Salvador Perez Bassols |
Rebaixou a luz e sentou-se no sofá. Seus dedos brincavam pelas asperezas, pelas falhas, pelo desgaste do tecido a circunferência de uma queimadura de cigarro. Ávido por sensações e informações apalpou os objetos a seu redor como Hélène Keller lendo um livro em braile. Tinha vivido sete anos naquele apartamento. Tinha-o marcado assim como o pé transfere sua forma para o sapato. Será que se pode dizer a mesma coisa do mundo? Com nossa morte, será que a matéria do mundo guardará a nossa marca? Será que os átomos conservarão os contornos de nossos pensamentos? Pelo menos, pensava Virgile, o apartamento permaneceria, seus amigos continuaram vivos, seus livros e seus discos seriam adotados por outras pessoas.
Para o jantar, não se voltou para a despensa. Entrou no site do Bon Marché e pediu um verdadeiro banquete, com três garrafas de Mouton-Rotschild. A cesta lhe chegou em meia hora. A qualidade da refeição neutralizou um pouco as suas considerações sombrias. Ouviu seus vinis prediletos. Artistas do mundo inteiro de todas as épocas se sucediam na sala para um ótimo concerto em sua homenagem.
Com uma taça de vinho na mão caminhou pelo seu apartamento de dois cômodos com desejo de tocar em cada centímetro quadrado, para deixar marcada ali sua impressão digital. Os deltas, os cristais, os arcos as curvas e os turbilhões da polpa de seus dedos se fossilizariam. Nenhuma faxina, nenhuma demolição seria capaz de apagar as provas de sua existência. Sues traços se manteriam impressos na penumbra do infinitamente reduzido, à espera dos arqueólogos que um dia os descobririam. Tinha lido uma reportagem sobre as louças da Antiguidade, que ao serem moldadas em argila, girando, gravavam à sua revelia, como num disco, as palavras pronunciadas durante o trabalho. Seu apartamento guardava milhões de microssulcos contendo seus monólogos e suas conversas.
Martin Page, "Talvez uma história de amor"
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