sexta-feira, setembro 13

Pronta para a sexta

 


Vale a pena


Às vezes ouço passar o vento; e só de ouvir o vento passar, vale a pena ter nascido
Fernando Pessoa

Episódio do inimigo

Tantos anos fugindo e esperando, e agora o inimigo estava em minha casa. Da janela eu o vi subir penosamente pelo áspero caminho da montanha. Ajudava-se com um bastão, um bastão rústico que em velhas mãos jamais poderia ser uma arma, mas tão somente um báculo. Custei a dar-me conta do que esperava: a fraca batida em minha porta. Olhei, não sem nostalgia, meus manuscritos, o rascunho não terminado e o tratado de Artemidoro sobre os sonhos, um livro um tanto anômalo neste conjunto, já que não sei grego. Outro dia perdido, pensei.

Tive que fazer força com a chave. Receei que o homem se despencasse, porém deu alguns passos incertos, soltou o bastão (que não voltei a ver) e caiu vencido em minha cama. Minha ansiedade o havia imaginado muitas vezes, mas só então notei que se parecia, de um modo quase fraternal, com o último retrato de Lincoln. Seriam as quatro horas da tarde.

Inclinei-me sobre ele para que me ouvisse: — A gente pensa que os anos passam somente para nós mesmos — disse — porém eles passam também para os outros. Aqui nos encontramos, afinal, e o que aconteceu antes não tem sentido.

Enquanto eu falava, ele havia desabotoado o sobretudo. Sua mão direita estava no bolso do paletó. Assinalava algo, e eu senti que era um revólver.

Disse-me, então, com voz firme: — Para entrar em sua casa, recorri à compaixão. Tenho-o agora à minha mercê e não sou misericordioso.

Ensaiei algumas palavras. Não sou um homem forte e somente as palavras poderiam salvar-me. Consegui dizer: — É verdade que há tempos maltratei uma criança, mas você já não é aquela criança nem eu sou aquele insensato. Além disso, a vingança não é menos vaidosa e ridícula do que o perdão.

— Precisamente porque já não sou aquela criança — replicou — é que tenho que matá-lo. Não se trata de uma vingança, mas sim de um ato de justiça. Seus argumentos, Borges, são meros estratagemas de seu terror para que eu não o mate. Você já não pode fazer nada.

— Posso fazer uma coisa — respondi.

— Qual?

— Acordar.

E assim o fiz.

Jorge Luís Borges, "Livro de Sonhos"

Pecados da lusofonia

Conta a minha mãe que em pequena aprendi quimbundo em vez de português. Conta ainda a minha mãe que eu não só falava quimbundo como gostava de comer funje e de dançar com as lavadeiras dos vizinhos. Os meus pais nada sabiam de quimbundo portanto não sei até que ponto eu me expressei em quimbundo, possivelmente repeti algumas palavras que ouvi aos filhos das lavadeiras com quem brincava e pouco mais. Lembro-me no entanto de me aperceber mais tarde de que havia um conflito entre a nossa língua e as línguas deles.

As línguas deles nunca eram usadas oficialmente. Nas escolas, nos hospitais ou nas repartições públicas só se falava português e a maioria dos colonos ridicularizava os negros por não serem capazes de pronunciar algumas palavras portuguesas e por não usarem devidamente as regras gramaticais. Para a maioria dos colonos essa incapacidade era sinónimo de pouca capacidade intelectual e prova irrefutável de que eles não saberiam governar-se sozinhos. Chamavam por isso matumbos aos negros. Os brancos usavam muitas vezes palavras da língua deles para os insultarem. O uso da língua deles limitava-se praticamente a isso. Porque só o que é familiar pode ferir profundamente mais.

O facto de a maioria dos brancos não saber das línguas deles mais do que meia dúzia de insultos não era visto como sinal de pouca capacidade intelectual, era apenas sinal de que a língua deles não tinha interesse e ainda que os brancos desconfiassem que eles conspiravam na língua deles nem assim perdiam tempo com isso. Os negros e as línguas deles não eram uma ameaça perante o poder que os brancos e, consequentemente a língua dos brancos, tinham.

Segundo a wikipédia, a Lusofonia é o conjunto de algumas identidades culturais existentes em países, regiões, estados ou cidades falantes da língua portuguesa, como Angola, Brasil, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Macau, Moçambique, Portugal, São Tomé e Príncipe, Timor-Leste, Goa, Damão e Diu, e também por diversas pessoas e comunidades em todo o mundo. Alguns teóricos que a estudam advogam que temos de entender a lusofonia no presente, isto é, sem o peso dos factos históricos que lhe deram origem.

Creio não ser possível pensar na lusofonia sem ter em conta os cinco séculos de Império e Portugal como colonizador. A lusofonia é fruto do Império. Desfizemo-nos do Império como se fosse uma camisa velha, no dizer do Professor Eduardo Lourenço. Penso que o mais correcto será dizer que quisemos desfazer-nos do Império como se fosse uma camisa velha mas que nunca o conseguiremos fazer porque o Império nos moldou enquanto povo, no passado, tal como a falta dele nos vai moldando o presente. Talvez por isso seja difícil fazerem-se ouvir vozes lúcidas sobre o Império. Renegamo-lo ou exaltamo-lo consoante as nossas perspectivas de vida e credo político, mas raramente conseguimos abordar com profundidade o que foi efectivamente o Império e o que dele restou.

Dizia que cresci testemunhando que uma língua pode ser uma arma muito poderosa e verifiquei que a língua dos mais fortes ganha. Por ser uma criança, não me pude aperceber de que a língua portuguesa em Luanda expressava o domínio de uns e a submissão de outros, e quando muitos anos mais tarde comecei a pensar no que tinha testemunhado era já ponto assente que o Império Português nunca deveria ter existido e que uma das grandes conquistas da Revolução de Abril tinha sido acabar com esse crime da Pátria.

Poucas vezes terei ouvido que a marca mais visível, ou melhor, mais audível desse crime é exactamente a língua. A língua portuguesa é a marca mais permanente da colonização que Portugal empreendeu. Aquando da descolonização, para os novos estados independentes era demasiado tarde ou demasiado cedo para escolherem outra língua que não o português como sua língua oficial. Lembro-me de algumas canções que os negros cantavam e que tinham palavras portuguesas pelo meio. Um dia perguntei a razão e explicaram-me que não havia uma palavra em quimbundo para o que queriam dizer. Uma dessas palavras era "identidade". Outra dessas palavras era "documento".
Dulce Maria Cardoso

Mágica & mistério

Há espíritos simplistas, que acham que tem de haver uma explicação para tudo.
E que, explicada a coisa, foi-se o mistério!

Principalmente esses que insistem em desmontar os poemas, como se quisessem desmascarar o poeta.

Eles me fazem lembrar aquelas pessoas “espertas” de certa cidadezinha do interior, as quais, indo assistir à função de um mágico, puseram-se a bradar no meio do espetáculo:

“Isso é truque! Não pega! É truque! É truque!”

Mas, para alívio das almas compassivas, acrescento que o pobre mágico sempre conseguiu escapar com vida por trás dos bastidores.

Mário Quintana, "Caderno H"

quinta-feira, setembro 12

Manhã


 

O homem, as viagens

O homem, bicho da Terra tão pequeno
Chateia-se na Terra
Lugar de muita miséria e pouca diversão,
Faz um foguete, uma cápsula, um módulo
Toca para a Lua
Desce cauteloso na Lua
Pisa na Lua
Planta bandeira na Lua
Experimenta a Lua
Coloniza a Lua
Civiliza a Lua
Humaniza a Lua.
Lua humanizada: tão igual à Terra.
O homem chateia-se na Lua.
Vamos para Marte – ordena a suas máquinas.
Elas obedecem, o homem desce em Marte
Pisa em Marte
Experimenta
Coloniza
Civiliza
Humaniza Marte com engenho e arte.
Marte humanizado, que lugar quadrado
Vamos a outra parte?
Claro – diz o engenho
Sofisticado e dócil.
Vamos a Vênus
O homem põe o pé em Vênus,
Vê o visto – é isto?
Idem
Idem
Idem.
O homem funde a cuca se não for a Júpiter
Proclamar justiça junto com injustiça
Repetir a fossa
Repetir o inquieto
Repetitório.
Outros planetas restam para outras colônias.
O espaço todo vira Terra-a-terra.
O homem chega ao Sol ou dá uma volta
Só para tever?
Não-vê que ele inventa
Roupa insiderável de viver no Sol.
Põe o pé e:
Mas que chato é o Sol, falso touro
Espanhol domado.
Testam outros sistemas fora
Do solar a colonizar.
Ao acabarem todos
Só resta ao homem
(Estará equipado?)
A dificílima dangerosíssima viagem
De si a si mesmo:
Pôr o pé no chão
Do seu coração
Experimentar, colonizar, civilizar
Humanizar o homem
Descobrindo em suas próprias inexploradas entranhas
A perene, insuspeitada alegria de con-viver.
Carlos Drummond de Andrade

A Bahia de bonde

O bonde não era apenas um meio de transporte para o moço vindo do interior, mostrava-se como uma diversão agradável, curtição pura, que fazia bem quando passava pelos locais pitorescos da cidade. O uniforme cáqui do motorneiro, fazendo parte do uso cotidiano chapéu e gravata borboleta, o barulho do condutor ao recolher o dinheiro das passagens, batendo as moedas umas contra as outras na mão, a figura marcante do vendedor de balas e bombons, com sua cesta de vime, a sensação deliciosa de viajar pendurado no estribo, tudo isso o impressionava quando estava viajando de bonde, em especial quando havia o desafio de subir e descer do transporte sobre trilhos ainda em movimento.
No domingo azul de verão, chamou-lhe a atenção, entre os passageiros, dois homens bigodudos no bonde, de fraque, gravata borboleta, usavam o chapéu da última moda. Certamente iam participar de alguma solenidade cívica, festa de formatura comemorada no salão nobre de alguma instituição.


