quinta-feira, abril 30

Mantenha-se em forma

Andrea De Santis

Os irmãos

 Henri Lebasque 
À direita do velho Gabriel, com os olhares paralelos, presos em pontos abstractos e desfocados, estavam os irmãos. Os seu olhares eram iguais, mas não viam o mesmo. Eram o mesmo olhar a ver duas coisas. Durante os meses em que estava parado, era, os irmãos que tomavam conta do lagar. Sempre juntos, sempre um ao lado do outro, envelheceram ao mesmo tempo: tinham a mesma curva nas costas, o mesmo andar pouco ligeiro e, sem que o soubessem, o mesmo número exacto de cabelos brancos na cabeça. Já tinham passado muito mais de setenta anos da manhã de agosto em que, ao mesmo tempo, nasceram, rasgando a mãe por dentro à sua passagem. Contavam os mais velhos, que tinham ouvido dos seus pais, que, assim que lhes cortaram os cordões umbilicais, a mãe os olhou e viu ainda que eram siameses. Morreu alguns minutos depois, sem dizer uma palavra. O seu enterro foi seguido por toda a vila e sentido como uma tragédia entre as maiores. Todas as pessoas da vila davam os pêsames ao pai dos irmãos, pela esposa e pelos filhos, pois todos cuidaram que crianças assim não medravam. Mas, no momento em que a mãe era enterrada, os meninos dormiam sobre três cobertores dobrados, no quarto do pai, ao lado da cama onde a mãe se esvaíra em sangue. De pele muito enrugada, os meninos dormiam , com as mãos que tinham unidas levantadas sobre o lençol que os cobria, como num orgulho inocente de serem irmãos. E, sob o olhar preocupado das pessoas, cresceram como crescem as crianças. Com os anos, muitos lhes quiseram analisar as mãos e todos se arrepiavam com o que viam: a mão direita de um e a mão esquerda do outro estavam unidas pelo dedo mindinho. Tinham as mãos muito elegantes, finas, dedos longos, mas a partir da última norça do mindinho, os seus dedos fundiam-se e terminavam numa só unha. Todos os que viam isto inventavam maneiras de os separar, mas o mais insistente foi o homem de arrancar dentes com o alicate. Inflamado, dizia conhecer homens que tinham cortado muitas pernas e muitos braços na guerra, e que tinha lido muitos livros com desenhos mesmo, e que cortar um dedo a uma criança é mais fácil do que podar uma parreira. E o pai dos irmãos perguntou-lhe e como é que eu decido qual deles é que fica sem dedo? E o homem de arrancar dentes com um alicate, imediato, respondeu já tinha pensado nisso, o mais justo é cortar o dedo aos dois. O pai dos irmãos olhou-o por um instante e não voltou a falar com ele. 
José Luís Peixoto, "Nenhum olhar"

Leitura em segurança


Poirot e os quatro relógios (prólogo)

A tarde do dia 9 de Setembro foi exatamente igual a qualquer outra tarde. Nenhuma das pessoas que viriam a estar relacionadas com os acontecimentos desse dia poderia alegar que tivera uma premonição de tragédia. (Com excepção, evidentemente, de Mrs. Packer, de Wilbraham Crescent, 47, a qual era especializada em premonições e, depois, descreveu sempre, com grande minúcia de pormenores, os estranhos pressentimentos e as tremuras que tivera. Mas Mrs. Packer estava, no 47, tão distante do 19, e o que neste número se passou relacionou-se tão pouco com ela, que lhe pareceu absolutamente desnecessário ter uma premonição.)

No Gabinete de Secretariado e Dactilografia Cavendish, dirigido por Miss K. Martindale, no dia 9 de Setembro fora um dia igual a tantos outros, um dia rotineiro. O telefone tocara, as máquinas de escrever tinham matraqueado como de costume e o nível de trabalho fora médio, nem acima nem abaixo do habitual.

O gênero também fora o costumado, sem interesse especial. Até às duas e trinta e cinco da tarde, o dia 9 de Setembro não teve nada a distingui-lo de outro dia qualquer.

Às duas e trinta e cinco, a extensão de Miss Martindale deu sinal e Edna Brent, que trabalhava no escritório contíguo, atendeu-a com a voz ofegante e um nadinha nasalada do costume, enquanto empurrava um caramelo para um dos lados da boca.

- Que deseja, Miss Martindale?

- Já lhe disse que não deve falar assim quando atende o telefone, Edna! Pronuncie as palavras com clareza e domine a respiração.

- Desculpe, Miss Martindale.

- Já foi melhor. Se tentar, consegue. Mande-me a Sheila Webb.

- Ainda não voltou do almoço, Miss Martindale.

- Ah! - Miss Martindale viu que eram duas horas e trinta e seis minutos, o que significava que Sheila estava exatamente seis minutos atrasada. - Mande-ma assim que chegar - acrescentou, a pensar que, nos últimos tempos, Sheila Webb se desmazelava um pouco.

- Sim, Miss Martindale.

Edna passou de novo o caramelo para o meio da língua e, a chupar prazenteiramente, recomeçou a dactilografar o romance Amor Nu, de Armand Levine.

O erotismo forçado da obra deixava-a indiferente - como, aliás, à maioria dos leitores de Mr. Levine, não obstante os seus esforços. Armand Levine era uma prova convincente de que nada pode ser mais enfadonho do que a pornografia enfadonha. Apesar das capas sinistras e dos títulos provocantes, as suas vendas decresciam todos os anos e a última conta de serviços datilográficos já lhe fora apresentada três vezes, em vão.

A porta abriu-se e Sheila Webb entrou, um bocadinho ofegante.

- A Sandy Cat * chamou-te - informou Edna.

* Gata Loura. (N. da T.)

- Já é preciso ter azar! - exclamou Sheila, a fazer uma careta. - No único dia em que chego atrasada!

Passou a mão pelo cabelo, pegou num lápis e num livro de apontamentos e bateu à porta da directora.

Miss Martindale levantou a cabeça. Era uma mulher de quarenta e tal anos, que respirava actividade e eficiência e devia a alcunha de Sandy Cat ao seu cabelo ruivo-claro e ao seu nome próprio de Katherine.

- Chegou atrasada, Miss Webb.

- Peço desculpa, Miss Martindale. Houve um grande engarrafamento de trânsito...

- Há sempre um grande engarrafamento de trânsito a esta hora do dia.

Devia contar com isso e sair de casa mais cedo. - Consultou a sua agenda e prosseguiu: - Telefonou uma tal Miss Pebmarsh, que precisa de uma estenógrafa para as três horas e se mostrou particularmente interessada em que fosse você. Já trabalhou alguma vez para ela?

- Não me lembro, Miss Martindale. Pelo menos ultimamente, não trabalhei.

- A morada é Wilbraham Crescent, dezanove...

- Calou-se, com um ar interrogador, mas Sheila Webb abanou a cabeça.

- Não me lembro de lá ter ido.

Miss Martindale consultou o relógio.

- Três horas... Consegue lá chegar a tempo. Tem outros compromissos, para esta tarde? - Passou os olhos pela agenda, que tinha a seu lado. - Professor Purdy, Curlew Hotel, às cinco horas. Deve chegar antes disso, mas se não chegar mandarei a Janet.

Mandou-a embora, com um aceno de cabeça, e Sheila voltou para o escritório.

- Alguma coisa interessante, Sheila?

- Ora, mais um daqueles dias chatos... Uma velhota qualquer de Wilbraham Crescent e, às cinco horas, o professor Purdy... e todos aqueles horríveis nomes arqueológicos! Como desejaria que, de vez em quando, acontecesse alguma coisa emocionante, para variar!

A porta de Miss Martindale abriu-se e a diretora avisou:

- Esqueci-me de um pormenor, Sheila. Se Miss Pebmarsh não estiver, quando chegar, entre, pois a porta não estará fechada. Entre para a sala que fica à direita do vestíbulo e espere. Não se esquece ou prefere que escreva num papel?

- Não me esquecerei, Miss Martindale.

A diretora voltou para o seu santuário.

