no terra-a-terra. Rimo-nos, nas barracas de diversões, daqueles caricatos espelhos, que nos reduzem a mostrengos, esticados ou globosos. Mas, se só usamos os planos — e nas curvas de um bule tem-se sofrível espelho convexo, e numa colher brunida um concavo razoável — deve-se a que primeiro a humanidade mirou-se nas superfícies de água quieta, lagoas, lameiros, fontes, delas aprendendo a fazer tais utensílios de metal ou cristal. Tirésias, contudo, já havia predito ao belo Narciso que ele viveria apenas enquanto a si mesmo não se visse... Sim, são para se ter medo, os espelhos.

Temi-os, desde menino, por instintiva suspeita. Também os animais negam-se a encará-los, salvo as críveis excepções. Sou do interior, o senhor também; na nossa terra, diz-se que nunca se deve olhar em espelho às horas mortas da noite, estando-se sozinho. Porque, neles, às vezes, em lugar de nossa imagem, assombra-nos alguma outra e medonha visão. Sou, porém, positivo, um racional, piso o chão a pés e patas. Satisfazer-me com fantásticas não-explicações? — jamais. Que amedrontadora visão seria então aquela? Quem o Monstro?

Sendo talvez meu medo a revivescência de impressões atávicas? O espelho inspirava receio supersticioso aos primitivos, aqueles povos com a ideia de que o reflexo de uma pessoa fosse a alma. Via de regra, sabe-o o senhor, é a superstição fecundo ponto de partida para a pesquisa. A alma do espelho — anote-a — esplêndida metáfora. Outros, aliás, identificavam a alma com a sombra do corpo; e não lhe terá escapado a polarização: luz — treva. Não se costumava tapar os espelhos, ou voltá-los contra a parede, quando morria alguém da casa? 

Se, além de os utilizarem nos manejos da magia, imitativa ou simpática, videntes serviam-se deles, como da bola de cristal, vislumbrando em seu campo esboços de futuros fatos, não será porque, através dos espelhos, parece que o tempo muda de direção e de velocidade? Alongo-me, porém. Contava-lhe...

Foi num lavatório de edifício público, por acaso. Eu era moço, comigo contente, vaidoso. Descuidado, avistei... Explico-lhe: dois espelhos — um de parede, o outro de porta lateral, aberta em ângulo propício — faziam jogo. E o que enxerguei, por instante, foi uma figura, perfil humano, desagradável ao derradeiro grau, repulsivo senão hediondo. Deu-me náusea, aquele homem, causava-me ódio e susto, eriçamento, espavor. E era — logo descobri... era eu, mesmo! O senhor acha que eu algum dia ia esquecer essa revelação?

Desde aí, comecei a procurar-me — ao eu por detrás de mim — à tona dos espelhos, em sua lisa, funda lâmina, em seu lume frio. Isso, que se saiba, antes ninguém tentara. Quem se olha em espelho, o faz partindo de preconceito afetivo, de um mais ou menos falaz pressuposto: ninguém se acha na verdade feio: quando muito, em certos momentos, desgostamo-nos por provisoriamente discrepantes de um ideal estético já aceito. Sou claro? O que se busca, então, é verificar, acertar, trabalhar um modelo subjetivo, preexistente; enfim, ampliar o ilusório, mediante sucessivas novas capas de ilusão. Eu, porém, era um perquiridor imparcial, neutro absolutamente. O caçador de meu próprio aspecto formal, movido por curiosidade, quando não impessoal, desinteressada; para não dizer o urgir científico. Levei meses.