Tinha a sensação de que a cidade andava nos trilhos, surpreendia às vezes quando aparecia iluminada com pedaços do mar por algum recorte da paisagem espremida entre os prédios ou ao largo sem edifícios e casarões. Sentado no banco de madeira, na medida em que o bonde rolava pelos trilhos, o olhar curioso dirigia-se para casarões, sobrados, igrejas e jardins. Na orla, o mar espumejava com as suas jubas brancas, perto da praia, vidrilhando nos dias de verão. Era como uma piscina enorme na praia do Porto da Barra.

O melhor lugar para contemplar o cenário da Baía de Todos os Santos, que a natureza ofertava de graça no dia descaindo de azul, era quando se debruçava em uma das balaustradas laterais ligadas à plataforma do Elevador Lacerda. No desembarque pela parte da Cidade Alta, as pessoas tinham acesso à Praça Tomé de Sousa, também conhecida como Municipal.

Sentava na cadeira de uma das mesas postas no passeio, como extensão da lanchonete A Cubana, localizada perto da catraca na saída e entrada do elevador. Depois de tomar o copo de vitamina de abacate, acompanhada dos deliciosos bolinhos da lanchonete, da balaustrada avistava o Forte de São Marcelo lá embaixo na baía, erguido de dentro das águas mansas do mar. Nas proximidades lanchas na Marina, como berços embaladas pelo vento cadenciado nos movimentos brandos, barcos ancorados na tarde salgada. Para o lado direito, as docas, o porto no vaivém do embarque e desembarque de gente e mercadoria, o cais com seus guindastes gigantescos, navios de carga como casas de ferro, vindos de mares longínquos.

Não se cansava de olhar a paisagem bonita de ver. Na península de Itapagipe, longe, a colina sagrada do Bonfim, com suas palmeiras-imperiais, no alto ficava a igreja do padroeiro da cidade. Ia ficando a cada ano pequena para o grande número de fiéis vindos dos lugares mais distantes para conhecê-la com seus mistérios e graças. Encantados, os olhos queriam pegar a paisagem com o seu forte brilho, contornos e desenhos, iluminada em cima com um céu azul, embaixo com um mar também azul, ambos banhados da luz intensa, de cegar as vistas, só existente na Bahia. A cidade insinuada nas linhas do horizonte, balançando nas ondas, dos longes das águas era avistada pendurada nos casarões erguidos nos morros e encostas.

Seus olhos ficavam lavados de azul com a paisagem esplêndida que acabara de contemplar. Cheio de vida, a refletir no rosto jovem, caminhava até a Praça da Sé onde tomaria o bonde na direção da Rua Carlos Gomes. Vento morno soprava na tarde, aragem mansa envolvia-o nos passos que seguiam despreocupados.

À vontade do... escritor

Liev Tolstói


Lembro-me perfeitamente de o meu pai nos contar que Balzac escrevia de pé, numa espécie de prancheta inclinada, semelhante a um estirador de arquitecto, e ia atirando para o chão as folhas que concluía, apanhando-as apenas ao final da jornada de trabalho. Onde leu ele isto, não sei, pois então não existia Internet, esse depósito de informações inúteis; provavelmente num livro sobre Balzac, ou nem isso, num livro que apenas o mencionasse en passant, isto para usar uma expressão na língua do autor de A Mulher de Trinta Anos. Bem, a verdade é que foi num livro que li há muito pouco tempo (e também en passant, porque o dito livro não é sobre escritores) que Balzac não estava sozinho na opção de escrever as suas obras nessa estranha posição, pois escreviam igualmente de pé, apoiados numa escrivaninha alta, Hemingway, Virginia Woolf, Dickens, Lewis Carroll e o querido Philip Roth. E que escritores ainda mais excêntricos (em termos de postura a criar) escolhiam escrever deitados, sendo isso mais ou menos esperado num Proust sempre doente, mas já não tanto em Truman Capote, Mark Twain ou até George Orwell que se definiu, aliás, como um autor "completamente horizontal" e incapaz de pensar estando na vertical...

Uma teoria nova

Ao passo que D. Evarista, em lágrimas, vinha buscando o Rio de Janeiro, Simão Bacamarte estudava por todos os lados uma certa ideia arrojada e nova, própria a alargar as bases da psicologia. Todo o tempo que lhe sobrava dos cuidados da Casa Verde, era pouco para andar na rua, ou de casa em casa, conversando as gentes, sobre trinta mil assuntos, e virgulando as falas de um olhar que metia medo aos mais heroicos.

Um dia de manhã,— eram passadas três semanas,— estando Crispim Soares ocupado em temperar um medicamento, vieram dizer-lhe que o alienista o mandava chamar.

— Trata-se de negócio importante, segundo ele me disse, acrescentou o portador.

Crispim empalideceu. Que negócio importante podia ser, se não alguma notícia da comitiva, e especialmente da mulher? Porque este tópico deve ficar claramente definido, visto insistirem nele os cronistas; Crispim amava a mulher, e, desde trinta anos, nunca estiveram separados um só dia. Assim se explicam os monólogos que ele fazia agora, e que os fâmulos lhe ouviam muita vez: — "Anda, bem feito, quem te mandou consentir na viagem de Cesária? Bajulador, torpe bajulador! Só para adular ao Dr. Bacamarte. Pois agora aguenta-te; anda, aguenta-te, alma de lacaio, fracalhão, vil, miserável. Dizes amem a tudo, não é? aí tens o lucro, biltre!" — E muitos outros nomes feios, que um homem não deve dizer aos outros, quanto mais a si mesmo. Daqui a imaginar o efeito do recado é um nada. Tão depressa ele o recebeu como abriu mão das drogas e voou à Casa Verde.


Simão Bacamarte recebeu-o com a alegria própria de um sábio, uma alegria abotoada de circunspeção até o pescoço.

— Estou muito contente, disse ele.

— Notícias do nosso povo? perguntou o boticário com a voz trêmula.

O alienista fez um gesto magnífico, e respondeu:

— Trata-se de coisa mais alta, trata-se de uma experiência científica. Digo experiência, porque não me atrevo a assegurar desde já a minha ideia; nem a ciência é outra coisa, Sr. Soares, senão uma investigação constante. Trata-se, pois, de uma experiência, mas uma experiência que vai mudar a face da Terra. A loucura, objeto dos meus estudos, era até agora uma ilha perdida no oceano da razão; começo a suspeitar que é um continente.

Disse isto, e calou-se, para ruminar o pasmo do boticário. Depois explicou compridamente a sua ideia. No conceito dele a insânia abrangia uma vasta superfície de cérebros; e desenvolveu isto com grande cópia de raciocínios, de textos, de exemplos. Os exemplos achou-os na história e em Itaguaí mas, como um raro espírito que era, reconheceu o perigo de citar todos os casos de Itaguaí e refugiou-se na história. Assim, apontou com especialidade alguns personagens célebres, Sócrates, que tinha um demônio familiar, Pascal, que via um abismo à esquerda, Maomé, Caracala, Domiciano, Calígula, etc., uma enfiada de casos e pessoas, em que de mistura vinham entidades odiosas, e entidades ridículas. E porque o boticário se admirasse de uma tal promiscuidade, o alienista disse-lhe que era tudo a mesma coisa, e até acrescentou sentenciosamente:

— A ferocidade, Sr. Soares, é o grotesco a sério.

— Gracioso, muito gracioso! exclamou Crispim Soares levantando as mãos ao céu.

Quanto à ideia de ampliar o território da loucura, achou-a o boticário extravagante; mas a modéstia, principal adorno de seu espírito, não lhe sofreu confessar outra coisa além de um nobre entusiasmo; declarou-a sublime e verdadeira, e acrescentou que era "caso de matraca". Esta expressão não tem equivalente no estilo moderno. Naquele tempo, Itaguaí que como as demais vilas, arraiais e povoações da colônia, não dispunha de imprensa, tinha dois modos de divulgar uma notícia; ou por meio de cartazes manuscritos e pregados na porta da Câmara, e da matriz; — ou por meio de matraca.

Eis em que consistia este segundo uso. Contratava-se um homem, por um ou mais dias, para andar as ruas do povoado, com uma matraca na mão.

De quando em quando tocava a matraca, reunia-se gente, e ele anunciava o que lhe incumbiam, — um remédio para sezões, umas terras lavradias, um soneto, um donativo eclesiástico, a melhor tesoura da vila, o mais belo discurso do ano, etc. O sistema tinha inconvenientes para a paz pública; mas era conservado pela grande energia de divulgação que possuía. Por exemplo, um dos vereadores, — aquele justamente que mais se opusera à criação da Casa Verde, — desfrutava a reputação de perfeito educador de cobras e macacos, e aliás nunca domesticara um só desses bichos; mas, tinha o cuidado de fazer trabalhar a matraca todos os meses. E dizem as crônicas que algumas pessoas afirmavam ter visto cascavéis dançando no peito do vereador; afirmação perfeitamente falsa, mas só devida à absoluta confiança no sistema. Verdade, verdade, nem todas as instituições do antigo regímen mereciam o desprezo do nosso século.

— Há melhor do que anunciar a minha ideia, é praticá-la, respondeu o alienista à insinuação do boticário.

