Fernando Vicente |
– Tá tudo bem?
Ele me pergunta, sentado ao meu lado no sofá, enquanto eu já estou escondida de mim mesma em posição fetal com o laptop fechado entre as minhas coxas e a minha barriga, inspirando em quatro, prendendo em quatro, expirando em quatro. Ele sabe a resposta, e eu também: estou com sintomas.
Levanto com febre, e sinto muita dificuldade de respirar. Abro a janela, deve ser claustrofobia apenas, olha o passarinho, que dia bonito, linda chuva, tusso. Mas, Deus, com 31 anos? Eu ainda queria ter filhos, escrever um livro, e saber mandar tudo o que não merece o meu tempo e minha dedicação para um lindo lugar chamado “foda-se”, eu estava no caminho certo, os olhos ardem, é outro sintoma.
Eu fiz o quê de errado, minha mãe do céu? O saco das bananas. Eu não lavei o saco das bananas, das benditas bananas, é culpa do Arnaud, ele me diz que eu exagero, que era pra eu parar de jogar água quente e álcool pra todo lado que nem confete de carnaval, eu deveria ter tacado fogo no saco das bananas antes de encostar nele, isso sim. Ou pode ter sido aquela criança no pátio que não chegou a encostar em mim, mas acho que encostou sim, pestinha, vou ligar pros pais dele e dizer que ele é um egoísta, e que está matando pessoas inocentes no pátio, eles deveriam segurar essa criança em casa, ele que faça lição de casa, a escola não passou nada pra esse infratorzinho fazer? Mas falar infrator em francês, como eu falo isso? Foi só o tempo de descer o lixo, senhor, eu mereço isso por descer o lixo na droga do pátio?
– Você está quase caindo da janela.
Ele diz atrás de mim, com uma voz doce e paciente, e percebo que estou, de fato, quase me jogando do primeiro andar na tentativa de engolir oxigênio, e o problema é que se eu caio na rua, eu me estraçalho inteira no asfalto sendo, ao mesmo tempo, devorada pelo vírus, e ainda pago uma boa multa porque não vou estar segurando meu atestado obrigatório para sair de casa.
Minhas pernas cedem à doença, isso também é sintoma, e meu estômago embrulha, outro sintoma, e me coloco de quatro para ir rastejando até a caixa de primeiros socorros, pinças e cera de depilação (aliás, preciso organizar isso) no banheiro. Alcanço a caixa com dificuldade, e pego o termômetro dentro dela. O ar quase não entra mais dentro dos meus pulmões, e eu sei que eu deveria ter lavado a minha boca com cândida na terça-feira depois de ir à farmácia, eu não dei atenção àquele vídeo enviado por tia Gertrudes no Whatsapp, a culpa não é da criança nem do meu namorado, a culpa é da Gertrudes, que não sai da merda do Facebook, não podia ter me mandado outro lembrete pra eu desinfectar a boca? Ela vai ficar no mundo, eu não, outra egoísta. Bando de egoistinhas.
Estou deitada no chão do banheiro, suando frio, já tirei a minha blusa, a febre toma conta do meu corpo inteiro, a parte externa do meu pé nunca se contraiu e descontraiu tanto, o pescoço, essa coceira horrorosa na garganta, a minha mão tão dormente, aos 31?
Não tenho coragem de olhar o resultado final, e jogo o termômetro pro Arnaud, que, tendo me seguido amorosamente esse tempo todo, e me olhando deitada no chão do banheiro sem blusa, anuncia, tranquilamente: trinta e seis vírgula dois.
Na mesma hora, o pescoço, a boca, a mão, o pé, a tosse e a febre cedem ao nirvana do alívio, estou em meditação profunda de olhos abertos, vou virar monge, vou raspar a minha cabeça, e pintar todos os pelos do meu corpo de verde, vou sair voando pelo mundo distribuindo beijinhos – de longe – e máscaras estampadas de gatinhos, dançando com árvores e comendo suas laranjinhas, a chuva é tão bela, tudo é tão palpável e possível, tantas coceguinhas gostosas, mas agora, me ajuda aqui, Arnaud, vou levantar, preciso voltar a trabalhar, já que por hoje estou, finalmente, curada.
Drica Muscat
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