Sim, instrutivos. Operava com toda a sorte de astúcias: o rapidíssimo relance, os golpes de esguelha, a longa obliquidade apurada, as contra-surpresas, a finta de pálpebras, a tocaia com a luz de-repente acesa, os ângulos variados incessantemente. Sobretudo, uma inembotável paciência. Mirava-me, também, em marcados momentos — de ira, medo, orgulho abatido ou dilatado, extrema alegria ou tristeza. Sobreabriram-se-me enigmas. Se, por exemplo, em estado de ódio, o senhor enfrenta objetivamente a sua imagem, o ódio reflui e recrudesce, em tremendas multiplicações: e o senhor vê, então, que, de fato, só se odeia é a si mesmo. Olhos contra os olhos. Soube-o: os olhos da gente não têm fim. Só eles paravam imutáveis, no centro do segredo. Se é que de mim não zombassem, para lá de uma máscara. Porque, o resto, o rosto, mudava permanentemente. O senhor, como os demais, não vê que seu rosto é apenas um movimento deceptivo, constante. Não vê, porque mal advertido, avezado; diria eu: ainda adormecido, sem desenvolver sequer as mais necessárias novas percepções. Não vê, como também não se veem, no comum, os movimentos translativo e rotatório deste planeta Terra, sobre que os seus e os meus pés assentam. Se quiser, não me desculpe; mas o senhor me compreende.

Sendo assim, necessitava eu de transverberar o embuço, a travisagem daquela máscara, a fito de devassar o núcleo dessa nebulosa — a minha vera forma. Tinha de haver um jeito. Meditei-o. Assistiram-me seguras inspirações.

Concluí que, interpenetrando-se no disfarce do rosto externo diversas componentes, meu problema seria o de submetê-las a um bloqueio “visual” ou anulamento perceptivo, a suspensão de uma por uma, desde as mais rudimentares, grosseiras, ou de inferior significado. Tomei o elemento animal, para começo.

Parecer-se cada um de nós com determinado bicho, relembrar seu facies, é fato. Constato-o, apenas; longe de mim puxar à bimbalha temas de metempsicose ou teorias biogenéticas. De um mestre, aliás, na ciência de Lavater, eu me inteirara no assunto. Que acha? Com caras e cabeças ovinas ou equinas, por exemplo, basta-lhe relancear a multidão ou atentar nos conhecidos, para reconhecer que os há, muitos. Meu sósia inferior na escala era, porém — a onça. Confirmei-me disso. E, então, eu teria que, após dissociá-los meticulosamente, aprender a não ver, no espelho, os traços que em mim recordavam o grande felino. Atirei-me a tanto.

Releve-me não detalhar o método ou métodos de que me vali, e que revezavam a mais buscante análise e o estrênuo vigor de abstração. Mesmo as etapas preparatórias dariam para aterrar a quem menos pronto ao árduo. Como todo homem culto, o senhor não desconhece a Ioga, e já a terá praticado, quando não seja, em suas mais elementares técnicas. E, os “exercícios espirituais” dos jesuítas, sei de filósofos e pensadores incréus que os cultivam, para aprofundarem-se na capacidade de concentração, de par com a imaginação criadora... Enfim, não lhe oculto haver recorrido a meios um tanto empíricos: gradações de luzes, lâmpadas coloridas, pomadas fosforescentes na obscuridade. 

Só a uma expediência me recusei, por medíocre senão falseadora, a de empregar outras substâncias no aço e estanhagem dos espelhos. Mas, era principalmente no modus de focar, na visão parcialmente alheada, que eu tinha de agilitar-me: olhar não-vendo. Sem ver o que, em “meu” rosto, não passava de reliquat bestial. Ia-o conseguindo?

Saiba que eu perseguia uma realidade experimental, não uma hipótese imaginária. E digo-lhe que nessa operação fazia reais progressos. Pouco a pouco, no campo-de-vista do espelho, minha figura reproduzia-se-me lacunar, com atenuadas, quase apagadas de todo, aquelas partes excrescentes. Prossegui. Já aí, porém, decidindo-me a tratar simultaneamente as outras componentes, contingentes e ilusivas. Assim, o elemento hereditário — as parecenças com os pais e avós — que são também, nos nossos rostos, um lastro evolutivo residual. 

Ah, meu amigo, nem no ovo o pinto está intacto. E, em seguida, o que se deveria ao contágio das paixões, manifestadas ou latentes, o que ressaltava das desordenadas pressões psicológicas transitórias. E, ainda, o que, em nossas caras, materializa ideias e sugestões de outrem; e os efêmeros interesses, sem sequência nem antecedência, sem conexões nem fundura. Careceríamos de dias, para explicar-lhe. Prefiro que tome minhas afirmações por seu valor nominal.