E o boticário, não divergindo sensivelmente deste modo de ver, disse-lhe que sim, que era melhor começar pela execução.

— Sempre haverá tempo de a dar à matraca, concluiu ele.

Simão Bacamarte refletiu ainda um instante, e disse:

— Suponho o espírito humano uma vasta concha, o meu fim, Sr. Soares, é ver se posso extrair a pérola, que é a razão; por outros termos, demarquemos definitivamente os limites da razão e da loucura. A razão é o perfeito equilíbrio de todas as faculdades; fora daí insânia, insânia e só insânia.

O Vigário Lopes a quem ele confiou a nova teoria, declarou lisamente que não chegava a entendê-la, que era uma obra absurda, e, se não era absurda, era de tal modo colossal que não merecia princípio de execução.

— Com a definição atual, que é a de todos os tempos, acrescentou, a loucura e a razão estão perfeitamente delimitadas. Sabe-se onde uma acaba e onde a outra começa. Para que transpor a cerca?

Sobre o lábio fino e discreto do alienista rogou a vaga sombra de uma intenção de riso, em que o desdém vinha casado à comiseração; mas nenhuma palavra saiu de suas egrégias entranhas.

A ciência contentou-se em estender a mão à teologia, — com tal segurança, que a teologia não soube enfim se devia crer em si ou na outra. Itaguaí e o universo ficavam à beira de uma revolução.

Machado de Assis, "O alienista"

quarta-feira, setembro 11

Acessório para sair às compras

 


Decadência e esplendor da espécie

Não sei o que terá acontecido com a espécie humana.

Esta ausência de pelos... Para os outros mamíferos a nossa nudez pode parecer repugnante como, para nós, a nudez dos vermes.

E, depois, a nossa verticalidade é antinatural. Estas mãos pendendo, inúteis, são ridículas como as dos cangurus sentados.

Se fôssemos peludos e quadrúpedes, ganharíamos muito em beleza e, sem a atual tendência à adiposidade, poderíamos ser quase tão belos como cavalos.
Felizmente, inventou-se a tempo o vestuário, que, pela variedade e beleza (a par de sua utilidade em vista do fatal desabrigo em que ficamos), redime um pouco esta degenerescência.

E acontece que inventamos também o mobiliário, os utensílios: no caso vigente, esta cadeira em que escrevo sentado a esta mesa, à luz artificial desta lâmpada.
E ainda este ato de escrever, isto é, de expressar-me por meio de sinais gráficos, é mais uma prova da nossa artificialidade.

Mas quem foi que disse que eu estou amesquinhando a espécie? Quero apenas significar que, em face das suas miseráveis contingências, o homem criou, além do mundo natural, um mundo artificial, um mundo todo seu, uma segunda natureza, enfim.

O homem, esse mascarado…
Mario Quintana, "Caderno H"

A vela ao diabo

E se as unhas roessem os meninos?
Estória imemorada

Esse problema era possível. Teresinho inquietou-se, trás orelha saltando-lhe pulga irritante. Via espaçarem-se, e menos meigas, as cartas da nôiva, Zidica, ameninhamente ficada em São Luís. As mulheres, sóis de enganos... Teresinho clamou, queixou-se — já as coisas rabiscavam-se. Ele queria a profusão.
Desamor, enfado, inconstância, de tudo culpava a ela, que não estava mais em seu conhecer. Tremefez-se de perdê-la.

Embora, em lógico rigor, motivo para tanto não houvesse ou houvesse, andara da incerteza à ânsia, num dolorir-se, voluntário da insônia. Até bebeu; só não sendo a situaçãozinha solúvel no álcool. Amava-a com toda a fraqueza de seu coração. Saiu-se para providência.

A de que se lembrou: novena, heroica. Devia, cada manhã, em igreja, acender vela e de joelhos ardê-la, a algum, o mesmo, santo — que não podia saber nem ver qual, para o bom efeito. O método moveria Deus, ao som de sua paixão, por mirificácia — dedo no botão, mão na manivela — segurando-lhe com Zidica o futuro.


Sem pejo ou vacilar, começou, rezando errado o padre-nosso, porém afirmadamente, pio, tiriteso. Entrava nessa fé, como o grande arcanjo Miguel revoa três vezes na Bíblia. Havia-de.

Ia conseguindo, e reanimava-se; nada pula mais que a esperança. Difícil — pueris humanos somos — era não olhar nem conhecer o seu Santo. Na hora, sim, pensava em Zidica; vezes, outrossim, pensasse um risquinho em Dlena.

No terceiro dia, retombou, entretanto, coração em farpa de seta, odiando janelas e paredes. São Luís não lhe mandara carta. Quem sabe, cismou, vela e ajoelhar-se, só, não dessem — razoável sendo também uma demão, ajudar com o agir, aliar recursos? Deus é curvo e lento. E ocorreu-lhe Dlena.

Tão recente e inteligente, de olhos de gata, amiga, toda convidatividade, a moça esvoaçadora. Ela mesma, lindo modo, de início picara-lhe em Z a dúvida, mas pondo-se para conselhos — disso Teresinho quase se recordava. Realegrou-se, em imo, coração de fibra longa. Veio vê-la.

Dlena o acolheu, com tacto fino de aranha em jejum. Seu sorriso era um prólogo. E a estória pegou psicologia.

Teresinho — todos gostariam de narrar sua vida a um anjo — seus embaraços mentais. Dlena ouviu-o. Instruiu-o. — “Mulheres? Desprezo...” — muxoxo; ela isso dizia tão enxuto. Ela e cujo encanto.

Ele, dócil à sua graça, em plástico estado de suspenso, como um bicho inclina o ouvido. Apaziguavam-no seus olhos-paisagem. Sim, o que devia, e ora: não censuras e mágoas perturbadas, nenhum afligir-se, de gato sob pata, mas aguentar tempo, pagar na moeda! Descarregado das más suspeitas, já cienciado: dos poros da pele às cavidades do coração. Foi saindo do doendo.

Prosseguia na novena — ao infalir de Deus, por Santo incógnito; seguido, porém, o de Dlena, de cor — o que recordava, fonográfico. A Zidica, enviou curta carta, sem parte emotiva, traída a brasa do amor, entrouxada em muita palha. Voltava a Dlena, tanto quanto e tanto, caminhando sutilmente. Reenchia-se a lua, por aqueles dias.

Mostrou-lhe as de Zidica, após e pois. Simplórias simples cartinhas, reles ternas. Dlena, aliás, nelas leve notava as gentis faltas de gramática. Tinha ela olhos que nem seriam mesmo verdes, caso houvesse nome para outra igual e mais bela cor. Seu parecer provava-se sagaz tática, não há como Deus, d’ora-em-ora. Seu picadinho de conversa, razões para depois-de-amanhã.

Sentados os dois, ombro com ombro, a fim de arredondados suspiros ou vontade de suspirar. Ternura sem tentativa — fraternura. Teresinho se embriagando miudinho, feliz feito caranguejo na umidade, aos eflúvios dessa emoção. Seu coração e cabeça pensavam coisas diversas.

Valia divertir-se, furtar o tempo ao tormento — apud Dlena. Foram, a abrandar o caso, a festa e cinema. Num muito mais; prorrogavam-se. Teresinho, repartido, fino modo, que mais um escorpião em pica em sua consciência. Zidica bordando o enxoval... Zidica, a doçura insípida da boa água, produtora de esperanças... Tão quieto, São Luís, tão certo... Seu coração batia como uma doença, ele tinha medo.

Não iam desnamorar-se! A vida, vem se encaminhava. A novena completara-se, a derradeira vela, ele genuflexo. Fez o que pôde com aquele pensamento.
Ou começava a interrogar-se, desestruturando-se sua defesa. Frescura, quase felicidade; e espinhos perseverantes. Ideia tonta pousou nele. Tornou à igreja, espiou enfim o Santo, data vênia. Mal e nada no escuro viu, santo muda muito de figura.

Veio a Dlena — a seu suavizamento — com o coração na mão, algemada; caiu-lhe a alma aos pés dela. Apalpou os bolsos, contradesfeito. De Zidica, a última carta, esquecera-se de trazê-la. Ocorreu-lhe espirrar. Do nada, nada obteve.
Tudo, quanto há, é saudade, alternando-se com novidades: diagrama matemático, em calor de laboratório. O diabo não é inteiro nem invento. Teresinho desconjurava-se, imaginava-se chorando morno, por fechado desespero. Zidica — desconversas escrevera, volúvel, vaga?

Correu ele a Dlena, ao súbito último ato, açorado, asas nos sapatos. De fato. O Santo não lhe valera.

Dlena, ei-la — jeitinho, sorrisinho, dolo — estampada no vestido, amarelo com malhas castanho-vermelhas. Foi ela quem abriu o envelope; o iá-iá-iá de rir — riu de modo desusado. Mas franziu-se, então que então.

Ela era: seus olhos sem cinzas, rancordiosa. A carta rasgou, desfaçava-se. — “Viva, esta!” — voz de festa; o que maldisse. Soou, e fez-se silepse.

Teresinho recuou, de surpresa, susto, queimados os dedos. Seu coração se empacotou. Decidiu-se, de vez, de ombros, não preso. Ali algo se apagava. Dlena, ente. Nada disse, e disse mal. Só o que doeu: sorriso do amarelo mais belo. Teresinho arredou olhos.

Saiu-se — e tardara — de lá, dela, de vê-la. Voou para Zidica, a São Luís, em mês se casaram.

Foram infelizes e felizes, misturadamente.

