quarta-feira, setembro 11

De Lisboa ao Corvo

A bordo do S. Miguel - 8 de Junho, 1924

Enquanto a gente vê terra, não tira os olhos – não pode – dum resto de areal, dum ponto violeta que desmaia e acaba por desaparecer na crista duma vaga. Um ponto e acabou o mundo. O nosso mundo agora é outro. Durante um momento calamo-nos todos a bordo. A abóbada esbranquiçada fecha-se e encerra o disco azul onde espumas afloram nos redemoinhos que nos cercam: só uma gaivota teima em nos acompanhar descrevendo círculos por cima do navio. O ruído da hélice e a vasta desolação monótona... A vida a bordo dos vapores perdeu todo o interesse da antiga navegação à vela: é a vida a bordo do Hotel Francfort com porteiro e tudo. Foi-se o encanto dos velhos navios com as vergas rangendo ao vento e o gajeiro sobe-que-sobe àquele mastro real. o que vale é a agitação tremenda que não cessa, a água em vagalhões cada vez mais cinzentos e maiores, que as velhas de penante e plumas, sentadas de bombordo a estibordo, e que se atrevem com o oceano Atlântico, fazem o possível por amesquinhar. Mas vem a tarde, vem a noite nesta desolação amarga: o mar carrega-se e cospe-nos salpicos; paira no céu uma tinta que se entranha nas águas e as escurece. Ar lívido, água revolta e uma grandeza com que não posso arcar. Mais escuro... Já se não vê a ondulação perpétua; só se ouve o ruído da hélice incansável e o do esgoto rape-querape, como uma grande vassoura sobre as águas. Isto acaba por uma coisa negra e desmedida, por uma coisa ameaçadora e cheia de vozes, que o Hotel Francfort não consegue fazer esquecer com toda a sua banalidade. As estrelas nos ares agitados parecem outras estrelas, o céu outro céu e as forças desencadeadas do caos nunca as senti tão perto como hoje, nesta voz monótona que sai do negrume, nesta massa que nos mostra os dentes no alto das vagas entre as chapadas de tinta na imensa solidão desolada. Isto acaba pela treva absoluta. Está ali – está ali presente toda noite que não tem fim. Nós bem fingimos que não vemos a solidão trágica, o negrume trágico, mas eu tenho-o toda a noite ao pé de mim. Toda a noite esta coisa complicada que é um transporte a vapor range pavorosamente como se fosse desconjuntar-se; toda a noite sinto a água bater no costado e a máquina pulsar contra o meu peito. A ideia da morte não nos larga: separa-nos do caos um tabique de não sei quantas polegadas. Todos os passageiros se fingem despreocupados. Só acolá, sob o castelo da proa (3ª classe), embrulhada num xale e sentada sobre um baú de lata, aquela mulher do povo sente como eu o terror sagrado do mar – e não o oculta. Olha petrificada. Aqui só há uma coisa a fazer, é a gente entregar-se...

Raul Brandão, "As Ilhas Desconhecidas - Notas e Paisagens" 

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