sábado, maio 10

Livro lido, livro relido


Albrecht Dürer (1471/1528)

É comum se dispensar os livros depois da leitura, o que faz a sobrevivência dos sebos. Há hoje um hábito arraigado de que não serve para nada – a não ser acumular poeira e ocupar espaço – guardar o que se leu. Se os livros foram de outros como de um defunto ou de um ex, vão-se porta afora para depósitos e lojas já entulhados de outros volumes, dispensados na maioria das vezes por quem gastou dinheiro em sua aquisição e aproveitou talvez muito mal as palavras que leu. É costume que não tem raízes na tradição leitora quando os livros valiam a preço de ouro e sua manutenção em casa era uma questão de status.
Com os tempos de modernidade, o livro passou a ter tratamento de um objeto qualquer, útil apenas para a escola. Passaram a ter espaço cativo, como guardas de memória, ocupando espaços e mais espaços, os antigos discos de vinil ou os CDs. Dizem que música se pode ouvir a qualquer hora. Os filmes podem ser vistos quando nada tiver na tevê.  E os livros? Não podem ser lidos e relidos também infinitamente? Não trazem ou trouxeram tantos bons sentimentos, lembranças inigualáveis? Quando se ouve a citação de um livro lido, que nos interessou muito, não dá vontade de relê-lo? E aquela obra esquecida, mas relembrada por um filme ou pela televisão, também não merece ao menos uma passada de olhos, e ter seu espaço reservado?
Leitores de releituras contumazes normalmente são os machadianos, os proustianos, os roseanos. Existem espalhados por aí, mas integram estatísticas como exceções, nem formam batalhões. Normalmente relêem a obra inteira ou apenas um volume especial. Um senhor de mais de 80 anos relia até duas vezes por ano “Cazuza”, de Viriato Côrrea, desde a primeira leitura por volta dos 11 anos. O volume, presenteado pelo casal de padrinhos, ainda mantinha a dedicatória sobrevivendo em muito bom estado apesar das dezenas de anos manuseado. Ocupava destaque na biblioteca como primeiro livro de presente, mas era o único a merecer tal regalia da releitura constante.
Reler livros dos mais distintos tipos é coisa incomum. Há aqueles releitores de qualquer obra desde que sejam sugestionados para retomar aqueles livros. A chuva pede um determinado livro a ser revisto; uma imagem no computador pode sugerir aquele outro; a lembrança fugaz de um acontecimento antigo relembra páginas lidas naquele tempo. Para isso precisam ter sempre ao lado toda uma biblioteca, que mais não fosse uma guardiã de livros é também a fonte pronta a atender nossa sede momentânea de leitura. São esses amantes de muitos livros, protetores de infinitas lembranças.
Há quem reveja, hoje, inúmeras vezes o filme predileto em DVD e a música de boas lembranças, a preferida do coração, aquela que tocará no funeral, mais uma enésima vez. O livro tão amado não merece sequer a gratidão de uma releitura à mão, esperando numa estante de casa. Fica na lembrança apenas a ponto de muitas vezes se procurar por sebos e mais sebos, estante a estante, a obra da qual guardam o nome e outros sequer isso, lembram apenas da capa azul com uns desenhos ou coisas que tais. Mas esquecem que o livro amado foi posto fora por quem hoje o procura.
Livro relido, embora pareça lembrado na íntegra, é sempre novo. Quem relê sabe muito bem reencontrar sensações num parágrafo esquecido, pode mesmo descobrir novas emoções, um trecho mais empolgante que “passou” quando se leu a primeira vez. E pode-se muitas vezes encontrar aquele autor que não encontramos quando lemos lá atrás. Será um novo livro, com mais novidades, pois ai daquele que bate no peito e, do alto da sabedoria dos ignorantes, diz : “Já li esse livro”. E não tem nada a dizer sobre ele, sequer uma lembrança.

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