Guimarães Rosa, "Tutameia'

De Lisboa ao Corvo

A bordo do S. Miguel - 8 de Junho, 1924

Enquanto a gente vê terra, não tira os olhos – não pode – dum resto de areal, dum ponto violeta que desmaia e acaba por desaparecer na crista duma vaga. Um ponto e acabou o mundo. O nosso mundo agora é outro. Durante um momento calamo-nos todos a bordo. A abóbada esbranquiçada fecha-se e encerra o disco azul onde espumas afloram nos redemoinhos que nos cercam: só uma gaivota teima em nos acompanhar descrevendo círculos por cima do navio. O ruído da hélice e a vasta desolação monótona... A vida a bordo dos vapores perdeu todo o interesse da antiga navegação à vela: é a vida a bordo do Hotel Francfort com porteiro e tudo. Foi-se o encanto dos velhos navios com as vergas rangendo ao vento e o gajeiro sobe-que-sobe àquele mastro real. o que vale é a agitação tremenda que não cessa, a água em vagalhões cada vez mais cinzentos e maiores, que as velhas de penante e plumas, sentadas de bombordo a estibordo, e que se atrevem com o oceano Atlântico, fazem o possível por amesquinhar. Mas vem a tarde, vem a noite nesta desolação amarga: o mar carrega-se e cospe-nos salpicos; paira no céu uma tinta que se entranha nas águas e as escurece. Ar lívido, água revolta e uma grandeza com que não posso arcar. Mais escuro... Já se não vê a ondulação perpétua; só se ouve o ruído da hélice incansável e o do esgoto rape-querape, como uma grande vassoura sobre as águas. Isto acaba por uma coisa negra e desmedida, por uma coisa ameaçadora e cheia de vozes, que o Hotel Francfort não consegue fazer esquecer com toda a sua banalidade. As estrelas nos ares agitados parecem outras estrelas, o céu outro céu e as forças desencadeadas do caos nunca as senti tão perto como hoje, nesta voz monótona que sai do negrume, nesta massa que nos mostra os dentes no alto das vagas entre as chapadas de tinta na imensa solidão desolada. Isto acaba pela treva absoluta. Está ali – está ali presente toda noite que não tem fim. Nós bem fingimos que não vemos a solidão trágica, o negrume trágico, mas eu tenho-o toda a noite ao pé de mim. Toda a noite esta coisa complicada que é um transporte a vapor range pavorosamente como se fosse desconjuntar-se; toda a noite sinto a água bater no costado e a máquina pulsar contra o meu peito. A ideia da morte não nos larga: separa-nos do caos um tabique de não sei quantas polegadas. Todos os passageiros se fingem despreocupados. Só acolá, sob o castelo da proa (3ª classe), embrulhada num xale e sentada sobre um baú de lata, aquela mulher do povo sente como eu o terror sagrado do mar – e não o oculta. Olha petrificada. Aqui só há uma coisa a fazer, é a gente entregar-se...

Raul Brandão, "As Ilhas Desconhecidas - Notas e Paisagens" 

segunda-feira, setembro 9

Assim bem começa a semana

 


Gosto dos inconvenientes

John (o Selvagem):  - Mas eu gosto dos inconvenientes.

Administrador Mundial Mustafá Mond :- Nós, não. Preferimos fazer as coisas confortavelmente.

- Mas eu não quero conforto. Quero Deus, quero a poesia, quero o perigo autêntico, quero a liberdade, quero a bondade. Quero o pecado.

- Em suma - disse Mustafá Mond - o senhor reclama o direito de ser infeliz.

- Pois bem, seja - retrucou o Selvagem em tom de desafio - Eu reclamo o direito de ser infeliz.

- Sem falar no direito de ficar velho, feio e impotente; no direito de ter sífilis e câncer; no direito de não ter quase nada que comer; no direito de ter piolhos; no direito de viver com a apreensão constante do que poderá acontecer amanhã; no direito de contrair a febre tifoide; no direito de ser torturado por dores indizíveis de toda espécie.

Houve um longo silêncio.

- Eu os reclamo todos - disse finalmente o Selvagem

Mustafá Mond encolheu os ombros.

- À vontade – respondeu.
Aldous Huxley, "Admirável mundo novo"

Orfeu negro

Eu, agosto de 1955: Graças à gentileza do convite de Maria Oliva Fraga, a bela guardiã do Chateau d’Eu, aqui estou eu no vasto castelo de tijolos e colunata de pedra – obra sem grande interesse arquitetônico iniciada por Henrique de Guise e restaurada pelo Conde d'Eu três séculos e pouco mais tarde, depois do incêndio do começo deste século. O parque, desenhado por Le Nôtre, é realmente belo. Vim para terminar a primeira adaptação para o cinema de minha peça Orfeu da Conceição, de que o produtor Sacha Gordine quer extrair um filme. Depositamos ambos grandes esperanças no projeto.

Para ajudar-me no trabalho estão comigo minha amiga e secretária Josée Fauquier e seu marido Daniel. E, naturalmente, minha filhinha Georgiana: a carinha mais marota que já se viu em qualquer latitude. O diabo é que ela, com tanta graça, me está perturbando consideravelmente na tarefa. Pois não me posso impedir de, a todo instante, perder o fio do ditado para vê-la atravessar o parque correndo, ou surgir pela mão de sua babá espanhola – pequeno bichinho inconfundível contra o gótico normando da igreja de Saint Laurent, em cuja cripta dormem sobre os próprios despojos, lado a lado, em seu misterioso sono de mármore, as estátuas funerárias dos príncipes e princesas da família d'Artois.
É coisa apaixonante criar um filme. Nesta adaptação construo o filme como eu o faria. Ao contrário de minha peça, em que a "descida aos infernos" de Orfeu situa-se num gafieira, no 2o ato, estou transpondo o carnaval carioca para o final do filme, como o ambiente dentro do qual a Morte perseguirá Eurídice. Josée me ajuda com o maior entusiasmo, mas é necessário a todo instante interromper o trabalho, pois Georgiana não dá uma folga.

***

Há homens que são da raça dos minotauros. Homens como Picasso, como Buñuel, como Hemingway. Sacha Alexandre Gordine é assim. Ao me pôr ao trabalho está, eu sei, numa das maiores bancarrotas da história do cinema. O grande e humaníssimo filme que deveria fazer, L’Affaire Seznec, teve a filmagem proibida quando todos os contratos já haviam sido firmados. Mas eu confio em Gordine. Há, para quem sabe ler no rosto humano, uma profunda bondade nesse homem. Bondade e uma força interior que se pode quase palpar.

***

Hoje o guia turístico do castelo veio queixar-se de que, ao mostrar aos visitantes uma das belas carruagens em exibição no andar térreo, qual não é sua surpresa, e a dos turistas, quando a porta da caleça se abre e surge, de entre sedas e alfaias, a carinha matreira de Georgiana. Ele me contou o caso com a compunção de um guia de castelo que presenciou um sacrilégio, e eu o ouvi com o ar severo que deve ter no caso o pai da sacrílega. Mas ao voltar-lhe as costas desatei a rir; e vi que ele também sacudia os ombros de tanto riso, enquanto descia as escadas.

Estou em pleno carnaval no filme. Procuro dar o máximo de colorido ao roteiro para que, no caso de uma segunda adaptação, o novo roteirista sinta a animação popular em toda a sua vibração. Na rápida viagem que fizemos ontem a Rouen, surgiu-me a ideia de fazer as mulheres – as Fúrias do mito – matarem Orfeu num parque ou jardim noturno, onde o músico fosse ter levando nos braços sua amada morta. A estudar.

***

Acabei de ver uma coisa deliciosa. Enquanto vinha vindo pelo corredor, vi Georgiana que subira no espaldar de uma poltrona e mirava com a maior atenção, bem de perto, um retrato de dom Pedro II. Depois ela afastou um pouco a cabecinha e começou a alisar as venerandas barbas do imperador. Não contente, chegou a carinha ao retrato e deu-lhe um prolongado beijo.
Juro que vi sorrir o bom monarca.
Vinicius de Moraes, "Para viver um grande amor"

A gente os três

Numa das ocasiões em que lá foi espreitou a minha turma pela janela e voltou aterrada porque eu me achava sentado ao contrário na carteira, a olhar para o tecto. Segundo ela a setora de Francês perguntou-lhe – Como é que eu podia chumbar aqueles olhos azuis? e a minha mãe chegou a casa capaz de estrangular-me, a repetir advérbios de modo que levou a minha infância a atirar-me à cara: – Francamente. Eu fui o filho que deu sempre mais problemas aos meus pais, ou seja o único que não parava de dar problemas aos meus pais. Era mau aluno (os meus irmãos eram brilhantes) não me interessava pelas aulas, não estudava, tinha sempre nota de mau comportamento, não falava às amigas da minha mãe que não me interessavam, as minhas notas eram miseráveis, não reprovei porque o meu avô tinha dois camaradas do Colégio Militar que eram professores no Camões e arranjavam maneira de eu receber, no último período, as classificações que precisava para não chumbar, de modo que acabei o secundário aos dezasseis anos sem nunca ter estudado. A minha mãe foi algumas vezes ao Camões e voltava sempre deprimida com o que lhe contavam de mim. Numa das ocasiões em que lá foi espreitou a minha turma pela janela e voltou aterrada porque eu me achava sentado ao contrário na carteira, a olhar para o tecto. Segundo ela a setora de Francês perguntou-lhe

– Como é que eu podia chumbar aqueles olhos azuis?

e a minha mãe chegou a casa capaz de estrangular-me, a repetir advérbios de modo que levou a minha infância a atirar-me à cara:

– Francamente

e recordo-me de a ouvir dizer ao meu pai, julgando que eu não estava na sala

– Se ao menos ele fosse estúpido eu ainda compreendia comigo a sentir-me um bicho esquisito que passava o tempo a ler e a escrever e, nos intervalos, a fazer asneiras, como por exemplo usar as jarras de flores para fazer chichi, espalhando pela casa um cheiro horrível, às vezes difícil de localizar. Uma ocasião, para aí com treze ou catorze anos, o meu pai, ao acordar, descobriu-me a dormir no meu quarto com as portadas fechadas. Abriu-as de rompante, furioso, eu descerrei um olho, perguntei

– Veio assistir ao acordar de um génio? ele ficou a olhar-me, de boca aberta, e muitos anos depois ainda me falava neste episódio, com uma cara esquisita que me parecia ter lá dentro, escondido, uma espécie, que estranho, de orgulho. Mas suportou em silêncio, ele que era bravo e colérico, os três anos que passei sem pôr os pés no hospital, depois de me matricularem em Medicina, ocupado com um poema longuíssimo que devia ser fresco e acabou no cesto dos papéis como tudo aquilo que eu produzia, furioso com a bodega dos resultados. Mas continuava, certo de que iria conseguir obras primas se persistisse nas minhas pobres tentativas. Estou para saber de onde me vinha aquela fé. E, a fim de resolver o problema dos estudos (enquanto tentava resolver o problema da escrita) chantageei a minha pobre mãe

– Se me der a carta de condução eu faço as cadeiras todas na primeira época.
Ela, coitada, aceitou

(o que são as mães)

E disparei até ao fim do curso como um foguete, surpreendido por aquilo ser tão fácil. Até tive alguns dezoitos pelo meu meio, palavra, banzado

– Afinal nem demora muito tempo e é canja genuinamente banzado que ser médico fosse uma questão de caracacá. Depois da volta da guerra, com o balanço, pulei os concursos todos na broa, entrei sempre nas vagas a que concorri, fiquei um doutor da mula ruça do caraças, cada vez ia gostando mais da Medicina, acho que fui um médico competente mas os cabrões dos livros não me largavam de modo que tive, com pena, de deixar tudo o resto por eles. Espero que os meus pais os leiam lá no Céu, eles que se calhar os leram cá na Terra mas isso era um assunto de que nunca me falaram. Nem eu com eles.

A merda do pudor, a merda da distância, e logo comigo que tenho tantas saudades vossas e me sinto tão arrependido de vos ter inquietado. Mas, entendam-me por favor, o que podia eu fazer, não é? E agora não sei se assine António ou Ovelha Ronhosa. No fundo é igual ao litro. Quando chegar onde estão prometo-vos que não faço chichi em nenhuma jarra, antes que São Pedro vos venha com a conversa do costume:

– Esse vosso filho é incorrigível, não é? E se calhar sou, paizinhos. Se calhar sou.
António Lobo Antunes

sexta-feira, setembro 6

Pescando leitor

 


E p meu avô, também

Talvez o dia chuvoso seja o responsável desta melancolia. Somos uma máquina complicada, em que os fios do presente activo se enredam na teia do passado morto, e tudo isto se cruza e entrecruza de tal maneira, em laçadas e apertos, que há momentos em que a vida cai toda sobre nós e nos deixa perplexos, confusos, e subitamente amputados do futuro. Cai a chuva, o vento desmancha a compostura árida das árvores desfolhadas — e dos tempos passados vem uma imagem perdida, um homem alto e magro, velho, agora que se aproxima, por um carreiro alagado. Traz um cajado na mão, um capote enlameado e antigo, e por ele escorrem todas as águas do céu. À frente, caminham animais fatigados, de cabeça baixa, rasando o chão com o focinho. Homem e bichos avançam sob a chuva. É uma imagem comum, sem beleza, terrivelmente anónima.


Mas o homem que assim se aproxima, vago, entre cordas de chuva que parecem diluir o que na memória não se perdeu, é meu avô. Vem cansado, o velho. Arrasta consigo setenta anos de vida difícil, de desconforto, de ignorância. E, contudo, é um homem sábio, calado e metido consigo, que só abre a boca para dizer as palavras importantes, aquelas que importam. Fala tão pouco (são poucas as palavras realmente importantes) que todos nos calamos para o ouvir quando no rosto se lhe acende qualquer coisa como uma luz de aviso. Fora isso, tem um modo de estar sentado, olhando para longe, mesmo que esse longe seja apenas a parede mais próxima, que chega a ser intimidade. Não sei que diálogo mudo o mantém alheado de nós. O seu rosto é talhado a enxó, fixo mas expressivo, e os olhos, pequenos e agudos, têm de vez em quando um brilho claro como se nesse momento alguma coisa tivesse sido definitivamente compreendida. Parece uma esfinge, direi eu mais tarde, quando as leituras eruditas me ajudarem nestas comparações tão abonatórias de uma fácil cultura. Hoje digo que parecia um homem.

E era um homem. Um homem igual a muitos desta terra, deste mundo, um homem sem oportunidades, talvez um Einstein perdido sob uma camada espessa de impossíveis, um filósofo (quem sabe?), um grande escritor analfabeto. Alguma coisa seria, que não pôde ser nunca. Recordo agora aquela noite morna de verão, que dormimos, nós dois, debaixo da figueira — ouço-o ainda falar da vida que tivera, da Estrada de Santiago que sobre as nossas cabeças resplandecia (as coisas que ele sabia do céu e das estrelas), do gado que o conhecia, das histórias e lendas que eram o seu cabedal da infância remota. Adormecemos tarde, enrolados na manta lobeira, que a madrugada refrescaria com certeza e o orvalho não caía só sobre as plantas.

Mas a imagem que me não larga é a do velho que caminha sob a chuva, obstinado e silencioso, como quem cumpre um destino que nada pode modificar. A não ser a morte. Mas, nesta altura, este velho, que é meu avô, ainda não sabe como vai morrer. Ainda não sabe que poucos dias antes do seu último dia vai ter a premonição (perdoa a palavra, Jerónimo) de que o fim chegou, e irá, de árvore em árvore do seu quintal, abraçar os troncos, despedir-se deles, dos frutos que não voltará a comer, das sombras amigas. Porque terá chegado a grande sombra, enquanto a memória o não fizer ressurgir no caminho alagado ou sob o côncavo do céu e a interrogacão das estrelas. Só isto — e também o gesto que de repente me põe de pé e a urgência da ordem que enche o quarto aquecido onde escrevo.
José Saramago, "Deste Mundo e do Outro"

A jaqueta no alto do mastro

Devo mais uma vez chamar atenção a minha jaqueta branca, que na mesma época quase me levou à morte.

Meu humor tende ao reflexivo, e no mar eu costumava subir à gávea à noite, sentar-me numa das vergas superiores, cobrir-me com minha jaqueta e perder-me em pensamentos. Em alguns navios em que fiz isso, os marinheiros costumavam pensar que eu fosse algum estudioso da astronomia — o que, em certa medida, era realmente o caso — e que meu objetivo em subir à gávea era ter uma melhor perspectiva das estrelas, supondo, evidentemente, que eu fosse míope. Alguns dirão se tratar de uma ideia bastante estúpida, mas não é o caso — pois, decerto, a vantagem de se aproximar sessenta metros de um objeto não deve ser subestimada. Estudar as estrelas sobre a amplidão infinita do mar é tão divino quanto era aos magos caldeus, que observavam as revoluções celestes da planície.

E é um sentimento bastante reconfortante, que nos funde com o universo das coisas e nos transforma em parte do Todo, pensar que, por onde quer que nós, peregrinos dos oceanos, naveguemos, teremos as mesmas, vetustas e gloriosas estrelas a nos fazer companhia; que elas continuarão a brilhar a nossa frente e para todo o sempre, lindas e luzentes, seduzindo-nos, com cada um de seus raios, para nelas nos perdermos e nelas conhecermos a glória.

Sim! Sim! Nós, marinheiros, não navegamos em vão. Expatriamo-nos para ganhar cidadania do universo; e, em todas as nossas viagens ao redor do mundo, ainda somos acompanhados daquelas velhas circum-navegadoras, as estrelas, companheiras de bordo e de faina — singrando o azul do céu como nós o azul dos mares. Que os mais afetados façam pouco de nossas mãos calejadas, de nossas unhas sujas de alcatrão — eles alguma vez apertaram mãos mais verdadeiras que as nossas? Que sintam nossos valorosos corações batendo como o malho nas bigornas quentes que são nossos peitos; que com o âmbar nos punhos de suas bengalas sintam nossos nobres corações e constatem que estes batem com a explosão de canhões de trinta e duas libras.

Oh! Quem me dera tivesse novamente a vida do aventureiro pelos mares — o júbilo, a emoção, a ação! Quem me dera mais uma vez te sentisse, velho mar!, mais uma vez sobre a tua sela. Estou cansado dos aborrecimentos e preocupações de terra firme; cansado da poeira e da fuligem das cidades. Que mais uma vez escutasse o estrépito do granizo sobre os icebergs e não o esforço arrastado dessa gente mole que abre penosamente seu caminho tedioso do berço ao caixão. Quem me dera sentir teu perfume, brisa do mar!, e gritar de alegria no espargir de tuas águas. Permiti-me, deuses do mar! Intercedei por mim junto a Netuno, ó doce Anfitrite, que nenhum torrão desta aborrecida terra caia sobre o meu caixão! Que meu seja o túmulo que engoliu o Faraó e suas hostes; que no fundo do mar eu descanse ao lado de Drake.

