No Verão, somos mais indulgentes, menos atentos. É a hora de ler sem relógio
As leituras de Verão são diferentes das leituras de
Inverno, como as do dia são das que fazemos à noite. Algo no ar e a luz que nos
rodeia afeta o texto e sua compreensão. E todo leitor sabe que não o mesmo ler
uma novela que nos deleita estendido na grama, ao sol, que lê-la aconchegado
sob um cobertor na penumbra de um quarto de inverno. No Verão, a relação com um
livro se faz íntima. Tátil, carinhosa, as páginas se contagiam de humidade dos
dedos, adquirem o odor do corpo, a textura da pela humana. Ao contrário, sob um
céu cinzento, um leitor é mais severo, recatado: a leitura se faz lenta,
respeitosa, reflexiva. Até a má literatura muda com as estações: No Verão,
somos mais indulgentes, menos atentos, e, enquanto que no Inverno nos
mostraríamos implacáveis com um livro que começa “Jacques Saunière, o famoso
conservador, caminha com dificuldade pelos corredores do Museu do Louvre”,
envolvidos pelo calor e contentes como lagartos, continuamos lendo, demasiadamente
letárgicos para determo-nos nas assombrosas faltas gramaticais e nas
imbecilidades da história.
Pouco sabemos das leituras estivais de nossos
antepassados. Uma tarde de Verão, Sócrates propôs a Fedro que fossem sentar-se
à sombra de um plátano de onde o jovem leria o discurso de um tal Licio, do
qual Fedro havia falado com entusiasmo, mas talvez essa leitura singular não
seja um exemplo fidefigno das preferências de Verão do filósofo. Três séculos
mais tarde, Cícero escreve a seu amigo Ático que, mesmo que este encontre um
amante por mais apaixonado que seja, não lhe promete sua biblioteca, pois está
destinada a ninguém mais do que ao próprio Cícero. Por “biblioteca”, dizem os
classicistas, Cícero entendia “coleção de obras gregas” que o escritor romano
lia durante os verões, em seu projetado retiro na vila de Lácio.
Leia mais o artigo de Alberto Manguel, Llega la hora de leer sin reloj
Talvez não sejam os próprio livros que possuam qualidades próprias a uma atmosfera estival, ou uma atmosfera qualquer. Somos nós, leitores, que transformamos o livro segundo nossas circunstâncias e desejos, fazendo do “Dom Quixote” ou de “Viagem ao Centro da Terra” um livro de viagens, uma crônica de aventuras, uma novela psicológica, uma história de violência ou de humor
Nenhum comentário:
Postar um comentário