segunda-feira, abril 13

O domador de borboletas

António de Oliveira Cadornega nasceu em Vila Viçosa em 1623, numa família de cristãos novos, mudando-se para Luanda aos 16 anos, como militar. Ao longo das cinco décadas que se seguiram terminou, pouco a pouco, por se transformar de colono em colonizado. Quando morreu, aos 67 anos, já falava e escrevia num belo português africano, enriquecido por inúmeras palavras e expressões em quimbundo. Além disso, deixara-se contaminar por um pensamento mágico, animista, que em tudo via (vê) o sopro redentor dos ancestrais.

“Tem este gentio para si que alguns deles, com suas unturas que têm de ervas e paus se transformam em leões e em onças, aos quais chamam quifumbulas”, escreveu Cadornega na sua obra mais famosa, História Geral das Guerras Angolanas. Nesse mesmo livro, algumas páginas adiante, conta um episódio que terá testemunhado, envolvendo um destes quifumbulas.

Ainda mais curiosos são os casos que expõe na sua Relação dos Prodígios que Vi em Angola (1687), manuscrito inédito, que encontrei por mero acaso esquecido dentro de uma pilha de jornais angolanos do século XIX. Comprei os jornais por um preço razoável a um velho alfarrabista do Recife. Trouxe-os para casa e esqueci-me deles. Anos mais tarde, ao estudá-los, encontrei o manuscrito com a assinatura de António de Oliveira Cadornega, Vereador da Câmara de Loanda. Nunca duvidei da autenticidade do documento, porque o estilo é o mesmo. A verdadeira assinatura de um escritor é o seu estilo.

António de Oliveira Cadornega conheceu a rainha Nzinga Mbandi, ou Ginga, correspondeu-se com ela, e dedicou-lhe as páginas mais interessantes da sua História Geral das Guerras Angolanas. No manuscrito, volta a falar de Ginga e dos quifumbulas. Segundo ele, um dos maridos de Ginga, chefe dos jagas —guerreiros nómadas, que alugavam as suas armas a quem melhor lhes pagasse —, contava entre as suas hostes com uma unidade secreta, composta por doze quifumbulas.

Estes quifumbulas atacavam durante a noite, não na comum realidade que todos partilhamos, mas infiltrando-se nos sonhos das tropas adversárias. Os soldados inimigos sonhavam que um leão os perseguia, e acordavam aos gritos, rasgando o peito com as próprias unhas. Poucos recuperavam.


António de Oliveira Cadornega também conta que na corte da rainha havia um alto dignitário, o Nganga diá Kimbiambia, que tinha por única função criar e adestrar enormes borboletas (entomologistas acreditam tratar-se de exemplares da espécie Papilio antimachus), que esvoaçavam nobremente em redor da soberana enquanto ela conferenciava com os macotas (conselheiros), ou recebia emissários provenientes dos quimbos mais remotos do reino. Quando se sentia fatigada, a rainha estalava os dedos, e então as borboletas cobriam-na por inteiro, como uma cortina viva da mais pura seda, e ela, desaparecendo da vista dos presentes, reaparecia onde bem entendesse, a várias milhas de distância, ou, então, no mesmo lugar, mas alguns dias antes, ou alguns dias depois.

Cadornega, que falava quimbundo com a elegância de um legítimo filho da terra, viria a tornar-se amigo de um destes domadores de borboletas, um homem muito velho, chamado Mbaxi. É provável que o velho Mbaxi tenha iniciado o ex-português, nos mistérios da criação e adestramento das borboletas

Cadornega deixa entender isso mesmo quando, na sua Relação dos Prodígios que Vi em Angola, conta das viagens que tem feito pelo interior de Angola, estando certa manhã em Luanda e na seguinte na Muxima, povoação a vários dias de jornada ao lombo de um boi-cavalo. Mais significativo é o que nos diz nas últimas linhas do seu manuscrito, antecipando-se em 268 anos a Albert Einstein: “Não é o tempo senão um embuste engenhoso que o Senhor Deus criou para nos iludir, pois não pode a mente humana conceber a verdade pavorosa de não haver passado que passe nem futuro que não exista neste preciso instante.”

António de Oliveira Cadornega morreu em 1690. Ou melhor, deixou de ser visto. Um dia a esposa acordou e não o encontrou em casa. Em toda a cidade, que era então muito pequena, ninguém sabia dele.

Há poucos meses, na estrada que vai do Bailundo para o Bié, assisti a um redemoínho de borboletas. Eram borboletas amarelas, com pelo menos 25 centímetros de envergadura, e revolteavam no meio da estrada, brilhando ao sol rasante da tarde. Parei o carro. Vi (ou julguei ver) um vulto esquivo que dançava, meio escondido entre o fervente fulgor amarelo. Naquele instante, tive a certeza de que era o meu escritor favorito do século XVII. Ainda hoje tenho.

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