quinta-feira, abril 16

O que ando a ler nesta quarentena

Durante muito anos manteve o hábito de escrever na primeira página dos livros a data em que terminou a respetiva leitura. Com a idade, no entanto, a memória desses momentos de prazer transformou-se em susto. “Cada vez que volto a um livro sou sobressaltado com um pensamento: como o tempo passa!”, diz, animado, à VISÃO José da Cruz Santos, 83 anos, um dos decanos da edição em Portugal, atualmente à frente da sua editora e livraria Modo de Ler, depois de passagens pela Inova ou pela Asa.

Foi um desses sustou que apanhou agora ao tirar da estante A Cartuxa de Parma, um dos mais icónicos romances de Stendhal. Abriu e leu: 1975. “Como o tempo passa”, repete, com nova gargalhada. Certo é que já passou a idade da ânsia da novidade. Insiste, com gosto, na releitura e na vontade de regressar aos grandes clássicos da literatura mundial. Neste momento, quer esclarecer uma dúvida: qual será melhor, O Vermelho e o Negro, outra obra maior de Stendhal, ou A Cartuxa de Parma? Sempre se inclinou, como Vasco Graça Moura, de quem foi amigo, editor e parceiro de infinitas conversas, mais para o primeiro. A releitura confirmará ou não a preferência.
Com a leitura nenhuma quarentena terá a marca da solidão



O que nunca mudou foi a entrega à leitura. “É a única paixão a que tenho sido fiel toda a vida”, garante. Talvez agora, fechado que está em casa, sinta que ler tem um sabor diferente, mais próximo da obrigação. “Neste momento, não tenho alternativa, antes era tempo que roubava ao trabalho ou ao descanso, um prazer conquistado”, afirma. “Mas é certamente só uma impressão causada pela quarentena.”

Pior é a angústia de ver sem atividade a sua livraria no centro do Porto, que integrou a recém-criada Rede de Livrarias Independentes, e editora. “Não sei, nem quero trabalhar com computadores, fica para a próxima encarnação. Tudo o que faço implica lidar com pessoas, o que agora é impossível”, explica. Adiou, por isso, a publicação da Obra Poética de Joaquim Namorado (1914-1986), para quem a poesia era “uma máquina/ de produzir entusiasmo/ e é preciso que os versos sejam verdadeiros/ na vida dos poetas/ como a tua mão erguida/ sobre os anos futuros.”

Na estante já guardou a releitura anterior, terminada esta semana: Diário do Doutor Fausto, de Thomas Mann, volume que reúne os apontamentos, ideias e pensamentos que o escritor alemão foi tendo ao longo da escrita do romance Doutor Fausto. “Com a leitura nunca estou sozinho”, garante José da Cruz Santos. “Com a leitura nenhuma quarentena terá a marca da solidão”.

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