À medida que trabalhava com maior mestria, no excluir, abstrair e abstrar, meu esquema perspectivo clivava-se, em forma meândrica, a modos de couve-flor ou bucho de boi, e em mosaicos, e francamente cavernoso, com uma esponja. E escurecia-se. Por aí, não obstante os cuidados com a saúde, comecei a sofrer dores de cabeça. Será que me acovardei, sem menos? Perdoe-me, o senhor, o constrangimento, ao ter de mudar de tom para confidência tão humana, em nota de fraqueza inesperada e indigna. Lembre-se, porém, de Terêncio. Sim, os antigos; acudiu-me que representavam justamente com um espelho, rodeado de uma serpente, a Prudência, como divindade alegórica. De golpe, abandonei a investigação. Deixei, mesmo, por meses, de me olhar em qualquer espelho.

Mas, com o comum correr quotidiano, a gente se aquieta, esquece-se de muito. O tempo, em longo trecho, é sempre tranquilo. E pode ser, não menos, que encoberta curiosidade me picasse. Um dia... Desculpe-me, não viso a efeitos de ficcionista, inflectindo de propósito, em agudo, as situações. Simplesmente lhe digo que me olhei num espelho e não me vi. Não vi nada. Só o campo, liso, às vácuas, aberto como o sol, água limpíssima, à dispersão da luz, tapadamente tudo. Eu não tinha formas, rosto? Apalpei-me, em muito. Mas, o invisto. O ficto. O sem evidência física. Eu era — o transparente contemplador?... Tirei-me. Aturdi-me, a ponto de me deixar cair numa poltrona.

Com que, então, durante aqueles meses de repouso, a faculdade, antes buscada, por si em mim se exercitara! Para sempre? Voltei a querer encarar-me. Nada. E, o que tomadamente me estarreceu: eu não via os meus olhos. No brilhante e polido nada, não se me espelhavam nem eles!

Tanto dito que, partindo para uma figura gradualmente simplificada, despojara-me, ao termo, até à total desfigura. E a terrível conclusão: não haveria em mim uma existência central, pessoal, autônoma? Seria eu um... des-almado? Então, o que se me fingia de um suposto eu, não era mais que, sobre a persistência do animal, um pouco de herança, de soltos instintos, energia passional estranha, um entrecruzar-se de influências, e tudo o mais que na impermanência se indefine? 

Diziam-me isso os raios luminosos e a face vazia do espelho — com rigorosa infidelidade. E, seria assim, com todos? Seríamos não muito mais que as crianças — o espírito do viver não passando de ímpetos espasmódicos, relampejados entre miragens: a esperança e a memória.

Mas, o senhor estará achando que desvario e desoriento-me, confundindo o físico, o hiperfísico e o transfísico, fora do menor equilíbrio de raciocínio ou alinhamento lógico — na conta agora caio. Estará pensando que, do que eu disse, nada se acerta, nada prova nada. Mesmo que tudo fosse verdade, não seria mais que reles obsessão auto-sugestiva, e o despropósito de pretender que psiquismo ou alma se retratassem em espelho...

Dou-lhe razão. Há, porém, que sou um mau contador, precipitando-me às ilações antes dos fatos, e, pois: pondo os bois atrás do carro e os chifres depois dos bois. Releve-me. E deixe que o final de meu capítulo traga luzes ao até agora aventado, canhestra e antecipadamente.

São sucessos muito de ordem íntima, de caráter assaz esquisito. Narro-os, sob palavra, sob segredo. Pejo-me. Tenho de demais resumi-los.

Pois foi que, mais tarde, anos, ao fim de uma ocasião de sofrimentos grandes, de novo me defrontei — não rosto a rosto. O espelho mostrou-me. Ouça. Por um certo tempo, nada enxerguei. Só então, só depois: o tênue começo de um quanto como uma luz, que se nublava, aos poucos tentando-se em débil cintilação, radiância. Seu mínimo ondear comovia-me, ou já estaria contido em minha emoção? Que luzinha, aquela, que de mim se emitia, para deter-se acolá, refletida, surpresa? Se quiser, infira o senhor mesmo.

