terça-feira, junho 30

Postagem


Muda de vida ou muda de poema

Um poema não é uma coisa que se coloca sobre o teu dia como um condimento sobre o teu almoço. A vida de uma pessoa não tem material semelhante a nada que conheças. Existir é feito de peças impossíveis de copiar. E a poesia não entra nesse material único - a vida de uma pessoa - como o avião no ar ou o acidente do avião na terra dura. Um poema não é manso nem meigo, não é mau nem ilegal.

Os homens não se medem pelos poemas que leram, mas talvez fosse melhor. O que é a fita métrica comparada com algo intenso? Há poemas que explicam trinta graus de uma vida e poemas que são um ofício de demolição completa: o edifício é trocado por outro, como se um edifício fosse uma camisa. Muda de vida ou, claro, muda de poema.

Gonçalo M. Tavares

Hora do café


Asterisco

 Huang Guanyu
Tão esquecido anda o amor que logo será necessário, quando ele aparecer num texto, explicar numa nota de pé de página do que se trata
Raul Drewnick

Livro para ler e outro para descansar

Kestutis Kasparavicius

O futuro pelas costas

Ia eu outro dia pela rua carregando livros, jornais e revistas quando tudo me escapou das mãos e se espalhou na calçada. Coisa rara: surgiu não sei de onde um rapaz que me ajudou a apanhar a papelada. Parecia um anjo. Nesta época do ano, os anjos estão ocupados, mas de vez em quando um ou outro faz um biscate para quem não tem nenhum merecimento. Vi que não era anjo quando agradeci e ele me perguntou qual era o meu signo.

Imagina só, um anjo preocupado com signo. Noutros tempos, eu teria estranhado a pergunta. Hoje, nem tanto. Disse que sou de Touro. Corre por aí a crença de que nos mínimos atos somos governados pelos astros. Ou astres, que é a forma arcaica de astros. E quer dizer também fado, destino. O rapaz entendia que o papelório espalhado na calçada denunciava às escâncaras o meu horóscopo. Achou que somos do mesmo signo, igualmente trapalhões.

Não somos. Ele é Virgem, me disse. Já eu não sou trapalhão, nem chegado à astrologia. Mas não disse nada, para não o decepcionar. Afinal, não é todo dia que você encontra um rapaz gentil no Rio. Quando se afastou, por via das dúvidas conferi o dinheiro no bolso. Estava O.K. Fiquei com vergonha de tamanha desconfiança. Mas hoje é assim. Confiar, só nos astros. Para quem acredita. O que você faz de bom ou de mau, tudo é decidido lá em cima, no zodíaco. Hora, minuto e segundo, nada lhe escapa, porque os astros são minuciosos.

Astrologia ou astrosofia. Também astromancia. Os iniciados entram pelos arcanos das influências planetárias. Alegrias e desastres, está tudo escrito. Desastre, aliás, quer dizer fora da rota dos astros. Má estrela, infortúnio. A moda astrológica dura há anos e se espalha como chuchu. Fantástica reserva de fé tem o ser humano. Quer acreditar e acredita. Ser agnóstico não é para qualquer um. Só com muita soberba intelectual.

Não sei se você sabe que o Brasil também tem o seu mapa astrológico. Pois tem. Está no livro do advogado Danton de Souza – Predições astrológicas. 
São cinquenta anos de pesquisa e estudo na linha de André Barbauit, Volguine e Jean Hieroz. Danton desvenda o futuro do Brasil até o ano de 2182. Que tal? O livro foi publicado em 1983. Estava prevista uma data fatídica: 3 de julho de 1991. Iria acontecer aqui um troço tão terrível que o astrólogo preferiu calar. Agora que passou, que é que foi mesmo?

segunda-feira, junho 29

Abra a porta!

Piero Schirinzi
Colocando o nariz na leitura?Passe, entre, não precisa bater na porta.O livro está sempre esperando por você

Embriagai-vos

É preciso estar sempre bêbado. Tudo reside nisso: eis a questão. Para não sentirdes o horrível fardo do Tempo que esmaga os vosso ombros e vos inclina para a terra, precisais embriagar-vos sem tréguas.

Mas de quê? De vinho, de poesia ou de virtude, à vossa vontade. Mas embriagai-vos.

