sábado, setembro 21

Algumas linhas de Beda, o Venerável

Começa um ciclo novo; os primeiros caules verdes atravessam como setas as últimas folhas secas do Outono passado. Estamos no tempo em que as neves se derretem, o vento é agreste e um cristianismo ainda quase novo, importado do Oriente através da Itália, luta nas regiões do Norte contra um paganismo imemorial e se insinua como o fogo numa floresta velha cheia de árvores mortas; estamos no dealbar tempestuoso do século VII. As palavras mais surpreendentes que chegaram até nós acerca desta passagem de uma fé para outra, dos deuses para um Deus só, chegam‑nos por intermédio de Beda, o Venerável, que as pronunciou a mais de cem anos de distância, sem dúvida no seu mosteiro de Jarrow, onde, rodeado de um mundo em caos, compunha em latim a sua grande história das instituições cristãs de Inglaterra. Elas foram pronunciadas por um thane (um chefe ou um nobre, portanto) de Nortúmbria, pertencente ao poderoso grupo saxónico com costela celta que ocupava nesse tempo o norte da ilha britânica.

A cena passa‑se nos arredores de Iorque, onde os edifícios da velha capital romana de Eboraco, que viu morrer Sétimo Severo, se encontravam ainda na primeira fase da sua existência como ruínas, o que não impedia que já parecessem ao thane e aos seus contemporâneos terem vindo de uma antiguidade sem tempo. Foi há duzentos anos, mais ou menos, que o imperador Arcádio anunciou aos habitantes da Grã‑Bretanha que as legiões retomavam por mar o caminho de volta, deixando‑os assim a enfrentar sozinhos os invasores. Desde então vão‑se arranjando como podem.

Beda traduziu para latim as palavras do thane; passará ainda um século e meio até que Alfredo, o Grande, nos intervalos da luta contra as invasões dinamarquesas, verta o texto para um inglês que, embora muito próximo do antigo islandês e dos diversos idiomas germânicos, tinha, graças à adopção do alfabeto latino, acedido entretanto à dignidade de língua escrita, com um belo futuro à sua frente. Se me dou ao trabalho de referir estes cruzamentos linguísticos, é por tão pouca gente se dar conta de como a palavra humana nos chega do passado aos tropeções, sucessivamente transformada por mal‑entendidos, omissões e acrescentos, e só graças a poucos homens, como o contemplativo Beda ou Alfredo, o homem de acção, que tudo fizeram, por entre a desordem quase desesperada das coisas do mundo, para conservar e transmitir o que lhes parecia merecê‑lo. Veremos que o breve discurso do thane é certamente um desses.

Edwin, rei de Nortúmbria, então o príncipe mais poderoso da Heptarquia britânica, acabara de receber de um missionário cristão o pedido de autorização para evangelizar no seu território. Convocou o conselho. Como era devido, o grande pontífice das divindades locais, um certo Coif, foi convidado a falar em primeiro lugar. A fala do prelado foi mais cínica do que teológica:

«Com toda a franqueza, ó rei, desde que sirvo os deuses e presido aos sacrifícios, não tenho sido nem mais feliz nem mais bem‑sucedido do que um homem que não reza, e as minhas preces raramente foram ouvidas. Dou portanto o meu acordo para que se acolha um deus melhor e mais forte, caso exista.»
O sacerdote falara como homem pragmático; a seguir, falou o chefe de clã como poeta e visionário. Chamado a dizer se aprovava a introdução de um deus chamado Jesus em Nortúmbria, este thane, cujo nome se ignora, alargou de certo modo o debate:

"Creio que a vida dos homens na Terra, quando comparada aos vastos espaços de tempo de que nada sabemos, se assemelha ao voo de um pássaro que entrou pela janela de uma grande sala onde arde, ao centro, uma lareira, como aquela onde tomas as refeições com os teus conselheiros e vassalos, enquanto lá fora reina a invernia, com as suas chuvas e neves. O pássaro atravessa a sala num ápice e sai pelo lado oposto; vindo do Inverno, a ele regressa, perdendo‑se aos teus olhos. Assim também a efémera vida dos homens de que não sabemos o que havia antes e o que vem depois."

A conclusão do thane une‑se à do pontífice: visto que nada sabemos, porque não fazer apelo a quem talvez saiba? Esta é sem dúvida a visão de um espírito aberto, que leva a aceitar certas verdades ou hipóteses sublimes, mas por vezes também a acolher a impostura ou a cair no erro.