São coisas que se não devem entrever; pelo menos, além de um tanto. São outras coisas, conforme pude distinguir, muito mais tarde — por último — num espelho. Por aí, perdoe-me o detalhe, eu já amava — já aprendendo, isto seja, a conformidade e a alegria. E... Sim, vi, a mim mesmo, de novo, meu rosto, um rosto; não este, que o senhor razoavelmente me atribui. Mas o ainda-nem-rosto — quase delineado, apenas — mal emergindo, qual uma flor pelágica, de nascimento abissal... E era não mais que: rostinho de menino, de menos-que-menino, só. Só. Será que o senhor nunca compreenderá?

Devia ou não devia contar-lhe, por motivos de talvez. Do que digo, descubro, deduzo. Será, se? Apalpo o evidente? Tresbusco. Será este nosso desengonço e mundo o plano — intersecção de planos — onde se completam de fazer as almas?
Se sim, a “vida” consiste em experiência extrema e séria; sua técnica — ou pelo menos parte — exigindo o consciente alijamento, o despojamento, de tudo o que obstrui o crescer da alma, o que a atulha e soterra? Depois, o “salto mortale”... — digo-o, do jeito, não porque os acrobatas italianos o aviventaram, mas por precisarem de toque e timbre novos as comuns expressões, amortecidas... E o julgamento-problema, podendo sobrevir com a simples pergunta: — “Você chegou a existir?”

Sim? Mas, então, está irremediavelmente destruída a concepção de vivermos em agradável acaso, sem razão nenhuma, num vale de bobagens? Disse. Se me permite, espero, agora, sua opinião, mesma, do senhor, sobre tanto assunto. Solicito os reparos que se digne dar-me, a mim, servo do senhor, recente amigo, mas companheiro no amor da ciência, de seus transviados acertos e de seus esbarros titubeados. Sim?
Guimarães Rosa, "Primeiras estórias"

Progresso

Estamos nus como os gregos na Acrópole
e o sol que nos mira também os fitou.
Mas fazemos amor de relógio no pulso.

Rui Knopfli, "O Passo Trocado"

A solidão

Um jornalista filantropo disse-me que a solidão é má para o homem, e, em apoio a sua tese, cita, como todos os incrédulos, as palavras dos Padres da Igreja.

Eu sei que o Demônio frequenta prazerosamente os lugares áridos e que o Espírito do assassínio e da lubricidade inflama-se maravilhosamente na solidão. Mas é possível que esta solidão não seja perigosa senão para almas ociosas e divagantes que povoam suas paixões e suas quimeras.


É certo que um tagarela, cujo supremo prazer consiste em falar do alto de um púlpito ou de uma tribuna, se arriscaria a tornar-se um louco furioso na ilha de Robinson. Eu não exijo de meu jornalista as corajosas virtudes de Crusoé, mas peço que ele não acuse os amantes da solidão e do mistério.

Há, em nossas raças faladoras, indivíduos que aceitariam com menos repugnância o suplício supremo se lhes fosse permitido fazer do alto do cadafalso uma copiosa arenga, sem medo de que os tambores de Santerre lhes cortassem intempestivamente a palavra.

Não me apiedo deles, porque adivinho que suas efusões oratórias procuram volúpias iguais àquelas que outros tiram do silêncio e do recolhimento; mas eu os desprezo.

Desejo, sobretudo, que meu maldito jornalista deixe que eu me divirta a meu modo. “O senhor nunca aprova”, disse me ele, com um tom anasalado muito apostólico, “a necessidade de compartilhar suas alegrias?” Vejam vocês o sutil invejoso! Ele sabe que desdenho as alegrias dele e vem se insinuando nas minhas, o horroroso estraga-festas.

“Essa grande infelicidade de não poder estar só!...”, disse em algum lugar La Bruyère, como para envergonhar a todos os que correm para se perderem na multidão, temendo, sem dúvida, não poder suportar-se a si mesmos.

“Quase todos os nossos males nos vêm de não termos sabido ficar em nossos quartos”, disse um outro sábio, Pascal, creio, lembrando assim na sua cela de recolhimento todos estes enlouquecidos que procuram a felicidade no movimento e numa prostituição que eu poderia chamar de fraternária, se quisesse falar na bela língua do meu século.

Charles Baudelaire, "Pequenos poemas em prosa"