Edna Brent tirou debaixo da cadeira um sapato um bocado espampanante, cujo salto altíssimo e muito fino se despregara.

- Como diabo regressarei a casa? - perguntou, tristemente.

- Deixa-te de lamúrias, alguma coisa se há-de arranjar - respondeu-lhe uma das outras raparigas, quase sem deixar de martelar as teclas.

Edna suspirou e meteu na máquina uma nova folha de papel. 'O desejo dominava-o. Com dedos frenéticos rasgou o tecido finíssimo que lhe cobria os seios e empurrou-a para a sopa'...

- Bolas! - resmungou Edna, a procurar a borracha, ao ver que escrevera "a sopa" em vez de "o sofá".

Sheila pegou na malinha de mão e saiu.

Wilbraham Crescent era uma fantasia criada por um construtor de 1880, mais ou menos, e constava de uma meia-lua de duas fileiras de casas com os jardins de permeio, traseiras com traseiras. Este conceito arquitetónico causava constantes dificuldades às pessoas que não conheciam o lugar. As que chegavam ao lado exterior da meia-lua tinham dificuldade em encontrar os números mais baixos, e as que chegavam ao lado interior viam-se às aranhas para descobrir os mais altos.

As casas eram limpas, afetadas, com varandas artísticas e um ar muitíssimo respeitável. O modernismo mal lhes tocara ainda, pelo menos exteriormente. As cozinhas e as casas de banho tinham sido as primeiras divisões a sofrer as consequências das mudanças.

Não havia nada de especial no número 19. Tinha cortinas impecáveis e um puxador muito reluzente, na porta principal. De ambos os lados do caminho que conduzia à entrada erguiam-se roseiras.

Sheila Webb abriu a cancela, encaminhou-se para a porta principal e tocou à campainha. Aguardou um ou dois minutos e, como não lhe respondessem, obedeceu às instruções recebidas. Girou o puxador, a porta abriu-se e ela entrou. A porta do lado direito do vestíbulo estava entreaberta. Sheila bateu, aguardou um momento e entrou também.

Encontrou-se numa vulgar e aconchegada sala de estar, talvez um pouco atravancada para o gosto moderno. A única coisa extraordinária que lhe chamou a atenção foi a abundância de relógios: um relógio de pé, a um canto; um relógio de porcelana de Dresden, na chaminé; um relógio de prata, na secretária; um pequeno relógio dourado de fantasia, numa papeleira, e numa mesa, junto da janela, um velho relógio de viagem, com uma caixa de cabedal, desbotado e o nome ROSEMARY * em letras douradas e já um pouco apagadas, a um canto.

Sheila olhou, um pouco surpreendida, para o relógio da secretária, segundo o qual já passava das quatro e dez. Olhou para o da chaminé e verificou que se encontrava nas mesmas circunstâncias.

Estremeceu violentamente, ao ouvir um estalido, por cima da cabeça, e ao ver sair um cuco de um relógio de parede, de maneira esculpida. O passaroco anunciou, em tom audível e firme, quase ameaçador: cu, cu! cu, cu! cu, cu! Depois desapareceu e a portinha fechou-se.

Sheila Webb esboçou um sorriso e contornou a ponta do sofá. De repente, porém, estacou, petrificada.

Estiraçado no chão estava o corpo de um homem, de olhos semicerrados e sem vida e com uma mancha escura e úmida na frente do fato cinzento-escuro.

A jovem baixou-se, quase maquinalmente, e tocou-lhe na cara e numa das mãos. Estavam ambas frias. Depois tocou na mancha úmida e retirou bruscamente a mão, de olhos desorbitados de horror.

No mesmo instante ouviu abrir a cancela e olhou, quase sem dar por isso, para a janela. Uma figura de mulher subia o carreiro, apressada. Sheila engoliu a custo a saliva, pois tinha a garganta ressequida. Sentia-se pregada ao chão, incapaz de se mexer ou gritar, de olhos fixos em frente.

A porta abriu-se e entrou uma mulher alta e idosa, com um saco de compras. Tinha cabelos grisalhos ondulados, penteados para trás, e olhos muito grandes e de um azul muito bonito, olhos que fitaram Sheila, mas não a viram.

A jovem soltou uma espécie de gemido abafado, os olhos azuis fitaram-na de novo e a mulher perguntou, vivamente:

- Está aí alguém?

- Es... está - gaguejou Sheila, enquanto a mulher se aproximava, depressa, das costas do sofá.

Depois gritou:

- Não... não! Pisa-o... pisa-o e ele está morto!
Agatha Christie
* Rosemary significa alecrim, em inglês, mas também é tomado na acepção de "recordação"

quarta-feira, abril 29

Sob proteção


Outra carta na garrafa

Hei, você!

Não sei quanto tempo faz, mas faz bastante tempo que meu computador abre com imagens lindas. São fotos realmente extraordinárias de praias de mar, grutas, faróis, lagos com montanhas ao fundo, pequenos vilarejos nas margens de rios… Umas vezes ficam por dias se repetindo, outras trocam a cada ligar e desligar. Tem um comando a pedir opinião sobre a foto que nunca entrei – pareço paranoico ao pensar que estes botões querem saber de mim mais do que confessam?

Já são meses olhando as imagens. Anos, talvez. Sou distraído com essas coisas, sabe? Porém, quem sabe motivado pelo isolamento social, dei-me conta que não há pessoas nas fotos. Tem céu, tem água, tem floresta. Tem muita areia e algumas rochas. Intervenções do homem, tem – ou vistas ao longe, ou completamente isoladas. Quem fotografou não aparece, bem como está atrás das lentes supostas companhias. Existirão? A lógica diz que sim, mas a composição existe para fazê-los sumirem.

Onde estão todos?

Tivesse eu acesso aos responsáveis por este carinho ofertado na abertura do computador, uma verdadeira galeria de arte franqueada para tornar nosso cotidiano mais agradável, faria um pedido: altere completamente a série. Hoje, depois do dar-me-conta, olhar as paisagens dói. É a dor da solidão, do pesar por tantas mortes, do imaginar futuros distópicos onde a humanidade seria pouco mais do que marcas deixadas na paisagem. Troque por festas populares, praças lotadas, parques de diversão. Estádios esportivos, encontros religiosos, crianças brincando. Casais apaixonados, idosos sorrindo, animais de estimação. Que tal?

A intenção pode parecer boba. Uma iniciativa digna de Poliana virtual. Sei lá… Ainda assim, creio ser capaz de atenuar tantos maus pensamentos que abalam o sono, abatem a esperança, contaminam feito um vírus anímico. Caso você tenha algum canal de interlocução com o Bill Gates, leve a ele meu apelo.

Desta ilha em que me encontro, com carinho.

E assim se passam os dias... cinzentos

Chris Beatrice

A nova arte de varandear

Dia 45.

E ao 44º dia, sexto domingo de quarentena, não me apeteceu escrever. Normalmente, um cursor a piscar numa folha em branco costuma ser um desafio encarado com agrado. Gosto da sensação de desafio de ter uns milhares de carateres para debitar num ecrã. É engraçado como, por mais anos disto que se leve, quando nos sentamos para escrever, nunca sabemos bem quem vai sair vencido ou vencedor: se nós ou a folha (que ficaria melhor) em branco.


Mas ontem, confesso, padeci da humana preguiça. Atire a primeira pedra quem nunca. Sucumbi a ela e dediquei a tarde a varandear, embalada por uma playlist de jazz a tocar na coluna e o cão sempre deitado ao meu lado no chão. Ofereci-me umas horas sem nada para fazer. Como assim nada?, cheguei a perguntar, meio pasmada com a própria ideia, de mim para os meus botões. Nada, Mafalda, nada é nada, respondi-me. Nem livro, nem revistas, nem jornais para ler, nem notas no telemóvel para tirar. Nada, nadinha, será possível? É lamentável como hoje parece tão difícil desligarmos o cérebro e não fazermos nada. Não sei como deixámos que isto nos acontecesse.

