A primeira coisa a fazer
Ontem, um primo em segundo grau que mora numa vila a cair para aldeia da Beira Alta ligou-me para saber de mim. Caminha para os setenta anos, é agricultor, está viúvo há três e sente falta de ter com quem falar. Ao fim de poucos minutos, a conversa atracou nas saudades da visita guiada que, no ano passado, lhe fiz à cidade do Porto e no quanto as notícias da desgraça e do confinamento que vivemos lhe fazem querer repetir a experiência e, quem sabe, reencontrar a mulher loira pela qual se apaixonou.
Naquele sábado de junho de 2019, estacionámos o carro num parque subterrâneo sito na Praça de Lisboa, junto à Torre dos Clérigos, e saímos para a rua. Havia uma fila enormíssima para entrar na Livraria Lello – uns falavam espanhol, outros, francês, outros ainda línguas de olhos em bico e português só se ouvia o do Brasil. O sol queimava o granito das ruas, dos passeios e das fachadas. Havia gente por todo o lado. O meu primo estava confuso.
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Ana Aragão |
Depois de sairmos do carro, cruzámo-nos com um casal nas escadas, ao qual ele deu as boas-tardes, levantando ligeiramente a boina com a mão direita. Quando subimos à rua, passou por nós um rapaz apressado, de calções justinhos, amarelos, e pernas depiladas, que nem se apercebeu de que o meu primo também o cumprimentou. Logo a seguir, cruzámo-nos com um grupo de turistas orientais – presumo que japoneses – equipados com chapéus, máquinas fotográficas a tiracolo e, no caso de uma jovem baixinha e de um senhor orelhudo, também com máscaras sobre a boca. O meu primo cumprimentou toda a gente. Algumas mulheres afastaram-se, um senhor mais velho respondeu-lhe na sua língua, um rapaz que me pareceu ser o guia sorriu, dois homens de meia-idade curvaram-se ligeiramente perante ele, e o Tozé, para quem a cortesia não é coisa de somenos, devolveu o gesto, juntando as mãos em frente ao peito e eu, parvamente olvidando que a TV da aldeia é a mesma da cidade, fiquei a perguntar-me onde teria ele aprendido aquilo. Ao fim de quinze minutos, ainda não tínhamos atravessado o passeio. O meu primo cumprimentava toda a gente que passava, quer as pessoas estivessem a ouvir música com auscultadores, a comer um gelado, a falar ao telemóvel ou a conversar distraidamente com quem as acompanhava. Decidi então explicar-lhe que, ali, ao contrário do que estava habituado a fazer na aldeia, talvez não fizesse sentido cumprimentar toda, toda a gente. Podíamos, eventualmente, dar as boas-tardes ao segurança do parque de estacionamento, cumprimentar quem se cruzasse connosco numa rua mais vazia, parar e erguer o chapéu perante uma mulher muito bonita, fazer conversa de circunstância com a rececionista do hotel, mas mais do que isso era um pouco excessivo e limitador dos planos que tínhamos para cada dia. Mas então cruzamo-nos com as pessoas e não lhes desejamos um bom dia?, perguntou, desconcertado. Que não, expliquei, que não podia ser, porque, com tanta gente a morar, a trabalhar e a visitar o Porto, cruzando-se nas ruas, não se fazia mais nada do que cumprimentos. E as pessoas têm de trabalhar, de ir ao supermercado, buscar os filhos à escola, essas coisas. Não é falta de educação, Tozé, são as limitações impostas pelo veloz quotidiano das cidades. Ele continuou baralhado, por isso decidi caminhar até ao centro da praça a que chamam dos leões, mas que de nome é Praça de Gomes Teixeira, avistei o famoso Café Âncora D’Ouro, a que todos chamamos Piolho – ele ficou ainda mais confuso ao perceber que, por ali, tudo tem dupla identidade – e, esquivando-me de um skate desgovernado, levei-o a beber um copo nesse espaço histórico.
Ao balcão, uma rapariga loira – nórdica, por certo – falava inglês com o empregado. O meu primo pôs nela uns olhos de boi manso e disse: boa tarde. A rapariga sorriu, respondeu olá com sotaque e o velho ficou apaixonado durante o resto dos dias de férias que passou na cidade. Ontem, do outro lado da linha, e como eu o compreendo, disse-me que a primeira coisa a fazer depois de tudo isto passar era voltar ao Porto e cumprimentar toda a gente.Rui Couceiro
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