Gostava de abri-los ao acaso e passar os dedos, suavemente, na superfície virgem. Nenhuma teoria falsa, nenhum erro habitava aquelas páginas. Pelo contrário: era como se o saber fora de discussão se aninhasse ali. O saber é branco, refletiu ele. As mentiras são coloridas, e as letras são a representação visual de sofismas ou enigmas carentes de interpretação.
Sua biblioteca se foi reduzindo, porque a imperfeição do papel era de certo modo um erro, e o nosso homem fugia dele. Às vezes não era defeito de fabricação, mas simples dobra ou sinal de unha deixado por alguém. O volume era condenado e, de redução em redução, a biblioteca se constituiu num só livro, que continha a verdade absoluta e suprema.
Folheá-lo seria risco imensurável, pois se acaso a página se rasgasse? Uma gota de café pingasse, ou a cinza do cigarro? Nunca mais o abriu. O livro foi posto sob redoma. O sábio contemplava-o em êxtase. Dormia feliz, certo de que a sabedoria inefável estava a dois passos da cama, protegida.
O calor partiu o cristal da redoma, e ao retirar o livro dentre os estilhaços ele cortou a mão, que sangrou sobre o volume, conspurcando a perfeita sabedoria.
Nunca mais foi feliz.
Carlos Drummond de Andrade, "Contos plausíveis"
Carlos Drummond de Andrade, "Contos plausíveis"
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