Estendi-me numa cama de paletes improvisada e fechei os olhos. Tentei resistir ao apelo de estar, o tempo todo, a fazer listas ou a tentar resolver problemas na minha cabeça. Deixei-me estar. Quase que consegui ouvir Fernando Pessoa a dizer-me ao ouvido: “Ai que prazer/ Não cumprir um dever/ Ter um livro para ler/ E não o fazer!”. Que coisa rara e nunca vista… Tenho uma varanda desde que me mudei para esta casa, há 12 anos. E foram, na verdade, tão poucas as vezes que realmente desfrutei dela com tranquilidade. Cuido das plantas com dedicação, rego-as e limpo-lhes as folhas secas, apanho a alpista que os pássaros que nos visitam espalham no chão, mas nunca me detive realmente por ali. Até agora, a varada era só mais um afazer na minha vida. Até a cama de rede que comprei foi, durante anos, vetada ao abandono e a desbotar ao sol.

Mas por estes dias, tudo mudou. A varanda tornou-se o segundo centro da casa, a seguir à cozinha. O lugar onde ouvimos os pássaros, olhamos o céu, fotografamos a chuva e os bichos, adivinhamos as formas das nuvens, vislumbramos ao longe um pedacinho de mar e fazemos apostas às ondas. Almoçamos e lanchamos na varanda, cantamos na varanda, pintamos e fazemos cerâmica na varanda, fazemos ginástica e ioga na varanda. A cama de rede já precisava de um sistema de senhas.

Desconfio que é algo que sucedeu a muitos portugueses. Nas nossas varandas, cabe agora o mundo todo. Acho comovente como redescobrimos este espaço, que muitos tinham a sorte de ter mas que para pouco mais servia do que estender a roupa, e lhe passámos a dar toda uma nova vida. Bastam, na verdade, pouco mais do que dois metros quadrados para dar um concerto, projetar cinema para os vizinhos ou recitar poesia, como as histórias que fui ouvindo por estes dias. Quem diria que podemos ser tão felizes nas nossas varandas…

Elas podem mesmo ser centros de convívio social. Na semana passada, a passear o cão, passei por um bairro de prédios altos aqui ao lado. Às 21h da noite, toda a vizinhança estava na varanda, para um novo ritual repetido diariamente. Fiquei a ver – eram dezenas de famílias, a falar umas com as outras. Uns lançavam palavras de ordem, outros acendiam luzes multicolores, outros punham música. No fim da catarse coletiva, a despedida: boa noite vizinhos, força, até amanhã! Encontramo-nos na varanda, à mesma hora. Será que depois de tudo isto passar vão esquecer-se das varandas e deixar de se falar nos elevadores?

terça-feira, abril 28

Inspire-se

Os livros são apenas para inspirar
Ralph Waldo Emerson

A repulsa do Poder pelo homem de letras

A repulsa dos poderes constituídos pelo homem de letras e pelo homem de pensamento (pois tanto a expressão racionalista do filósofo e do sociólogo como a apreensão intuitiva do real a que procede o ficcionista surgem como ameaça aos sistemas de imposição de ideias ou de coerciva persuasão), esse afastamento do intelectual inconformista, transformado assim, com raras excepções (que nalguns casos já beiram o limite da assimilação) em outsider, representa uma destruição de valores culturais, que se traduz não poucas vezes em atraso de gerações.

Evidentemente, tal relegamento do escritor para zonas de sombra acicata-o por vezes, levando-o a produções vertebradas, que são autênticos gritos da inteligência rebelde e onde não raro se derrama o melhor da capacidade imaginativa, tensa e exasperada, de períodos em que se obscurece a comunicação normal entre os homens e em que a acção do livro, reduzida embora em extensão, ganha uma acutilante qualidade crítica e concentra a dignidade de minorias advertidas culturalmente e firmes no seu espírito de resistência. Mas o saldo não deixa de ser negativo quando se considera não já tudo aquilo que o escritor suporta e sofre, mas - e sobretudo - o muito que a camada dos leitores perde pela falta de convívio efectivo com aqueles que são não, é claro, os meus mentores, mas os que injectam na massa ideias novas, que divisam, na zona penumbrosa em que o futuro se vai pouco a pouco libertando da hora viva, os moventes sinais de amanhã.

Urbano Tavares Rodrigues,"Ensaios de Escreviver"

Em casa, bem acompanhado


Um gentil ladrão

Batem à porta. Bater é uma maneira de dizer. Moro longe de tudo, só a fome e a guerra me vêm visitar. E agora, na eternidade de mais uma tarde, alguém fuzila com os pés a porta da minha casa. Vou a correr. Correr é uma maneira de dizer. Arrasto os pés, os chinelos rangendo no soalho. Com a minha idade, é tudo o que posso. A gente começa a ficar velho quando olha o chão e vê um abismo.

Abro a porta. É um homem mascarado. Ao notar a minha presença, ele grita – Três metros, fique a três metros!

Se é um assaltante, está com medo. Esse temor inquieta-me. Ladrões medrosos são os mais perigosos. Retira da bolsa uma pistola. Aponta-a na minha direção. É estranha aquela arma: de plástico branco, emitindo um raio de luz verde. Aponta a pistola para o meu rosto e eu fecho os olhos, obediente. É quase uma carícia aquele raio de luz sobre o meu rosto. Morrer assim é um sinal que Deus respondeu às minhas preces.

Susa Monteiro

O mascarado tem uma voz doce, um olhar delicado. Não me deixo enganar: os mais cruéis soldados surgiram-me com modos de anjo. Há tanto, porém, que ninguém me faz companhia, que acabo entrando no jogo.

Peço ao visitante que baixe a pistola e tome lugar na única cadeira que me resta. Só então reparo que traz uns sacos de plástico envolvendo os sapatos. É óbvia a intenção: não quer deixar pegadas. Peço-lhe para baixar a máscara, asseguro-lhe que pode ter toda a confiança em mim. O homem sorri com tristeza e murmura – Nestes dias não se pode confiar, as pessoas não sabem o que trazem dentro delas. – Entendo a enigmática mensagem, o homem pensa que, sob a minha aparência desvalida, se esconde um valioso tesouro.

Olha em redor e, como não encontra nada para roubar, o homem acaba por se explicar. Diz que vem dos serviços de saúde. E eu sorrio. É um jovem ladrão, não sabe mentir. Diz que os seus chefes estão preocupados com uma doença grave que se espalha rapidamente. Faço de conta que acredito.

Há sessenta anos atrás quase morri de varíola. Alguém me veio visitar? A minha esposa morreu de tuberculose, alguém nos veio ver? A malária roubou-me o meu único filho, fui eu que o enterrei sozinho. Os meus vizinhos morreram de sida, nunca ninguém quis saber. A minha falecida mulher dizia que a culpa era nossa porque escolhemos viver longe dos lugares onde há hospitais. Ela, coitada, não sabia que era o inverso: os hospitais é que se instalam longe dos pobres. É uma mania deles, dos hospitais. Não os culpo. Sou parecido com eles, os hospitais, sou eu que albergo e trato as minhas enfermidades.

O mentiroso assaltante não desiste. Apura os métodos, sempre de modo tosco. Quer justificar-se: a pistola que me apontou era para medir a febre. Diz que estou bem, anuncia com um sorriso tonto. E eu finjo respirar de alívio. Quer saber se tenho tosse. Sorrio, condescendente. Tosse foi coisa que me quase levou à cova, depois de ter vindo das minas há vinte anos. Desde então, as minhas costelas quase não se movem, o meu peito é feito apenas de poeira e pedra. No dia que voltar a tossir, será para pedir licença nas portas de São Pedro.

– Não me parece estar doente – declara o impostor. – Contudo, o senhor pode ser um portador assintomático.

– Portador? – pergunto. – Portador de quê? Por amor de Deus, pode-me revistar a casa, sou um homem sério, quase nunca saio de casa.

