“Minha família são os livros, meu lugar, qualquer
biblioteca. Quisera que a humanidade houvesse falado um idioma em todos os
tempos, para ler os livros de todos os povos. A paixão pelo livro me
proporcionou dias de inefáveis gozos e pesares sem conta. Porque um livro, como
uma mulher, ama como aborrece, se entrega ou resiste, é fiel ou inconstante,
acaricia ou maltrata, faz rir ou chorar, e às vezes dormir profundamente.
(...)
Ao ver ou encontrar simplesmente o anúncio de um livro novo
me dá êxtase, produz efeitos extraordinários: os olhos se tornam mais vivos, a
inteligência se agita, os nervos não me deixam em paz; me agito, me movo,
bailo, salto, gesticulo e rio como um idiota. Obra nova! Um livro a mais para
ler. Para mim não há alegria igual; tudo a mais desaparece a meus olhos; tudo
menos a obra nova, que se oferece a meus olhares, formosa, provocativa,
deslumbrante, como se o sol, baixando à terra, se fizesse livro.
(...)
O livro em mãos inexperientes é um mártir; a todos que se
ensinasse a ler conviria ensinar antes a tratar os livros, como se educa as
crianças ao mesmo que se as instrui. Emprestar um livro é ser cúmplice de
adultério; aquele que rouba o livro executa um rapto; quem o vende o prostitui.
O livro na prateleira é uma jóia; envolto em papel, uma
mercadoria; no bolso, um recurso, sobre a mesa, um enfermo; no chão, um
cadáver; na biblioteca, uma múmia, e na mão, ah, na mão, é um livro. Um livro
antigo infunde respeito; velho, move a compaixão; sujo parece um empesteado;
roto, faz chorar, e novo, faz sorrir. (...)
O livro em brochura é o livro de meus amores. Meu amigo
inseparável; onde quer que vá me acompanha; umas vezes no bolso, outras na mão,
nunca debaixo do braço; levo -o comigo e me fala a toda as horas; dorme a meu
lado, come em minha mesa, fazemos juntos visitas e pela rua, em meio ao tráfego
e pessoas que cruzam, em todos os instantes do dia, o tenho antes meus olhos e
o leio tranquilamente palavra por palavra, linha por linha e folha por folha.
Minha ambição, meu ideal, é possuir uma biblioteca no meu
jardim. Flores e livros!
Perfumes e sentimentos! Ideias e cores!
Temo que a morte porque virá interromper minhas leituras.
Quantos livros se publicarão depois que terei deixado de existir. Que boas e
belas coisas se imprimirão que eu não lerei. Isso me desespera.
Oh, meus queridos livros, vocês são meu coração, minha
inteligência e minha vontade. Não me faleis de mulheres, de fortuna, nem de
honras, dai-me livros, mais livros, sempre livros.”
Errico Malatesta – (1852/1932) teórico e ativista anarquista italiano
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