No começo foi um caos. “A creche fechada”, lembra Zé María, “as aulas extraescolares também; os avós, proibidos, passaram de grupo de salvação para grupo de risco, Madalena e eu, no teletrabalho”. Mas tudo pode piorar“. De fato, Madalena teve uma amigdalite e fez quarentena.” Pior impossível, não? “Bom, não; alguns dias antes eu tinha ficado sem carteira de habilitação.”
No primeiro dia que Alice faltou à casa dos avós foi preciso explicar a ela sobre a covid-19. “Não sou muito criativo, me recusei a dizer que na rua tinha um monstro, como alguns pais fazem. Disse que tínhamos de ficar em casa”, lembra Zé Maria. “Disse que havia uns bichinhos por aí”, pondera Madalena. Alice passou alguns dias triste e chorosa, e pronto. “As crianças se acostumam rapidamente às novas situações”, diz o pai. Os adultos, nem tanto. “De dias sem vê-la passei a semanas de 24 horas juntos em um apartamento com uma janela.”
Estátua de Fernando Pessoa na rua Garrett, vazia, em Lisboa |
É o abril mais estranho desde a Revolução dos Cravos de 1974. No sábado, 25 de abril, pela primeira vez os manifestantes não descerão a avenida da Liberdade, agora sem carros, sem pessoas, sem fumaça ou barulho. Triste. Vazio de passageiros, nem o bonde 28 range ao atravessar o bairro da Alfama. O rio Tejo entra e sai de Lisboa sem nada a impedi-lo. Não há cargueiros que o rasguem, não há cruzeiros bem-vindos nem gente que lhe siga a corrente.
No Chiado, os vizinhos de Luis de Camões e Fernando Pessoa mantêm 30 metros de distanciamento social. Estão assombrados. Os pombos pararam de defecar aos pés do zarolho autor de Os Lusíadas; há semanas ninguém lhes joga migalhas de pão. Os turistas já não tocam o míope autor do Livro do Desassossego. A rua Garrett, sempre intransitável, está vazia, com as lojas fechadas, mas com fechamentos que se adivinham que não são de descanso semanal; o fechamento da igreja dos italianos o corrobora e o mítico café Brasileira o ratifica, assim como outras lanchonetes onde Pessoa fazia suas paradas, Nicola, Martinho de Arcada... Hoje seria impossível surpreender o poeta em “flagrante delito”.
Depois um mês de reclusão, Alice bate ovos, espreme limões, espalha mussarela, molho de tomate e cogumelos sobre a pizza. “Fazer o jantar acabou sendo nossa melhor experiência do dia, melhor do que a pintura ou a televisão”, reconhece Madalena, que trabalha a distância no setor do entretenimento. Zé María, dedicado ao software futebolístico, ficará sem ganhos variáveis, mas por enquanto com salário. Cerca de um milhão de trabalhadores, quase um terço da força de trabalho do país, teve suspensão temporária do emprego.
Na porta da casa, a avó Elena toca a campainha e deixa as compras do supermercado para o filho e a neta. Desta vez não incluiu os caprichos das festividades, pasteis de Belém, croquetes da Versalhes, arroz de pato do O Chef, ovos moles da Alcôa, rosbife do Gambrinus... De um mês para cá, reina a massa e o álcool gel.
Atrás da janela, Alice agita as mãozinhas e parece gritar oi e tchau à avó, que, sem ouvi-la, responde da mesma maneira, oi e tchau, da janela do carro. Fazendo beicinho, as duas se afastam até a próxima semana de emergência.
Lisboa está sofrendo. Não cheira à canela de suas confeitarias, não tem o gosto de coentro de suas tavernas, não há quem a abrace, mas tem um eco do mais puro Camané [conhecido fadista]: “Há um silêncio pesado, que não sei de onde vem, nem sei se lhe chamam fado, ou que outro nome é que tem”.
Javier Martín del Barrio
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