O visitante sorri e pergunta se sei ler. Encolho os ombros. E ele coloca sobre a mesa um documento com instruções de higiene e uma caixa com barras de sabão, um frasco com aquilo a que ele chama de “uma solução alcoólica”. Coitado, deve imaginar que, como todos os velhos solitários, ando metido na bebida. À despedida, o intruso diz – Daqui a uma semana passo por aqui a visitá-lo.

Então, me vem à cabeça o nome da doença de que fala o visitante. Conheço bem essa doença. Chama-se indiferença. Era preciso um hospital do tamanho do mundo para tratar essa epidemia.

Contrariando as suas instruções, avanço sobre ele e abraço-o. O homem resiste com vigor e escapa-me dos braços. No carro, despe-se apressadamente. Livra-se da roupa como se despisse as vestes da própria peste. Dessa peste chamada miséria.

Aceno-lhe sorridente. Depois de anos de tormento, reconcilio-me com a humanidade: um ladrão tão desajeitado só pode ser um homem bom. Para a semana, quando ele voltar, vou deixar que roube a velha televisão que tenho no quarto.

Cidades leitoras


O que podemos aprender com as pandemias da ficção?

Em tempos incertos e estranhos como estes, em que cumprimos nosso isolamento social para achatar a curva de contágio, a literatura fornece escapismo, alívio, conforto e companhia. Porém, o apelo da ficção pandêmica também aumentou. Muitos títulos pandêmicos parecem guias para a situação de hoje. E muitos desses romances descrevem epidemias numa progressão cronológica realista, dos primeiros sinais de problema aos piores momentos, e o retorno à "normalidade". Eles nos mostram que já passamos por isso antes.

Um Diário Do Ano Da Peste, de Daniel Defoe, publicado em 1772, que narra a peste bubônica de 1665 em Londres, conta uma série de eventos sinistros que lembram nossas próprias respostas ao choque inicial e à propagação voraz do novo vírus.

Defoe começa sua história em setembro de 1664, quando circulam rumores sobre o retorno da 'pestilência' à Holanda. Em seguida, vem a primeira morte suspeita em Londres, em dezembro, e depois, na primavera, Defoe descreve como os avisos de morte publicados nas paróquias locais tiveram um aumento sinistro. Em julho, a cidade de Londres impõe novas regras - regras que estão se tornando rotineiras em 2020, como "que todas as festas públicas, jantares em tabernas, cervejarias e outros locais de entretenimento comum sejam suspensos até novas ordens".

Em agosto, Defoe escreve, a peste estava "muito violenta e terrível"; no início de setembro, atingiu o seu pior, com "famílias inteiras, ruas inteiras de famílias... desaparecendo juntas". Em dezembro, "o contágio estava esgotado, e também o clima do inverno acelerava, e o ar estava limpo e frio, com geadas fortes... a maioria dos que haviam adoecido se recuperou e a saúde da cidade começou a voltar". Quando finalmente as ruas foram retomadas, "as pessoas andavam dando graças a Deus por sua libertação".

O que poderia ser mais dramático do que um retrato de uma peste em andamento, quando as tensões e emoções são intensificadas e os instintos de sobrevivência surgem? A narrativa pandêmica é natural para romancistas realistas como Defoe e, mais tarde, Albert Camus.

A Peste, de Camus, em que a cidade de Oran, na Argélia, fica fechada por meses enquanto uma doença dizima seu povo (como de fato aconteceu em Oran no século 19), é um livro também repleto de paralelos com a crise de hoje. Os líderes locais relutam a princípio em reconhecer os sinais precoces que vêm dos ratos morrendo pela doença. "Os pais de nossa cidade estão cientes de que os corpos em decomposição desses roedores constituem um grave perigo para a população?", pergunta um colunista no jornal local. O narrador do livro, Dr. Bernard Rieux, reflete o heroísmo silencioso dos trabalhadores médicos. "Não faço ideia de o que me espera ou do que acontecerá quando tudo acabar. No momento eu sei disso: há pessoas doentes e elas precisam de cura", diz ele. No final, há a lição aprendida pelos sobreviventes da peste: "Eles sabiam agora que, se há uma coisa que sempre se pode desejar e, às vezes, alcançar, é o amor humano".

A gripe espanhola de 1918 reformulou o mundo, levando à morte de 50 milhões de pessoas, após 10 milhões de mortos na Primeira Guerra Mundial. Ironicamente, o dramático impacto global da gripe foi ofuscado pelos eventos ainda mais dramáticos da guerra, que inspiraram inúmeros romances. Enquanto as pessoas praticam agora o 'distanciamento social' e as comunidades ao redor do mundo se retêm, a descrição de Katherine Anne Porter da devastação criada pela gripe espanhola em seu romance Cavalo Pálido, Pálido Cavaleiro, de 1939, soa familiar: "É terrível... Todos os teatros e quase todas as lojas e restaurantes estão fechados, e as ruas estão cheias de funerais o dia todo e ambulâncias soam a noite toda", diz o amigo da heroína Miranda, Adam, logo após ela ser diagnosticada com a influenza.

Porter retrata a febre e os tratamentos de Miranda, e semanas de doença e recuperação, até o despertar para um novo mundo remodelado pelas perdas da gripe e da guerra.

Porter quase morreu da gripe. "Eu mudei de uma forma estranha", ela disse à revista literária The Paris Review em uma entrevista de 1963. "Levei muito tempo para sair e viver no mundo novamente. Eu estava realmente 'alienada' no sentido puro.

As epidemias do século 21 - a síndrome respiratória aguda grave (Sars, na sigla em inglês), em 2002, a síndrome respiratória do Oriente Médio (Mers, em inglês), em 2012 e o ebola, em 2014 - inspiraram romances sobre desolação e colapso pós-peste, cidades desertas e paisagens devastadas.

O Ano do Dilúvio (2009), de Margaret Atwood, mostra-nos um mundo pós-pandêmico com humanos quase extintos, após a maioria da população ter sido exterminada 25 anos antes pelo 'Dilúvio sem Água', uma peste virulenta que "viajava pelo ar como se tivesse asas, queimando cidades como fogo".

Atwood captura o extremo isolamento sentido pelos poucos sobreviventes. Toby, uma jardineira, olha o horizonte do jardim da cobertura de um spa deserto. "Deve haver mais alguém ... ela não pode ser a única no planeta. Deve haver outros. Mas amigos ou inimigos? Se ela vir um, como vai saber?". Ren, que foi dançarina de trapézio e "uma das mais limpas entre as sujas da cidade" está viva porque estava em quarentena por uma possível doença transmitida por um cliente. Ela escreve seu nome repetidamente. "Você pode esquecer quem você é se estiver sozinho demais", diz.

Por meio de flashbacks, Atwood explica como o equilíbrio entre os mundos natural e humano foi destruído pela bioengenharia patrocinada por grandes empresas e como ativistas como Toby reagiram. Sempre atenta aos problemas que tecnologia pode trazer, Atwood baseia seu trabalho em premissas plausíveis, tornando o Ano do Dilúvio terrivelmente presciente.

O que torna a ficção pandêmica tão envolvente é que os humanos se unem na luta contra um inimigo que não é um inimigo humano. Não existem 'mocinhos' ou 'bandidos'; a situação é mais sutil. Cada personagem tem uma chance igual de sobreviver ou não. A variedade de respostas de cada personagem às circunstâncias terríveis torna a história interessante para quem escreve - e para quem lê.

Severance (A Separação, em tradução livre - livro indisponível no Brasil), de Ling Ma (2018), que o autor descreveu como um "romance apocalíptico de escritório" com uma história de imigração, é narrada por Candace Chen, uma moça que trabalha em uma empresa de publicação da Bíblia e tem seu próprio blog. Ela é uma das nove sobreviventes que fogem da cidade de Nova York durante a pandemia fictícia da febre de Shen em 2011. Ma descreve a cidade depois que "a infraestrutura ... entrou em colapso, a internet caiu em um buraco, a rede elétrica foi fechada".

