Nero
Sentia-se cada vez pior. Agora nem a cabeça sustinha de pé.
Por isso encostou-a ao chão, devagar. E assim ficou, estendido e bambo, à
espera. Tinha-se despedido já de todos. Nada mais lhe restava sobre a terra
senão morrer calmo e digno, como outros haviam feito a seu lado. É claro que
escusava de sonhar com um enterro bonito, igual a muitos que vira, dentro dum
caixão de galões amarelos, acompanhado pelo povo em peso... Isso era só para
gente, rica ou pobre. Ele teria apenas uma triste cova no quintal, debaixo da
figueira lampa, o cemitério dos cães e dos gatos da casa. E louvar a Deus
apodrecer a dois passos da cozinha! A burra nem sequer essa sorte tivera. Os
seus ossos reluziam ainda na mata da Pedreira. Chuva, geada, sincelo em cima.
Até um lebrão descarado se fora aninhar debaixo da arcada das costelas de
caçoada! Ah, sim, entre dois males... Já que não havia melhor, ficar ao menos
ali.
(Conto de abertura de “Bichos”, de
Miguel Torga)
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