Até que aos 11 anos trocamos de endereço e eu tive, afinal, um quarto só pra mim. Impossível descrever meu sentimento naquela primeira noite no apartamento novo, a sensação de poder ficar sozinha comigo mesma, de poder desligar o abajur na hora que quisesse, de colar nas paredes alguns pedaços de poemas e as fotos dos meus ídolos, de escutar meus discos sem que ninguém se sentisse perturbado. Foi o início da minha existência, valendo.
Não era apenas um local para dormir. Era uma sala de visitas. Muita gente entrou no meu quarto, alguns escondidos na mochila, sem que meus pais soubessem.
Os Beatles não só me visitaram: moraram no meu quarto durante anos. Nós cinco cantávamos juntos, enquanto eu me apaixonava por Londres sem ter noção de quão longe ficava.
Gostava também de ópera-rock, tanto que Jesus Cristo Superstar e Tommy não saíam do toca-discos. Eu trancava a porta do quarto para que ninguém me visse em cena com a trupe: o elenco inteiro dançava sobre meu tapete.
Ganhei uma máquina de escrever e através dela recebi outras centenas de convidados: todos os personagens e situações que inventei. Do lado de fora, a casa escutava apenas um tlec, tlec, tlec abafado e inofensivo, mas o barulho que minhas ideias faziam era de quem estava dando uma festa para 500 pessoas.
Não bastasse essa bagunça, o quarto ainda passou a ser compartilhado com Monteiro Lobato, no começo, e mais tarde com Anais Nin, Charles Bukowski, Fausto Wolff, Caio Fernando Abreu e demais visitantes vindos de universos distantes do meu, alguns até do além.
Nunca fui punida nas poucas vezes em que mereci. "Vá para seu quarto e só saia de lá quando eu mandar." Sério, era pra ser um castigo?
Criança deve brincar na rua, praticar esportes, ter contato com a natureza, socializar com a turma. Fazia tudo isso e bastante. Mas ainda lembro da sensação de voltar à tardinha, tirar os tênis, tomar um banho, jantar e então entrar num mundo ao mesmo tempo íntimo e megapovoado. Não, não era um smartphone. Era um troço mais avançado. Imaginação.
Martha Medeiros
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