Candace se junta a um grupo numa viagem em direção a um shopping em um subúrbio de Chicago, onde o grupo planeja se estabelecer. Eles viajam por uma paisagem habitada pelos "febris", que são "criaturas de hábitos, imitando velhas rotinas e gestos" até morrerem. Os sobreviventes são imunes aleatoriamente? Ou "selecionados" pela orientação divina? Candace logo descobre que em troca da segurança de estar em grupo precisa demonstrar uma estrita lealdade às regras religiosas estabelecidas pelo líder do grupo Bob, um ex-técnico de TI autoritário. É apenas uma questão de tempo até que ela se rebele.

Nossa própria situação atual é, obviamente, nem de longe tão extrema quanto a prevista em Severance. Ling Ma explora o pior cenário que, felizmente, não estamos enfrentando. Em seu romance, ela analisa o que acontece em seu mundo imaginário após a pandemia desaparecer. Depois do pior, quem está encarregado de reconstruir uma comunidade, uma cultura? Entre um grupo aleatório de sobreviventes, o romance pergunta: quem decide quem tem poder? Quem define as diretrizes para a prática religiosa? Como os indivíduos retêm poder de agência?

As vertentes narrativas do romance Estação Onze, de Emily St John Mandel, de 2014, ocorrem antes, durante e depois de uma gripe ferozmente contagiosa originária da República da Geórgia "explodir como uma bomba de nêutrons na superfície da terra", destruindo 99% da população da população global. A pandemia começa na noite em que um ator que interpreta o rei Lear, personagem de Shakespeare, sofre um ataque cardíaco no palco. Sua esposa é autora de histórias em quadrinhos de ficção científica ambientadas em um planeta chamado Estação Onze. O livro tem ecos dos Contos de Canterbury, clássico da literatura inglesa, escrito por Chaucer, o prototípico e irreverente ciclo de histórias do século 14, que tem como pano de fundo a peste negra.

Quem e o que determina a arte, pergunta Mandel? A cultura de celebridades importa? Como vamos reconstruir as coisas depois que o vírus invisível nos sitiar? Como a arte e a cultura mudarão? Sem dúvida, existem romances sobre nossas circunstâncias atuais em andamento. Como os contadores de histórias nos próximos anos retratarão essa pandemia? Como eles irão narrar a onda de espírito solidário, os inúmeros heróis entre nós? Essas são questões a serem ponderadas à medida que aumentamos o tempo de leitura e preparamos o surgimento do novo mundo.
Jane Ciabattari

segunda-feira, abril 27

Abrigue-se


Vida

 Nuri Ann
Do primeiro dia ao último, sempre essa ilusão, esse engano: você pensa que está vivendo – qual! – e todo o tempo você está morrendo. Ninguém vive, todo mundo apenas morre. Acontece somente que o processo de morrer é lento, e a esse acabar-se devagarinho é que os homens chamam de viver. Nasce um menino, por exemplo. Veio roxo e mudo, é um pequeno defunto maltratado. O médico faz as manipulações clássicas, cabeça para baixo, palmada, ar no pulmão – o menino solta um grito agudo e dilacerante e o pai sorri, deslumbrado: "Meu filho está vivendo, começou a viver!" Viver nada, seu idiota, seu filho começou foi a morrer. Sim, desde aquele primeiro instante. Porque vida é um processo negativo, enquanto a morte é que é o processo positivo. Viver é andar para trás, é ceder terreno, é assim como um perde-ganha. A gente faz a conta da idade; quantos anos já viveu? Para que essa conta, senão por um único motivo: para fazer o cálculo provável do quanto ainda nos resta, antes de morrer. A cada ano, a cada dia, a cada hora e minuto, você tem menos vida dentro de si: menos coração, menos veia, menos músculo, menos reserva de fonte de energia. Viver, para resumir, é usar-se. Lanterna de bolso, com a pilha que não se substitui. Acabou-se a pilha, acabou-se tudo, joga fora o casco inútil, que luz não sai mais dali.

E assim, portanto, não adianta ambição. Você trabalhando por um lado, a morte trabalhando pelo outro, são como duas cobras que se mordem pela cauda. Você se agitando, cuidando que está construindo, enquanto ela, silenciosa, rói sem parar, a estrutura interna, deixando apenas a ilusão da superestrutura: mas é oca, já não tem nada dentro. Você compra, vende, aprende alemão, constrói casa própria e faz ginástica. Tudo isso a serviço de quem se supõe vivo – pelo menos por um prazo; como se o relógio parasse para você gozar um momento a paisagem e o ar bom! Porém, na verdade, você desde o começo é um meio-morto, que aos poucos vai se entregando – todo dia um pedacinho, até a entrega definitiva.

E depois não adianta orgulho. Você ergue a voz, mas sabe por acaso com o que conta para apoiar a sua arrogância? Talvez na sua caixa do peito só reste um fole vazio. Seu passo é firme, agora, mas pode estar cambaleando dentro de dez minutos. Sabe, talvez você há anos esteja se mantendo de pé apenas por autossugestão.

E escute mais: nem o pudor adianta. Esse ciúme de si mesmo que muitos pensam que é virtude, essa valorização da carne viva, esse mistério, que nem aos olhos amantes se desvenda total, essa fração de corpo secreta e triste que todos escondemos até de nossa própria vista, talvez hoje, talvez daqui a pouco, seja tirada ao seu controle, entregue às mãos dos outros, exposta, manipulada, retratada. E aí, de que serviram tantos anos de recato? Para chegar a tal exibição?

E então para que todo o esforço? Para que glorificar o que é um simples processo de desgaste e enfeitá-lo com paixões, conquistas e esperanças? Se viver é a própria negação da vida, ou a sua destruição, para que sofrer e lutar, enfrentando esse duro caminho que não leva a lugar nenhum? É como nadar de terra para o mar alto. Adiante não há mais nada, só água funda, oceano. Terra não há, nem ilha, nem nova praia; só a água funda, comedeira. Então que loucura é essa de oferecer o peito à vaga, furar a rebentação, cortar a água com os braços? Por mais que se esforce o nadador, mais hora menos hora terá que parar, exausto, mergulhando de vez na onda amarga. Digam, digam para que deixar a praia, se há a certeza de que nada espera o nadador, nada, senão a asfixia final?

Mural


Revanche dos clássicos: livros que eram deixados para depois viram meta durante a pandemia

Quem costuma acompanhar as listas de mais vendidos tomou um susto. Entre os dias 13 e 19 de abril, Jane Austen superou “A sutil arte de ligar o foda-se”. No ranking elaborado pelo portal de notícias do mercado editorial PublishNews, que O GLOBO publica semanalmente, o box com três livros da romancista inglesa apareceu em 12º lugar na categoria geral. Enquanto isso, o best-seller de Mark Manson, título mais vendido de 2018 e 2019, saiu subitamente do grupo dos 20 primeiros. Desde o início da quarentena, em março, coisas assim andam acontecendo. E os clássicos estão voltando.

Em diversas listas, “Drácula”, de Bram Stocker, e “Guerra e paz”, de Leon Tolstói, além dos boxes de Franz Kafka e Edgar Allan Poe, tiveram performances surpreendentes. O mesmo aconteceu com obras icônicas que refletem os temores do momento, como “A peste”, de Albert Camus, e “O amor nos tempos do cólera”, de Gabriel García Márquez. Paralelamente, distopias como “1984”, de George Orwell, que já vinham bem há algum tempo, ganharam ainda mais fôlego.

— O fechamento das lojas mudou completamente o perfil das vendas — diz Rafaella Machado, editora do Grupo Record. — O público que tem comprado livros via e-commerce é mais velho, e livros pop e juvenis, que dependem de grandes redes ou de eventos para vender, tendem a ficar em segundo plano. O que está sustentando o mercado agora é a força do catálogo, os livros já consagrados e os clássicos.

Publisher do grupo Companhia das Letras, Otávio Marques da Costa resume o cenário:

— Editoras com um catálogo amplo e diverso têm a chave para sobreviver a esta crise. Como é natural que as empresas reduzam a produção, quem possui uma variedade maior de publicações consegue reagir ao presente e encontrar, no catálogo, títulos que tenham ressonância com o presente. Assim, navegam melhor na crise.