Mas, quando Jaqueta Branca fala sobre a vida do aventureiro, ele não se refere à vida num navio de guerra, que, com suas formalidades marciais e milhares de vícios, fere como uma adaga no coração a alma leve dos mais nobres navegantes.
Como disse, eu tinha o hábito de subir à gávea e lá ficar refletindo; e assim fiz na noite que se seguiu ao desaparecimento do tanoeiro. Antes que fosse rendido em meu turno no topo do mastro principal, me recostei na verga de sobrejoanete. A jaqueta branca envolvia-me como o sobretudo congelado em torno de sir John Moore.

O sino dobrava as oito, meus companheiros de turno se apressavam ao encontro de suas macas, o outro quarto ocupava seus postos, a gávea abaixo de mim estava repleta de estranhos, mas trinta metros acima deles eu estava em transe; ora cochilando, ora sonhando; ora pensando em coisas passadas, ora ocupando-me da vida futura. O último tema mostrou-se bastante oportuno, pois a vida porvir estava muito mais próxima de me surpreender do que eu então podia imaginar. Por fim, talvez já estivesse mais ou menos consciente de uma voz trêmula gritando da gávea na direção do sobrejoanete. Porém, se assim aconteceu, a consciência logo voou para longe de mim, deixando-me no Lete. Mas quando, como num relâmpago, a verga cedeu sob mim e, instintivamente, agarrei-me com ambas as mãos ao amantilho, voltei a mim num piscar de olhos e senti como que uma mão apertando minha garganta. Por um instante pensei que a corrente do Golfo em minha cabeça me engoliria num torvelinho rumo à eternidade; mas no instante seguinte vi-me de pé; a verga fora arriada à altura da pega; sacudindo-me em minha jaqueta, senti que saíra ileso e vivo.
Quem teria feito aquilo? Quem teria atentado contra a minha vida?, pensei comigo, enquanto descia o cordame.

“Aí vem ele!… Deus do céu! Aí vem ele! É branco feito uma maca.”

“Quem está vindo?”, gritei, saltando para dentro da gávea. “Quem é branco feito uma maca?”

“Meu pai santíssimo, Bill, é o Jaqueta Branca… mais uma vez esse inferno de gente!”

Aparentemente, eles tinham avistado um ponto branco movendo-se no topo e, como sói aos marinheiros, tomaram-me pelo fantasma do tanoeiro; e depois de terem me chamado e pedido que descesse, para testar minha materialidade, sem obter resposta, decidiram, por medo, largar a adriça.

Furioso, tirei a jaqueta e a lancei ao convés.

“Jaqueta”, disse eu, enérgico, “precisas mudar de aparência! Precisas correr aos responsáveis pela tinta e te tingir, caso contrário, não sobreviverei. Tenho só uma vida, jaqueta, e não posso perdê-la. Não posso consentir ser assim atingido em teu nome, mas em meu nome precisas ser tingida. Podes ser tingida muitas vezes sem qualquer prejuízo; mas eu, seguidamente atingido, me exponho a perda irreparável e a correr o risco eterno.”

Assim, pela manhã, de jaqueta em punho, me encaminhei ao primeiro lugar-tenente e relatei-lhe o risco que correra durante a noite. Fui enfático na descrição dos perigos mais gerais de ser confundido com um fantasma pelos marinheiros e pedi-lhe com firmeza que por um instante relaxasse suas ordens e solicitasse a Pincel, o capitão do paiol de tintas, um pouco de tinta preta para que, assim, eu pintasse minha jaqueta.

“Olhe para ela”, acrescentei, erguendo-a. “O senhor já viu algo mais branco? Imagine como brilha durante a noite, mais ou menos como um pedaço da Via Láctea. O senhor não pode recusar um pouco de tinta.”

“O navio não tem tinta a desperdiçar”, ele disse. “Vai ter que se virar sem ela.”
“Senhor, toda chuva me deixa ensopado; o cabo Horn está próximo… seis pincéis de tinta a tornariam à prova d’água; e eu nunca mais correria risco de vida!”
“Não posso fazer nada; vai embora!”

Sinto que, chegando ao fim de minha vida, as coisas não ficarão bem para mim; pois, se meus pecados só serão perdoados se da mesma forma eu perdoar aquele insensível e indiferente primeiro lugar-tenente, não haverá perdão para mim.

Quê? Recusar uma demão de tinta que transformaria um fantasma em homem, uma rede de arenques numa gabardina? Estou farto. Sem mais.

Herman Melville, "Jaqueta Branca"

E então, que quereis?

Fiz ranger as folhas de jornal
abrindo-lhes as pálpebras piscantes.
E logo
de cada fronteira distante
subiu um cheiro de pólvora
perseguindo-me até em casa.
Nestes últimos vinte anos
nada de novo há
no rugir das tempestades.
Não estamos alegres,
é certo,
mas também por que razão
haveríamos de ficar tristes?
O mar da história
é agitado.
As ameaças
e as guerras
havemos de atravessá-las,
rompê-las ao meio,
cortando-as
como uma quilha corta
as ondas.

Vladimir Maiakovski

Não conversamos com o silêncio

Quando uma sociedade e seus valores ficam muito perdidos, ela ganha muita força para a autoajuda. É uma sociedade que procura o que fazer, como viver. Precisa muito de receita.

O melhor diálogo que travamos na vida é com o silêncio. Conversar com o silêncio é fascinante. Vivemos em uma sociedade em que o silêncio está interditado. As pessoas falam o tempo inteiro. Você entra no aeroporto e a tevê está ligada o tempo inteiro. No hotel, a tevê está ligada o tempo inteiro. Tem uma música tocando no elevador, tem alguém falando no celular. Tem pessoas com três celulares. É um mundo que fala o tempo inteiro. Não conversamos com o silêncio.

E quando escutamos o silêncio, temos muitas respostas. Estamos ficando cada dia mais interditados do silêncio.


Tem um objeto que me preocupa muito chamado televisão. Não tenho nada contra. Às vezes, tem umas novelas boas que a gente descansa ao assistir. Mas entre um bloco e outro, existe uma coisa chamada comercial, que mostra tudo o que não temos. Você não tem esse cartão de crédito, não tem esse tênis, não fez essa viagem. Você não tem esse carro, não usa esse produto…

Certa vez, umas senhoras apareceram na minha casa, muito bem vestidas, às três horas da tarde, me pedindo para participar de abaixo-assinado que elas iriam mandar para o Roberto Marinho. O abaixo-assinado era porque a Globo estava passando programas naquele horário que não eram bons para os jovens. Eu as levei até o escritório, não tenho tevê na sala, e disse para elas: “Olha, vou dizer para a senhora que a minha televisão é maravilhosa. Ela tem um botão que quando não quero assistir, eu desligo. Tem que instalar na da senhora. É uma coisa fascinante. Se a da senhora não tem, mandar instalar”.

As pessoas estão sem autonomia até para desligar uma televisão. Compram aquilo, ligam de manhã e dormem com aquilo ligado a noite inteira. É uma coisa que fala no ouvido da gente o tempo inteiro.

Bartolomeu Campos de Queirós

quarta-feira, setembro 4

Caso de amor

 


Perseguição da beleza

Há quem persiga o poder, o dinheiro, a fama. Eu persigo a beleza. Não é uma escolha. É uma condenação. Sem beleza faleço. É um trabalho difícil, muitas vezes doloroso, cheio de revezes. Já passei dias e dias com as mãos na garganta apavorado que ela não volte a visitar-me. É difícil dizer o que é aquela poderosa presente ausência que nos oprime e agarra. Nunca está onde está, mas sempre um pouco mais longe, noutro sítio. Não são cores, imagens, sons, nem sequer a suave pele de uma mulher que me encantam. É o que está para além disso e que isso chama. A beleza corre o permanente perigo de a qualquer momento se desfazer em nada. É, na verdade, por completo insustentável. Não se pode medir, calcular, torná-la obedientemente exacta. É impossível provar que existe. Daí a urgência, o coração a bater na boca. A perseguição da beleza é uma corrida de obstáculos sem meta de chegada. Basta o som de uma voz para rasgar futuros. Basta uma fotografia de uma mala fechada sobre uma cama para abrir horizontes. Todos os cuidados são insuficientes. É um trabalho longo preenchido de mistérios. Se se procura controlar, escapa. Se se procura guardar, esvai-se entre os dedos. Tem de ser roubada com toda a rapidez e mantida no movimento que é só dela. Se se tenta parar, fixar, já não vale a pena. O dinheiro tem certamente as suas vantagens. Uma das poucas coisas que serve para várias. E a beleza não serve de nada. Atrapalha. Provoca desastres nas famílias, intoxica-nos até ao desmaio, não poupa nada. Devia ser proibida. É um escândalo no meio do mundo. É a causa do espantoso medo que é perdê-la. Não escolhi ser quem sou, este vício de que sou escravo. O que mais importa ninguém escolhe. Já tentei ser tantos para escapar de mim, para me desviar desta vida que me deram. E depois vem a beleza. Surpreendente ao virar de uma esquina. Um desejo marcado no ponto de encontro do aeroporto onde ficaremos para sempre abraçados. A tomar duche à minha frente. A irromper do nada. A primeira coisa que um qualquer fanatismo sabe que tem a fazer é demolir com a beleza. Com todo o direito, de todas as maneiras. A beleza semeia a desordem nas almas e nos corpos que anima. A beleza alimenta-se de uma liberdade particularmente virulenta. É impertinente. Não conhece regras. Vive da vida e de mais nada.

