E ao 44º dia, sexto domingo de quarentena, não me apeteceu escrever. Normalmente, um cursor a piscar numa folha em branco costuma ser um desafio encarado com agrado. Gosto da sensação de desafio de ter uns milhares de carateres para debitar num ecrã. É engraçado como, por mais anos disto que se leve, quando nos sentamos para escrever, nunca sabemos bem quem vai sair vencido ou vencedor: se nós ou a folha (que ficaria melhor) em branco.
Mas ontem, confesso, padeci da humana preguiça. Atire a primeira pedra quem nunca. Sucumbi a ela e dediquei a tarde a varandear, embalada por uma playlist de jazz a tocar na coluna e o cão sempre deitado ao meu lado no chão. Ofereci-me umas horas sem nada para fazer. Como assim nada?, cheguei a perguntar, meio pasmada com a própria ideia, de mim para os meus botões. Nada, Mafalda, nada é nada, respondi-me. Nem livro, nem revistas, nem jornais para ler, nem notas no telemóvel para tirar. Nada, nadinha, será possível? É lamentável como hoje parece tão difícil desligarmos o cérebro e não fazermos nada. Não sei como deixámos que isto nos acontecesse.
Estendi-me numa cama de paletes improvisada e fechei os olhos. Tentei resistir ao apelo de estar, o tempo todo, a fazer listas ou a tentar resolver problemas na minha cabeça. Deixei-me estar. Quase que consegui ouvir Fernando Pessoa a dizer-me ao ouvido: “Ai que prazer/ Não cumprir um dever/ Ter um livro para ler/ E não o fazer!”. Que coisa rara e nunca vista… Tenho uma varanda desde que me mudei para esta casa, há 12 anos. E foram, na verdade, tão poucas as vezes que realmente desfrutei dela com tranquilidade. Cuido das plantas com dedicação, rego-as e limpo-lhes as folhas secas, apanho a alpista que os pássaros que nos visitam espalham no chão, mas nunca me detive realmente por ali. Até agora, a varada era só mais um afazer na minha vida. Até a cama de rede que comprei foi, durante anos, vetada ao abandono e a desbotar ao sol.
Mas por estes dias, tudo mudou. A varanda tornou-se o segundo centro da casa, a seguir à cozinha. O lugar onde ouvimos os pássaros, olhamos o céu, fotografamos a chuva e os bichos, adivinhamos as formas das nuvens, vislumbramos ao longe um pedacinho de mar e fazemos apostas às ondas. Almoçamos e lanchamos na varanda, cantamos na varanda, pintamos e fazemos cerâmica na varanda, fazemos ginástica e ioga na varanda. A cama de rede já precisava de um sistema de senhas.
Desconfio que é algo que sucedeu a muitos portugueses. Nas nossas varandas, cabe agora o mundo todo. Acho comovente como redescobrimos este espaço, que muitos tinham a sorte de ter mas que para pouco mais servia do que estender a roupa, e lhe passámos a dar toda uma nova vida. Bastam, na verdade, pouco mais do que dois metros quadrados para dar um concerto, projetar cinema para os vizinhos ou recitar poesia, como as histórias que fui ouvindo por estes dias. Quem diria que podemos ser tão felizes nas nossas varandas…
Elas podem mesmo ser centros de convívio social. Na semana passada, a passear o cão, passei por um bairro de prédios altos aqui ao lado. Às 21h da noite, toda a vizinhança estava na varanda, para um novo ritual repetido diariamente. Fiquei a ver – eram dezenas de famílias, a falar umas com as outras. Uns lançavam palavras de ordem, outros acendiam luzes multicolores, outros punham música. No fim da catarse coletiva, a despedida: boa noite vizinhos, força, até amanhã! Encontramo-nos na varanda, à mesma hora. Será que depois de tudo isto passar vão esquecer-se das varandas e deixar de se falar nos elevadores?
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