A migração para o e-commerce afeta hábitos de consumo e, por consequência, o produto final que acaba no nosso carrinho virtual. O consumidor tende a sentir-se mais atraído pelo conteúdo do livro do que pelo apelo de sua capa, aposta o conselheiro editorial Eduardo Vilela.

— Em uma loja, quando estou pegando o livro nas mãos, a compra por impulso é muito mais forte — ele diz. — Na internet o foco muda, o comprador tem mais tempo para refletir se realmente precisa do produto.

Novos hábitos de consumo, porém, não são suficientes para explicar a “vingança” do fundo de catálogo. O cenário geral do mercado editorial, que se encontra num momento dramático, mudou as regras do jogo. Com as incertezas econômicas, as pessoas passaram a poupar dinheiro. E os livros nem sempre aparecem no topo das prioridades, lembra Bruno Mendes, CEO e fundador do #coisadelivreiro, além de sócio do PublishNews. Um clássico, porém, é um clássico.

— As pessoas estão se programando para ler na quarentena o que sempre esteve na fila mas era constantemente adiado — conta Daniel Louzada, proprietário da Livraria Leonardo Da Vinci, citando o que nota nas vendas da empresa via site, WhatsApp e redes sociais, onde obras de Gabriel García Márquez, Fiódor Dostoiévski e José Saramago estão entre as mais buscadas hoje.

Às vezes, porém, os “veteranos” são mais recentes. A Intrínseca detectou o interesse de seus leitores voltando-se para obras lançadas há cerca de um ano, como “Um lugar bem longe daqui”, “O labirinto do fauno” e “Pequenos incêndios por toda parte”.

— Percebemos também uma volta dos “livros do coração”, ou seja, aqueles pelos quais as pessoas têm afeto. É o caso dos livros do Rick Riordan e da série “Crepúsculo”. Mas também de clássicos da Intrínseca, como “Precisamos falar sobre o Kevin” e “A menina que roubava livros”. As pessoas estão voltando a histórias confortáveis — avalia Heloisa Daou, diretora de marketing da editora

. — Esse movimento foi tão forte que mudamos nossa estratégia digital e estamos resgatando obras assim nas nossas redes sociais e em parcerias com blogueiros. Deu certo e as pessoas estão comprando.

Bruno Mendes lembra que, antes, para ficar no primeiro lugar geral no ranking brasileiro, um livro precisava vender entre 5 mil e 10 mil exemplares. Agora, como as vendas estão muito menores e mais pulverizadas, as primeiras posições variam muito facilmente.

— Livros que vendiam 4 mil exemplares estão vendendo 200 — compara a agente literária Lucia Riff. — A venda se espalhou entre e-book e catálogo, não tem mais a livraria, está completamente on-line. Mudou a maneira de comprar livros, há muitas promoções e campanhas das livrarias, há um outro perfil de venda, de comprador, mudou tudo.

Ou seja, há menos consumo, e quem está comprando tem escolhido livros que noutros tempos não ocupariam a lista geral. Sem a pressão das novidades, é a vez dos consagrados. Ou você não anda de olho na lista de “leituras imperdíveis para a quarentena”?

domingo, abril 26

Pensamento


Reaprendendo a vida

Afrooz Gholizadeh
Há algumas semanas, quando já se ouviam tambores distantes, recebemos dois casais amigos para jantar. Um deles trouxe um vinho, o outro, sorvete. Passei vídeos de musicais dos anos 30. Falamos de filmes, livros, gatos e outros triviais. Foi divertido.

Na véspera, Gérson, Arrascaeta, Éverton Ribeiro, Bruno Henrique e Gabigol tinham esmagado mais um. Na tarde seguinte, fomos a uma roda de choro numa praça, e, à noite, à inauguração de uma pequena livraria de rua, em que as pessoas riam e se abraçavam ao se rever. E, então, voltamos para casa. Onde estamos desde então —há exatamente um mês.

Por algum motivo, houve um alerta naquele fim de semana. Ninguém de nossas relações caiu doente, mas foi como se, de repente, os tambores tivessem ficado próximos, o Brasil perdesse a inocência e despertássemos para o inimigo do qual os outros países já estavam tentando se proteger. Nunca mais saímos.

Os saraus de música em casa, o futebol pela TV do botequim, na calçada, entre pessoas que nunca vimos, e as tardes e noites na rua, tudo isso parece agora pertencer a outra era, uma era mágica. E, no entanto, era tão natural quanto respirar e, por ser assim, nunca tínhamos pensado a respeito. Nem poderíamos —não existia uma possibilidade contrária. Como imaginar que, subitamente, olhando para trás, aquilo nos pareceria tão remoto? E foi outro dia mesmo.

Surgem pensamentos sombrios. E se naqueles últimos dias já houvesse risco de contágio? E se estivéssemos nos passando mutuamente o inimigo? Claro que nada aconteceu. Mas a cabeça é espírito de porco e vive de pensar.

Inclusive sobre o futuro, que não lhe compete. Passada a pandemia, quando nos sentiremos de novo confiantes para receber amigos? Quando voltaremos às ruas onde se assiste ao futebol, ouvem-se choros e se inauguram livrarias? Vamos ter de reaprender a vida —e seus mais inocentes prazeres.
Ruy Castro

Navegue


Despedimos-nos uns dos outros muitas vezes

Antoine Vincent SerneelsFrench
A despedida talvez seja a parte mais difícil da esperança. Não se pode dizer muita coisa. Acho que aprendemos devagar, por vezes com muito custo, por vezes mais serenamente, e ambas as coisas estão certas. Aprendi alguma coisa sobre a arte da despedida com o poeta Tonino Guerra e a sua mulher. Parece que é uma tradição russa (ou pelo menos, eles explicavam-na assim). Antes de partir, ficávamos junto uns dos outros, por uns instantes, em puro silêncio. E depois despedíamos-nos de um modo leve, quase alegre, como se não nos fossemos realmente ausentar. Aqueles instantes de silêncio, porém, tinham atado os nossos corações com uma força que raras palavras teriam. Quando nas despedidas da vida nos parece que ficou, inevitavelmente, alguma coisa ou quase tudo por dizer, é bom pensar naquilo que o silêncio disse, ao longo do tempo, de coração a coração. Talvez o que de mais significativo somos capazes de partilhar não encontra no mundo linguagem melhor do que o silêncio.

Mesmo quando achamos que não nos despedimos, a verdade é que no fundo despedimos-nos muitas vezes. E isso é maravilhoso. A vida deu-nos isso. Termo-nos visto uns aos outros partir e regressar, dizer adeus e olá com a certeza de que nada se interrompe, voltar a ouvir mil vezes a voz dos que amamos, prolongando assim o extraordinário, o interminável encontro.

Precisamos também do socorro de outras palavras, e elas chegam se as quisermos ouvir. Vêm em nosso socorro essas palavras maiores, que não são para compreender talvez, mas que nos seguram enquanto certas despedidas (sobretudo as mais dolorosas) desprendem o seu vazio lentíssimo. Há um poema de Li Bai, um poeta chinês do século VIII, sobre dois amigos que se separam, que tenho entre os textos mais consoladores que li. "A verde montanha estende-se para lá da Muralha do Norte./ Brancas águas cercam a Muralha do Leste./ Quando aqui nos separarmos,/ seremos a erva aquática vogando por grandes distâncias. // As nuvens errantes me farão pensar em quem viaja./ O sol poente me recordará o meu amigo./ Já nos afastamos e agora acenamos com a mão./ E os nossos cavalos, um para o outro, relincham". Há palavras assim (todos temos as nossas) que são o frágil corrimão de corda que nos ampara quando a terra parece que toda se desprende.

Acredito muito naquilo que Raul Brandão deixou escrito: "Nós não vemos a vida – vemos um instante da vida. Atrás de nós a vida é infinita, adiante de nós a vida é infinita. A primavera está aqui, mas atrás deste ramo em flor houve camadas de primaveras de oiro, imensas primaveras extasiadas, e flores desmedidas por trás desta flor minúscula. O tempo não existe. O que eu chamo a vida é um elo, e o que aí vem um tropel, um sonho desmedido que há de realizar-se. E nenhum grito é inútil, para que o sonho vivo ande pelo seu pé".

