O segundo motivo de eu ter vergonha é… bem… é que é verdade. Livro não vale nada. Pelo menos no Brasil.
Não sei se livro é “precioso”, mas definitivamente não é “raro”. Para demonstrar isso não vou usar os cálculos de Gabriel Zaid em Livros demais (leiam e chorem). No lugar dos números, fiquem com duas cenas que testemunhei em duas décadas nesse mercado das ideias.
Em 2010, estava jantando em Barcelona, depois de ter enfrentado um vulcão islandês e agentes literárias catalãs. Recebi o alerta por SMS: um jornal iria acusar a editora — na qual eu acabara de entrar — de bibliocídio. Aquela editora havia mandado uma carta a todas as livrarias pedindo a quitação dos livros que estavam, há anos, em consignação. Ela oferecia descontos de 75% para acertos. Para os exemplares que, mesmo com esse desconto, não interessassem às livrarias, pedia-se que fossem enviadas as capas rasgadas (ou “cortadas diagonalmente com um estilete”, especificava), jogando fora os livros desencapados. A história já havia inflamado alguns jornalistas mas conseguimos, com franqueza e penitência, diminuir o tom da matéria. Felizmente para nós, o Facebook ainda não tinha tantos grupos de linchadores. Os livros? Viraram aparas.
E porque a editora não pediu simplesmente que fossem devolvidos os exemplares consignados e não vendidos? Porque alguém fez as contas e viu que o valor desses livros não cobriria o frete… ou a estocagem. Outro grande grupo editorial chegou a um impasse parecido. O proprietário do galpão subiu o preço do aluguel e a equipe foi procurar um outro lugar, mais longe e mais barato, para abrigar os encalhes. E aí alguém, insistindo na realidade dos fatos, veio de novo fazer as contas e viu que a liquidez desse estoque não compensava nem uma viagem do caminhão… e os livros viraram aparas.
Há muitas histórias assim, todas podem ser resumidas na piada das pilhas de encalhe como método de suicídio de editores. Mas nem todas essas pilhas são de livros que os leitores não quiseram. Muitas são de livros que sequer chegaram perto do leitor.
Em 2004, estava na Barra Funda, visitando a sede de uma grande rede de livrarias (que já não está entre nós). Fomos para lá tentar convencê-los a aceitar mais livros. Acabamos nos deparando com caixas de nossos títulos, que mandáramos em consignação (frete por nossa conta) havia um ou dois anos. Esses livros jamais tinham saído das caixas; estavam “esgotados”, embora a gente não tivesse vendido nem um quinto da tiragem. Como centenas e centenas de caixas de livros, de várias editoras, naquele labirinto de papelão.
São duas histórias de livros desvalorizados, desgarrados, aparados. Todo mundo que trabalha com isso tem uma penca de histórias dessas para contar, bem como uma penca de “explicações”.
Pode ser “histórico-cultural”: “o Brasil foi o último país a abolir a escravidão e instalar a imprensa. Livro nunca foi 'útil' em uma nação voltada para a exploração de matérias primas e de pessoas”. Tem a “Keynesiana”, que diz que “o governo deveria gastar para que os brasileiros melhorassem nossos vergonhosos índices de leitura”; tem a neoliberal que prega que “o governo provoca um excesso de demanda que desequilibra o mercado”…
Blá…
Blá…
Blá.
Eu não sei explicar e nem me arrisco a apontar uma solução. Mas tenho uma forte impressão de que as poucas iniciativas para combater esse quadro vão acabar agravando a situação. Fala-se até em aumentar o preço dos livros. Seguimos esperando um bom resultado de uma equação ruim, na qual todas as variáveis — editoras, livrarias, autores e leitores — estão no limite.
(O digital — onde não há encalhes nem gargalos de distribuição — seria uma saída, se não fosse encarado com desconfiança ou condescendência. Sem contar que, como lembrou o André Palme, no digital o conteúdo — histórias, ideias — são “impicotáveis”)
Se não mudarmos, bibliocídios como a da Cosac vão se repetir, e se intensificar.
E os livros no Brasil continuarão não valendo nada… enquanto não puderem ser lidos.
Julio Silveira
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