Pedro Paixão

Desaprender

Há uma altura em que, depois de se saber tudo, tem de se desaprender. Sucede assim com o escrever. Com o escrever do escritor, entenda-se. Eu, provavelmente poeta, estou a aprender a... desaprender. E para quê e como se desaprende? Para deixar de ronronar, para que o leitor, quando o nosso produto lhe chega às mãos, não exclame, satisfeito ou enfastiado: «- Cá está ele!».


Na verdura dos seus anos, a preocupação do escritor parece ser a da originalidade. Ser-se original é mostrar-se que se é diferente. E as pessoas gostam das primeiras piruetas que um sujeito dá. E o sujeito gosta de que as pessoas vejam nele um talento.

Atenção, vêm aí as receitas, as ideias feitas, os passes de mão, os clichés, os lugares selectos ou, mais comezinhamente, os lugares comuns. O escritor está instalado. Revê-se na sua obra. Começa a abalançar-se a voos mais altos, a mergulhos mais fundos. É a intelectualidade que o chama ao seu seio, o público que o põe, vertical, nas suas prateleiras. Arrumado. Quase sem dar por isso, o escritor acomodou-se e tornou-se cómodo, quando propendia, nos seus verdes anos, a incomodar-se e a tornar-se incómodo. Organiza «dossiers» com os recortes das críticas que lhe fizeram ao longo da sua carreira (nome, já de si, chamuscante), vai a colóquios, celebrações, congressos. Ganha prémios.

É traduzido e publicado no estrangeiro. Por desfastio (e por que não?, algum dinheiro) aceita colaborar em conspícuas revistas ou em jornais efémeros como o dia a dia em que vão sendo publicados. Está de tal modo visível que já ninguém dá por ele. É o escritor.

Se as coisas continuarem indefinidamente assim, o escritor pode ser alcandorado a gloríola nacional, com todos os direitos inerentes a uma situação dessas: academia, nome de rua, estatueta ou estátua, tudo isso em devido tempo, quer dizer, já velho ou já morto o escritor. Pedra campal sobre o assunto.
Alexandre O'Neill, "Uma Coisa em Forma de Assim"

A criada

Seu nome era Eremita. Tinha dezenove anos. Rosto confiante, algumas espinhas. Onde estava a sua beleza? Havia beleza nesse corpo que não era feio nem bonito, nesse rosto onde um doçura ansiosa de doçuras maiores era o sinal da vida. Beleza, não sei. Possivelmente não havia, se bem que os traços indecisos atraíssem como água atrai. Havia, sim, substância viva, unhas, carnes, dentes, mistura de resistências e fraquezas, constituindo vaga presença que se concretizava porém imediatamente numa cabeça interrogativa e já prestimosa, mal se pronunciava um nome: Eremita. Os olhos castanhos eram intraduzíveis, sem correspondência com o conjunto do rosto. Tão independentes como se fossem plantados na carne de um braço, e de lá nos olhassem - abertos, úmidos. Ela toda era de uma doçura próxima a lágrimas.

Às vezes respondia com má-criação de criada mesmo. Desde pequena fora assim, explicou. Sem que isso viesse de seu caráter. Pois não havia no seu espírito nenhum endurecimento, nenhuma lei perceptível. "Eu tive medo", dizia com naturalidade. "Me deu uma fome", dizia, e era sempre incontestável o que dizia, não se sabe por quê. "Ele me respeita muito", dizia do noivo e, apesar da expressão emprestada e convencional, a pessoa que ouvia entrava num mundo delicado de bichos e aves, onde todos se respeitam. "Eu tenho vergonha", dizia, e sorria enredada nas próprias sombras. Se a fome era de pão - que ela comia depressa como se pudessem tirá-lo - o medo era de trovoadas, a vergonha era de falar. Ela era gentil, honesta. "Deus me livre, não é?", dizia ausente.


Porque tinha suas ausências. O rosto se perdia numa tristeza impessoal e sem rugas. Um tristeza mais antiga que o seu espírito. Os olhos paravam vazios; diria mesmo um pouco ásperos. A pessoa que estivesse a seu lado sofria e nada podia fazer. Só esperar. Pois ela estava entregue a alguma coisa, a misteriosa infante. Ninguém ousaria tocá-la nesse momento. Esperava-se um pouco grave, de coração apertado, velando-a. Nada se podia fazer por ela senão desejar que o perigo passasse. Até que num movimento sem pressa, quase um suspiro, ela acordava como um cabrito recém-nascido se ergue sobre as pernas. Voltara de seu repouso na tristeza. Voltava, não se pode dizer mais rica, porém mais garantida depois de ter bebido em não se sabe que fonte. O que se sabe é que a fonte devia ser muito antiga e pura. Sim, havia profundeza nela. Mas ninguém encontraria nada se descesse nas suas profundezas - senão a própria profundeza, como na escuridão se acha a escuridão. É possível que, se alguém prosseguisse mais, encontrasse, depois de andar léguas nas trevas, um indício de caminho, guiado talvez por um bater de asas, por algum rastro de bicho. E - de repente - a floresta. Ah, então devia ser esse o seu mistério: ela descobrira um atalho para a floresta. Decerto nas suas ausências era para lá que ia. Regressando com os olhos cheios de brandura e ignorância, olhos completos. Ignorância tão vasta que nela caberia e se perderia toda a sabedoria do mundo.

Assim era Eremita. Que se subisse à tona com tudo o que encontrara na floresta seria queimada em fogueira. Mas o que vira - em que raízes mordera, com que espinhos sangrara, em que águas banhara os pés, que escuridão de ouro fora a luz que a envolvera - tudo isso ela não contava porque ignorava: fora percebido num só olhar, rápido demais para não ser senão um mistério.

Assim, quando emergia, era uma criada. A quem chamavam constantemente da escuridão de seu atalho para funções menores, para lavar roupa, enxugar o chão, servir a uns e outros.

Mas serviria mesmo? Pois se alguém prestasse atenção veria que ela lavava roupa - ao sol; que enxugava o chão - molhado pela chuva; que estendia lençóis - ao vento. Ela se arranjava para servir muito mais remotamente, e a outros deuses. Sempre com a inteireza de espírito que trouxera da floresta. Sem um pensamento: apenas corpo se movimentando calmo, rosto pleno de uma suave esperança que ninguém dá e ninguém tira.

A única marca do perigo por que passara era o seu modo fugitivo de comer pão. No resto era serena. Mesmo quando tirava o dinheiro que a patroa esquecera sobre a mesa, mesmo quando levava para o noivo em embrulho discreto alguns gêneros da despensa. A roubar de leve ela também aprendera em suas florestas.
Clarice Lispector, "Felicidade Clandestina"

Anedota

Um dia, nos tempos de D. Miguel, certo saloio astuto foi condenado a acabar na forca por crime de morte de homem. Quando já estava no oratório, com o baraço ao pescoço, pediu que o conduzissem à presença do rei, porque queria, antes de morrer, revelar um facto importante à Sua Majestade.


Fizeram a vontade ao saloio, atiraram-lhe um ferragoulo de burel às costas, e levaram-no a Queluz.

– Que é que tu queres? – perguntou-lhe D. Miguel, fitando no homem aqueles olhos negros de italiano.

– Ah, meu Senhor! Queria pedir à Vossa Majestade que me concedesse mais um ano de vida. Não é que eu tenha medo da morte, meu Senhor, porque a gente não morre senão uma vez. Mas, com perdão de Vossa Majestade, eu estava ensinando o meu burro a ler, um burro de grande entendimento, que lá tenho em Loures, e custa-me deixar este mundo sem ver o animal ensinado...

– Quê? Então o teu burro lê?

– Já conhece as letras, meu Senhor!

O rei achou-lhe graça, chamou o conde de Basto, concedeu ao homem o ano de vida que lhe pedia e prometeu-lhe o perdão da forca, se ele lhe trouxesse o burro em estado de soletrar a Constituição de 1820.

– E agora, como é que tu te arranjas? – perguntava à saida o ministro ao saloio, que pulava de contente.

– Ora, senhor! Num ano, ou morre o rei, ou morre o burro, ou morro eu!
Júlio Dantas, "Os galos de Apolo"

terça-feira, setembro 3

Leitor em sua torre

 


A raposa e o avião

Um homem da cidade, perambulando no campo é suspeito. Se levar uma espingarda, explica-se perfeitamente a sua presença. Há sempre compreensão para um argumento belicoso. Troca-se um olhar de cumplicidade e a arma sugere reminiscências de velhas caçadas infrutíferas, que são lembradas como sucessos felizes.

Inútil espingarda! Encosto-a à primeira árvore de sombra e estiro-me na areia fofa e fulva, esperando a intimidade casual dos insetos e das aves. O tufo das manjeriobas bronzeadas esconde-me como um biombo. As formigas negras desfilam em cadência impecável, um a fundo. Duas aranhas tecem armadilhas baixas e sedutoras. Uma cobra verde suja deslizou e desapareceu. Invisível cigarra espalha sua cantilena atritante e teimosa. Vou adormecendo, embriagado de silêncio, quietação, serenidade.


Bruscamente, surgida do capão de pau-de-ferro que os cipós entrelaçam harmoniosamente, sai uma raposa ouro-cinza, viva, inquieta, ágil, farejadora. Num momento se detém perto de mim. O vento sopra-lhe no focinho escuro e fino, ocultando-lhe meu rastro pela inevitável emanação do cheiro de homem, índice de perigo mortal. Posso vê-la em liberdade, senhora de seus movimentos instintivos, na plenitude da força graciosa, da astúcia milenar, da feiticeira desenvoltura juvenil. O pelo igual e liso, acamado sem a ondulação de um arrepio, indica ausência de qualquer suspeita. A cauda na espessura normal roça o solo, sinal de tranquilidade. Camarada raposa não malda a proximidade de um espectador com uma linda carabina de repetição ao alcance do gesto.