Porventura o mais fecundo não está na pergunta: "porque é que eles partiram?", mas nessa outra que levaremos a vida a responder, e sempre em total gratidão: "porque é que eles vieram?".
José Tolentino Mendonça

sábado, abril 25

Os dias assim se passam agora

 Paloma Valdivia

A um jovem

Prezado Alípio:

Ontem à noite, ao sair você de nosso apartamento, aonde fora em busca de sabedoria grega e só encontrou um conhaque e um gato por nome Crispim, assentei de reduzir a escrito o que lhe dissera. Aula de ceticismo? Não. Ele se aprende sozinho.

A única coisa que se pode remotamente concluir do que conversamos é: não vale a pena praticar a literatura, se ela contribuir para agravar a falta de caridade que trazemos do berço.

Dani Torrent


Por isso, e porque não adiantaria, não lhe dou conselhos. Dou-lhe anticonselhos, meu filho. E se o chamo de filho, perdoe: é balda de gente madura. Poderia chamar-lhe irmão, de tal maneira somos semelhantes, sem embargo do tempo e do pormenor físico: cultivamos ambos o real ilusório, que é um bem e um mal para a alma.

Pouco resta fazer quando não nascemos para os negócios nem para a política nem para o mister guerreiro. Nosso negócio é a contemplação da nuvem. Que pelo menos ele não nos torne demasiado antipáticos aos olhos dos coetâneos absorvidos por ocupações mais seculares.

Recolha pois estes apontamentos, Alípio, e saiba que eu o estimo:

I – Só escreva quando de todo não puder deixar de fazê-lo. E sempre se pode deixar.

II – Ao escrever, não pense que vai arrombar as portas do mistério do mundo. Não arrombará nada. Os melhores escritores conseguem apenas reforçá-lo, e não exija de si tamanha proeza.

III – Se ficar indeciso entre dois adjetivos, jogue fora ambos, e use o substantivo.

IV – Não acredite em originalidade, é claro. Mas não vá acreditar tampouco na banalidade, que é a originalidade de todo mundo.

V – Leia muito e esqueça o mais que puder.

VI – Anote as idéias que lhe vierem na rua, para evitar desenvolvê-las. O acaso é mau conselheiro.

VII – Não fique baboso se lhe disserem que seu novo livro é melhor do que o anterior. Quer dizer que o anterior não era bom.

VIII – Mas se disserem que seu novo livro é pior do que o anterior, pode ser que falem a verdade.

IX – Não responda a ataques de quem não tem categoria literária: seria pregar rabo em nambu. E se o atacante tiver categoria, não ataca, pois tem mais que fazer.

X – Acha que sua infância foi maravilhosa e merece [ser] lembrada a todo momento em seus escritos? Seus companheiros de infância aí estão, e têm opinião diversa.

XI – Não cumprimente com humildade o escritor glorioso, nem o escritor obscuro com soberba. Às vezes nenhum deles vale nada, e na dúvida o melhor é ser atencioso para com o próximo, ainda que se trate de um escritor.

XII – O porteiro do seu edifício provavelmente ignora a existência, no imóvel, de um escritor excepcional. Não julgue por isso que todos os assalariados modestos sejam insensíveis à literatura, nem que haja obrigatoriamente escritores excepcionais em todos os andares.

XIII – Não tire cópias de suas cartas, pensando no futuro. O fogo, a umidade e as traças podem inutilizar sua cautela. É mais simples confiar na falta de método desses três críticos literários.

[Parte 2]

Mando-lhe aqui jovem Alípio, outras drágeas de suposta sabedoria, completando assim a instrução que lhe ministrei.

XIV – Procure fazer com que seu talento não melindre o de seus companheiros. Todos têm direito a presunção de genialidade exclusiva.

XV – Faça fichas de leitura. As papelarias apreciam esse hábito. As fichas absorverão o seu excesso de vitalidade e, não usadas, são inofensivas.

XVI – Se sentir propensão para o “gang” literário, instale-se no seio de sua geração e ataque. Não há polícia para esse gênero de atividade. O castigo são os companheiros e depois o tédio.

XVII – Não se julgue mais honesto que o seu amigo porque soube identificar um elogio falso, e ele não. Talvez você seja apenas mais duro de coração.

XVIII – Evite disputar prêmios literários. O pior que pode acontecer é você ganhá-los, conferidos por juízes que o seu senso crítico jamais premiaria.

XIX – Sua vaidade assume formas tão sutis que chega a confundir-se com modéstia. Faça um teste: proceda conscientemente como vaidoso, e verá como se sente à vontade.

XX – Seja mais tolerante com o cabotinismo de seu amigo; quase sempre esconde uma deficiência, e só impressiona a outros cabotinos.

XXI – Quanto ao seu próprio cabotinismo, ele esfriará se você observar que, na hipótese mais cristã, é objeto de tolerância alheia.

XXII – Antes de reproduzir na orelha de seu livro a opinião do confrade, pense, primeiro, que ele não autorizou a divulgação; segundo, que a opinião pode ser mera cortesia; terceiro, que você não admira tanto assim o confrade.

XXIII – Procure ser justo com os outros; se for muito difícil, bondoso; na pior eventualidade, omisso.

XXIV – Opinião duradoura é a que se mantém válida por três meses Não exija maior coerência dos outros nem se sinta obrigado intelectualmente a tanto. E proceda à revisão periódica de suas admirações

XXV – Procure não mentir, a não ser nos casos indicados pela polidez ou pela misericórdia. É arte que exige grande refinamento, e você será apanhado daqui a dez anos se ficar famoso; e se não ficar não terá valido a pena.

XXVI – Deixe-se fotografar à vontade, sem chamar os fotógrafos; não recuse autógrafos, mas não se mortifique se não os pedirem. Homero não deixou cartas nem retratos, mas Baudelaire deixou uns e outros. O essencial se passa com outros papéis.

XXVII – Você tem um diário para explicar-se; é assim tão emaranhado? Para justificar-se: sua consciência anda meio turva? Para projetar-se no futuro: julga-se tão extraordinário?

XXVIII – Trate as corporações com cortesia, pois poderá vir a ingressar numa; com indiferença, pois o mais provável é não ingressar nunca.

XXIX – Aplique-se a não sofrer com o êxito de seu companheiro, admitindo embora que ele sofra com o de você. Por egoísmo poupe-se qualquer espécie de sofrimento.

XXX – Boa composição oral é a de orgulho e humildade; esta nos absolve de nossas fraquezas; aquele nos impede de cair em outras. Quanto aos santos-escritores, é de supor que foram canonizados apesar da condição literária.

XXXI – Seja discreto. É tão mais cômodo!
Carlos Drummond de Andrade, "A bolsa & a vida"

sexta-feira, abril 24

Seja também um detetive


Os nossos livros

As circunstâncias que eu e o acaso, esse outro nome de deus, definimos para a minha vida fizeram-me morar, até ao dia de hoje, em onze casas de quatro distritos. Há uma cama que se deitou em várias delas (com mais algumas mudanças, terei de passar a chamar-lhe catre), mas só os livros me acompanharam sempre. Os mais antigos já foram encaixotados dez vezes. A princípio, talvez tenham temido não voltarem a exibir as lombadas numa estante, ou nunca mais poderem abrir-se perante os olhos de alguém num comboio, mas imagino que tenham acabado por acostumar-se a viajar em caixotes dentro de automóveis, como os cães ou os gatos nas transportadoras. Mesmo nas minhas casas de estudante, uma delas um sótão velho e frio, a estantezeca que me acompanhava dava ordem e abrigo àqueles que eram, mesmo sendo poucos, mas ainda assim sem qualquer dúvida, os mais importantes dos meus pertences. Ainda recordo onde, a que custo e com que alegria adquiri muitos dos livros que li na velha e muito confortável poltrona de napa verde e pernas de madeira escura que pertencera à minha bisavó e que também viajava sempre comigo (a própria poltrona também dava uma crónica, até porque acabou numa fogueira, alimentada por jornais, revistas, postais antigos e, imagine-se, adivinharam, livros).