Não se sabe qual foi a opinião dos outros membros do conselho, mas foi a destes dois que prevaleceu. O monge Agostinho foi autorizado a pregar o cristianismo nas terras de Edwin. Esta decisão, que talvez viesse a ser tomada de qualquer modo, mesmo que os conselheiros tivessem pensado outra coisa, visto que estava no espírito do tempo, foi para nós pesada de consequências: ela deu origem à ilha‑mosteiro de Lindisfarne, porto de paz e de saber naqueles tempos conturbados, até ao dia em que os Vikings enterraram os seus machados na cabeça dos monges. Dela decorrem a catedral de Iorque e a de Durham, a de Ely e a de Gloucester, São Tomás de Cantuária assassinado pelos cavaleiros de Henrique II, e as ricas abadias que Henrique VIII viria a espoliar. O catolicismo de Maria Tudor e o protestantismo de Isabel, e também os mártires dos dois lados, milhares de tomos de sermões e pregações, alguns textos místicos admiráveis, Revelações do Amor Divino, de Juliana de Norwich, e A Nuvem do Não‑Saber, as homilias de John Donne, as meditações de John Law e de Thomas Traherne, e ainda os católicos e protestantes que se matam uns aos outros nas ruas de Belfast, no momento em que escrevo. A Inglaterra de Edwin sai da Idade do Bronze para entrar na comunidade europeia, que no tempo se confundia com a cristandade. Depois da chegada e da partida das legiões romanas, da penetração pelos monges vindos de Roma, depois dos ganhos e perdas dos dois lados, uma ordem nova substitui a ordem antiga, até que outra venha por seu lado substituir aquela. Muitas vezes, certamente, nos perguntámos como se processou essa espécie de rendição dos deuses, que hesitações, que angústias a precederam ou dela resultaram, que movimentos de alma ela fez nascer. No caso registado por Beda, o Venerável, pelo menos, encontramos o mais espesso cinismo numa das intervenções, temperado talvez por um certo amor da novidade em si mesma (isto não é só de hoje), e com certeza por uma atracção pelos bens materiais que o deus novo poderia trazer. No outro orador, com um estilo poético mais ao nosso gosto, vemos antes um cepticismo profundo que é também um profundo cepticismo, e que prefere confiar na luz que possa vir de quem diz saber. É verdade que não se pode generalizar a partir de um só exemplo: ouçamos pelo menos o que nos relata um piedoso cronista sobre a conversão do rei Edwin e dos seus vassalos. A ligeireza que preside tantas vezes às acções humanas parece não ter estado ausente também aqui.

Se os efeitos longínquos da decisão foram vastos, os resultados imediatos deixam‑nos perplexos. O grande sacerdote Coif, como um típico renegado, galopou para o templo onde até então servia e, zeloso, quebrou os ídolos, privando assim os museus do futuro daquelas estátuas, quase esboços, em que a pedra chega tão à superfície que esbate a tosca forma humana, como se o deus ali representado pertencesse mais ao mundo sagrado do mineral do que ao humano. Menos de três anos mais tarde, Edwin, o convertido, foi morto num campo de batalha por um príncipe pagão; é possível que o seu ex‑sacerdote e o seu thane melancólico o tenham sido também. Não estou a insinuar que tivessem sido poupados se houvessem permanecido fiéis aos seus deuses. Acredito antes que os poderes lá de cima queriam mostrar que quem se converte na esperança de vantagens materiais, e não por causa dos bens espirituais, faz um mau negócio. A esta distância ignoramos se esses bens espirituais acabaram por ser concedidos a Edwin e aos seus vassalos.

Deixemos o cenário histórico e os efeitos desta sessão memorável e retomemos as frases do thane, para delas retirarmos o que têm para nos dar. Para começar, são muito belas. A metáfora extraída da experiência corrente parece conter em si todas as violências e todo o rude conforto dos invernos do Norte. Depois, e principalmente, a confissão de ignorância do thane é também a nossa, ou continuaria a sê‑lo se as filosofias, as técnicas, todas as estruturas que o homem constrói e de que é prisioneiro, não escondessem à imensa maioria dos homens de hoje que a sua ignorância acerca da vida e da morte não é menor do que a desse chefe de clã mais ou menos bárbaro… Adveniensque unus passarum domum citissime pervolavit, qui cum per unum ostium ingrediens, mox per aliud exierit, A prosa latina de Beda, ainda informe, é no entanto demasiado clássica para esse pensamento primitivo, ao mesmo tempo concreto e flutuante, mais à vontade na versão áspera do rei Alfredo: Cume an spearwa and braedlice thaet hus thurhfleo, cume thurh othre duru in, thurn othre ut gewite. Mas não nos deixemos cair no lugar‑comum que consistiria em opor este mundo mental que anuncia, a mil anos de distância, o sombrio universo poético do Macbeth, de Shakespeare, ao espírito greco‑latino supostamente mais lógico e menos envolto em mistério. É uma questão de época: um herói de Homero, um lucumo* etrusco teriam podido falar assim.

Entrando mais fundo no texto que começou por nos agradar pela sua simples beleza, apercebemo‑nos de que o pensamento do thane se opõe audaciosamente a veneráveis hábitos do espírito que duram ainda hoje. Aqueles que, como Vigny, encaram a vida como um espaço luminoso entre duas sombras infinitas, imaginam essas duas zonas obscuras, a de antes e a que vem depois, como inertes, indiferenciadas, espécie de fronteira do nada. Para os cristãos, embora acreditem numa imortalidade beatífica ou infernal, o que se segue à morte (preocupa‑os menos o que antecede a vida) é sobretudo o lugar de repouso eterno. Invideo, quia quiescunt, dizia Lutero olhando as sepulturas.
Marguerite Yourcenar, "O Tempo, Esse Grande Escultor"

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