Suas orelhas recortam-se, hirtas, sensíveis à captação da mais longínqua denúncia inimiga. Fica imóvel como uma pedra. O focinho desloca-se, vagaroso, num amplo raio verificante, perscrutador, irradiando suspicalidade. As orelhas funcionam como detentores dos ruídos distantes. Ninguém! Se o vento mudar de quadrante serei localizado, pelo meu aroma inconfundível, às suas narinas delicadas. Dará um arranco sacudido, princípio de carreira olímpica, quase sem barulho audível, e desaparecerá como uma sombra, diluída na orla mosqueada da mataria rala. Avança, leve e fácil, fincando as patas na areia tépida, numa indizível elegância vulpina. No céu escampo de nuvens, de incomparável azul, perpassa um surdo, persistente e rouco zumbido que faz vibrar a paisagem silenciosa na tarde lenta de verão. O rítmico ronronar enche de sonoridade estranha o descampado solitário. Durante segundos, a raposa procurou fixar o som nas vizinhanças, virando o focinho para todas as direções, orelhas erguidas e paralelas, a cauda alteada, os olhos faiscantes de curiosidade e medo inicial. Estacou: patas dianteiras retesadas e firmes, vibrantes como alavancas de aceleração, e as traseiras curvas, trêmulas, ansiosas para o salto salvador na solução da escapula.

Na linha do horizonte passava o pássaro de prata, de asas estendidas, haloado pela luz do sol que o incendiava de branco, deixando a trauta inusitada daquele ruído atordoador. Era um avião de carreira, rumando para o aeroporto.

Vejo a raposa imóvel, focinho apontado para cima, olhando o avião sonoro. A bocarra úmida entreabre-se num espanto inconcebível, mandíbula decaída, mostrando a ponta escalarte da língua, a cauda baixa e grossa, os quadris curvados, as orelhas atentas, duras como se armados em latão, seguindo a ave reboante; dois olhos escancarados, luzentes, crescidos de assombro, fitam o mistério presente, ruidoso e alto, acompanhado pelas patrulhas do rumor. Sinto que a curiosidade chumbou-a ao solo quando o corpo palpitante anseia pela libertação veloz. Filha do mato, primitiva, arrebatada, fiel a todos os seus velhos instintos de fome e de sexo, ladra, fugitiva, predadora, covarde, rebelde aos amavios humilhantes da domesticação, incapaz de figurar num circo, aprender um bailado, obedecer a um gesto, livre, faminta e rústica, a raposa olha o avião sereno, semeador de ecos.

Durante dois minutos o animal está estático, inteiramente possuído por aquele centro de interesse de inaudita novidade. A cabeça afunilada acompanha automaticamente a trajetória do avião cintilante. As patas dianteiras mergulham na areia, duras, esticadas como de madeira rija; as traseiras têm um leve e visível frêmito de impaciência e pavor. Como o mirmecólio tinha a frente de leão e o final de formiga, a raposa ostenta a coragem da atenção obstinada por diante e o medo incontido por detrás. Está tremendo mas parada, quieta, subjugada pela visão inesperada da grande ave prateada e canora.

Se a raposa “pensa” por uma sucessão de imagens, não haverá nenhuma anterior para determinar-lhe o processo da comparação assimiladora. É uma imagem nova, virgem e de impossível cotejo no fichário mental das reminiscências raposinas. Qual será a reação íntima e maravilhosa dessa contemplação? Quais as soluções mais ou menos duradouras, subsequentes ao conhecimento visual da aeronave? Com que a raposa comparará o avião atravessando nuvens com seus motores sonorizantes? Tê-lo-á como uma ave gigantesca, jamais anteriormente vista, feita, como todas as aves deste mundo, de carne, penas e sangue, susceptível de mastigação e deglutição saboreadas? O focinho, seguindo obedientemente o voo, não seria uma muda perseguição ideal, prevendo e observando o local do pouso da imensa caça voadora?

Creio que a raposa, a dar-se crédito ao seu “romance” onde é personagem clássica, terá muito pouco de sentimentalismo e de visão abstrata das coisas inidôneas para um bom almoço. Admite-se que o sapo cante às estrelas e o veado duele por amor, valentemente, como um canário, uma lagartixa ou um escorpião. Ninguém, sob a cúpula do céu, evoca uma raposa lírica e sim perpetuamente ligada ao programa rendoso de utilitarismo imediato e prático, cientemente cumprido como num master plan da United States Information Agency.

Águias já têm morrido enfrentando aviões, atraídas pelo seu estridor e, quem sabe, batendo-se pelo monopólio do domínio aéreo. A raposa, a deduzir-se pelo que dela sabemos, lemos e vemos, terá no avião uma possibilidade mental de refeição inacabável e de sabor nunca degustado.

Talvez deduza que o ronco do motores é um resfolegar de agonia, de próximo declínio fatal. E quando o aparelho desapareceu pensaria na felicidade das outras raposas porventura vigilantes nas proximidades do pouso. A imensa presa iria para outras gargantas, outros estômagos mais afortunados.

Aqui onde estou dista dois quilômetros das casas que rodeiam a vila vizinha. A raposa será familiar frequentadora dos galinheiros providos para a festa do Natal. Já viu automóvel, certamente. Ouviu os clamores dos rádios domésticos e deve ter encontrado semelhança entre a sua e a voz de certas glórias cantantes nos microfones submissos.

Está a poucos metros de mim, olhando o avião que se tornou pequenino. O focinho continua no mesmo nível anterior, patas dianteiras firmes, as traseiras trêmulas, recurvadas, os olhos ansiosos, tontos, abismados na sedução irresistível que se desfaz na altura da tarde.

Guardará o segredo deste conhecimento de imagem nova ou comunicá-la-á às companheiras no fortuito convívio dos comandos predatórios da madrugada?

Minha impressão é bem diversa, meus senhores. Parece-me que a raposa hipnotizada está fazendo um esforço milagroso para compreender. Toda ela é tensão, nervos polarizados na direção única de encontrar um processo dedutivo de assimilação, uma assimilação que leve a imagem para o fichário das imagens anteriores, vulpinas e úteis. Que íntimas reações permanecerão na memória deste Canis vulpis depois de haver contemplado a retumbante ave platinada? No meio de toda numerosa fauna, onde conta vítimas e perseguidores implacáveis, como deverá incluir a existência do possante pássaro roncador voando sem bater asas brilhantes?

Agora o avião não é mais avistado. O rumor morreu no ar. A raposa volta à última forma. O focinho vira para o chão, areia, gravetos, rastros de animais, folhas secas, banais. Apruma-se e trota, airosa, para frente, sem mais olhar o céu pálido do entardecer onde passara a grande ave de prata.

Com as pernas formigando de cãibras ergo-me, apanho a espingarda incólume e caminho, trôpego. Na vereda, fundos, estão os quatro orifícios do rastro da raposa, denúncia de sua atenção inquieta, de sua curiosidade sôfrega, de sua expectativa despremiada.

Pode ser que, na meia-noite, ao esgueirar-se para o assalto às galinhas dorminhocas, passe, rápida e sonora, a visão fulgurante daquele pássaro estranho e branco, tão grande, bem maior que dois carros de bois, rugindo dez vezes mais, fazendo-a deter-se e olhar para o alto, para onde raramente as raposas olham.

Luís da Câmara Cascudo, "Canto de Muro"

Ah, os livros!

Vou à locadora porque não tive tempo de ver o filme. Aí, levo para casa o filme que quero ver. Aí, tenho que ter um aparelho para enfiar aquele filme, mas antes tenho que ver se ele está bem conectado na televisão. Depois, preciso ver se o controle remoto tem pilhas para poder ligar e assistir ao filme. Quando faço tudo isso e não consigo, preciso telefonar para o técnico que me diz que daqui a três dias vem para ver qual é o problema. E acho que estou maravilhosamente bem servida com a tecnologia. Não estou. O livro é uma coisa tão fascinante. Não tem pilha, não tem fio, não tem técnico, não tem nada.

Anne-Marie Chartier

O inigualável ouro da juventude

Na juventude, aspiramos ao ouro, porque não temos o tino de ver que ela, a juventude, é o ouro, uma riqueza que jamais teremos igual. Nós a gastamos, desperdiçamos, acabamos com ela inteira. No fim da vida, recebemos esmolas de afeto. O sorriso condescendente de um jovem, de uma jovem, uma palavra que nos dirijam, nos comove e nos leva às lágrimas. Que vontade temos de dizer: poupem o sorriso, economizem as palavras. Gastá-los com um velho é como adornar de ouro o pórtico de um túmulo.

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O único ouro que o velho poeta tem é o dos dentes e o da urina.

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Uma noite, em vez de contemplar a lua, olhou para um latão de lixo e sobre ele viu, faiscando como duas estrelas de ouro, os olhos de um gato. Compreendeu então que estivera todo o tempo errada sua concepção de poesia.


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Cabelos de ouro, que minhas mãos certo dia afagaram, que ardis, que tramas daninhas dos olhos meus vos furtaram?

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Ter vivido é mais importante do que viver, para quem tem a memória atenta para os raros momentos em que a vida nos oferece o seu ouro. Quem pode garantir que haverá mais ouro em nosso caminho?

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E todas as manhãs, depois daquele dia, são e serão sempre aquela em que teus dedos, como um passarinho bicando uma faísca de ouro, puxaram da estante da livraria aquele romance de Philip Roth.
Raul Drewnick