Essa pequenina biblioteca itinerante foi crescendo e, de casa em casa, fez-se a já pesada biblioteca que hoje é. De todo o modo, contrasta enormemente – é formiga perante elefante – com a mais impressionante biblioteca particular que já vi e sobre a qual, com a devida autorização do proprietário e curador, aqui deixarei algumas linhas.


Há uns anos, o escritor Valter Hugo Mãe disse-me: tens de ver. E eu alinhei, movido pela vontade de ver para crer. A casa era a do cineasta e crítico de cinema Lauro António, em Lisboa, e o adjetivo que melhor lhe serve é: inesquecível. Não era uma casa onde morasse gente; era antes uma casa onde moravam livros e na qual estes permitiam que também morassem pessoas. Por usucapião, os livros tinham tomado conta da casa, ela era deles e eles estavam em contínua multiplicação há décadas. Tudo ali eram livros. Talvez para se lerem uns aos outros, alguns até se tinham barricado numa divisão, que ocupavam por completo. Estavam em pilhas, do chão ao teto, do fundo até à entrada, e decidiram jogar-se contra a porta, que, tendo sobre ela o peso de tanta literatura, não se conseguia abrir. Acaso um dia tenham decidido arrancá-la, uma avalancha de histórias terá rolado pelo corredor afora. Inolvidáveis, também, as estantes desse corredor, nas quais moravam, organizadas com cuidados de joalheiro, as obras completas dos grandes autores portugueses. E o sofá? Belíssimo, apesar de não lhe ter visto um centímetro – apenas o pude adivinhar. Também ele estava tomado pelos livros – era assento deles e não dos humanos por eles autorizados a viverem naquela casa de nove assoalhadas – e só se identificava por ser um volume retangular de grandes dimensões revestido de livros algures naquilo que se imagina ter sido o centro do que fora uma sala. Havia livros por todo o lado, circular era fazer gincanas sucessivas entre pilhas que precariamente equilibravam saberes e mundos em cima de outras pilhas. Como estalactites e estalagmites, umas pareciam vir do teto e outras nascer do soalho aquecido por tanto papel. Eram mais de – pasmemo-nos – oitenta mil os volumes que por amor e dedicação extremos aos livros Lauro António guardava naquele apartamento – sim, leram bem, num apartamento. Recentemente, cerca de metade desta biblioteca foi oferecida à Câmara de Setúbal, que inaugurará em breve um espaço com o nome do crítico e cineasta.

Poderia estender esta crónica durante linhas infindas, dando conta de imagens e pormenores daquele espaço mirífico que se me agarraram à lembrança. Não o farei, porque embora o fascínio desta biblioteca venha da sua dimensão e da forma como, qual árvore que extravasa o recipiente em que a procuraram conter, tomou toda a casa e não parou de crescer (inclusivamente dentro da memória e da imaginação de quem a visitou), as bibliotecas não precisam de ser gigantescas para nos comoverem. E comove-me tanto a escassez da minha pequena estante de estudante como a fascinante casa-livro que aqui apresentei. Numa e noutra, nestas duas como em quaisquer outras bibliotecas, pequenas ou grandes, lá estão o primeiro livro que nos apaixonou, o livro que nos foi oferecido por alguém especial, o livro que fez de nós leitores, o livro que nos pôs a escrever, o livro que nos fez entender determinada realidade, o livro que nos demonstrou que não percebemos nada de realidade nenhuma, o livro que nunca lemos mas que haveremos de ler, o livro que tem aquela dedicatória do autor, o livro que tem aquela dedicatória de um amor antigo, etc.

Poucos ou muitos, e mesmo partilhando o que neles está escrito com milhares ou milhões de outras pessoas, aqueles são os nossos livros, os objetos através dos quais chegaram até nós as palavras que, não duvidemos, alguém escreveu para nós. A biblioteca de cada um é um conjunto de lugares simbólicos, insubstituíveis; é um espaço sagrado que nos alicerça e conforta, ao qual queremos sentir que podemos voltar sempre que quisermos ou entendermos necessário; cheia de portas por e para abrir, a biblioteca de cada um é uma casa dentro de outra casa e, voltemos a não duvidar, porque no que toca a valorizar os livros não há que ter senão certezas, o lugar mais valioso na casa de cada um, mesmo que confinada a uma estantezeca com ar caduco.

Em pandemia, leitura na escada ao sol

 Javier Navarrete

'Eu era uma traça gorda...'

Sou uma traça.

Há tempos tive a felicidade de instalar-me numa imensa estante de livros e por isso eu era uma traça gorda, muito bem alimentada. E eu não admitia que viessem me falar em fazer regime porque minha despensa estava muito longe de se esgotar. Além do mais, o dono da estante deveria ser muito ocupado, pois raramente aparecia para perturbar as minhas refeições.

Mas agora tenho uma queixa dolorosa: dizem que um animalzinho minúsculo, muito menor do que eu, voraz, guloso, resolveu habitar nos humanos e até matá-los!



Com medo disso, o dono da estante e dos livros está preso em casa para se esconder desse anãozinho. E vejam que infelicidade! Eu estava justamente jantando um volume dos “Irmãos Karamazov”, uma refeição para quatrocentos talheres, não tinha ainda devorado nem a página de rosto, quando meu jantar foi retirado da estante! Espanado do pó e do bolor, o livrão foi sacudido e eu tive de me esconder debaixo da lombada.

O meu jantar e eu fomos levados para o colo do dono da estante e eu tive de me virar para não ser descoberta a cada página virada.

Bem encolhida, fiquei a pensar no que irá acontecer com a minha espécie... Lembro-me de ficar sabendo, ao devorar um capítulo de “Biologia para Principiantes”, que toda a vida na Terra tinha sido exterminada há milhões de anos pela colisão de um imenso rochedo que viera dos ares. Quer dizer que agora a minha espécie vai ser exterminada não por um gigante, mas por um minúsculo verme? Bem, verme sou eu, esse invasor não passa de um cocozinho de verme!

Com o rabo do olho, vejo um jornal dobrado na mesa ao lado de onde se senta o dono da estante e dos livros. E ali está escrito que o governo do Uruguai, por causa de todo mundo de seu país estar preso em casa para fugir do anãozinho, está distribuindo cestas básicas com comida para as famílias e, junto com latas e pacotes, na tal cesta vão... livros!

Livros para ocupar essa gente toda que não tem o que fazer fechados em casa! Não são livros para alimentar a minha espécie, não! São verdadeiros atentados a minha espécie! Será... será que eu vou ter de emagrecer? Ai, ai, ai, “Os Irmãos Karamazov” eram tão gostosinhos...
Pedro Bandeira

quinta-feira, abril 23

Proteção para qualquer tempo

Yevhenia Haidamaka

Poemas aos homens do nosso tempo

 Hans van der Leeuw
I

Senhoras e senhores, olhai-nos.
Repensamos a tarefa de pensar o mundo.
E quando a noite vem
Vem a contrafacção dos nossos rostos
Rosto perigoso, rosto-pensamento
Sobre os vossos atos.

A muitos os poetas lembrariam
Que o homem não é para ser engolido
Por vossas gargantas mentirosas.
E sempre um ou dois dos vossos engolidos
Deixarão suas heranças, suas memórias

A IDEIA, meus senhores

E essa é mais brilhosa
Do que o brilho fugaz de vossas botas.

Cantando amor, os poetas na noite
Repensam a tarefa de pensar o mundo.
E podeis crer que há muito mais vigor
No lirismo aparente
No amante Fazedor da palavra

Do que na mão que esmaga.

A ideia é ambiciosa e santa.
E o amor dos poetas pelos homens
É mais vasto
Do que a voracidade que vos move.
E mais forte há de ser
Quanto mais parco
Aos vossos olhos possa parecer.

Hilda Hilst