E se às vezes, nos degraus de um palácio, na erva verde de uma vala, na morna solidão do vosso quarto, acordardes, a bebedeira leve ou curada, perguntai ao vento, à vaga, à estrela, ao pássaro, ao relógio, a tudo o que foge, a tudo o que geme, a tudo o que gira, a tudo o que canta, a tudo o que fala, perguntai que horas são; e o vento, a vaga, a estrela, o pássaro, o relógio responderão: “São horas de embriagar-se! Para não serdes os escravos martirizados do Tempo, embriagai-vos; embriagai-vos sem parar! De vinho, de poesia ou de virtude,à vossa vontade.

Charles Baudelaire

Cartão-postal da saudade


Trivial variado

Leng Jun
População reduzida, escolas e escritórios com semana de três dias e restaurantes só abrindo à noite: o trânsito já não é aquele pesadelo. O gato da vizinha adotou nossa casa, depois que ela… A nova moradora tem mão boa e está deixando o jardim do condomínio uma beleza! Mantivemos as compras coletivas, assim nos revezamos e conseguimos bom preço. Incluímos na lista cestas básicas para distribuir. Surgem empregos aqui e ali, mas fome não espera. O zelador é eficiente. Seus filhos e os nossos brincam juntos na área aterrada da piscina. Cansamos de desperdiçar tanta água. Cedemos as quadras de esporte para as creches próximas. Há órfãos demais sem atividade de lazer que lhes restitua a autoestima… Tão bom lhe contar estas coisas, amor. Pena não estar vivo para ver.
Madô Martins

domingo, junho 28

Cada leitor é uma ilha


Boa causa

Vou dizer uma coisa péssima: uma biblioteca é uma floresta derrubada. Mas é por uma boa causa
Luísa Ducla Soares, escritora portuguesa de literatura infanto-juvenil

Para levantar a escuridão


A queda

Elzette Welgemoed
Num certo sentido, isto: assumir que a energia da gravidade é coisa para alimentar os cães, se necessário – dá comida ao mundo, essa energia gravítica, como se os abutres fôssemos todos nós e, quando um homem caísse, rapidamente acudíssemos a essa queda e devorássemos a energia que fica em redor de um corpo caído, destroçado, feito em fanicos; a questão não é tanto a carne do morto, isso não interessa aos abutres, o que importa é outra coisa, são os restos que estão à volta, esses restos que nós e os cães vamos comer ou beber como se a energia fosse uma coisa material e não uma invenção da cabeça; e sim, eis o belo mundo em que poderemos crescer mais fortes, o mundo em que a cidade se alimenta da queda, das várias quedas, das quedas de um objecto, de um vaso de uma senhora distraída que com o cotovelo o faz cair; dessa queda, sim, vem energia – mas a cidade alimenta-se acima de tudo, da queda de corpos humanos: suicídios nas pontes, por exemplo, dão uma energia intensa, energia que activa o comércio do centro, que faz mexer as pessoas como se as pessoas tivessem uma pequena roldana que as accionasse: a pressa que vemos subitamente nos rostos teve origem, pois, bem lá atrás, na forma brutal e invulgar como o corpo do suicida bateu na água. Queda, portanto, como a energia que substitui o petróleo e todas as outras fontes naturais: a cidade mantém-se em movimento, as casas mantêm a luz, a electricidade não vai abaixo porque de quando em quando há um corpo que cai; um belo corpo humano em queda desde o 60º andar, ou desde o quinto andar – quanto mais alto, claro, quanto maior o percurso da queda, mais energia gravítica é libertada; e a queda só liberta energia quando é uma queda mortal, portanto os outros homens não salvam, quando muito acodem à queda, aproximam-se e fingem uma última tentativa de salvamento quando afinal estão a parasitar a energia da gravidade de que o corpo desfeito já não precisa – porque certamente há muitas ciências e uma delas poderia pensar na diferença da queda de u corpo já morto e de um corpo vivo. É como se no corpo morto não fosse já a terra que puxa, mas o corpo que se deixa cair. Tem uma passividade dupla, o corpo morto, e ninguém faz força contra quem não reage – a terra é assim, não é diferente de um homem médio corajoso: se não lutas eu também não; o corpo morto cai e a sua queda, mesmo que do alto de sessenta andares, liberta energia, sim, e muita e importante, mas acredita-se que a queda de um corpo vivo é sempre mais forte, mais poderosa, mais generosa – oferece mais à cidade. A isso se chama sacrifício se vivêssemos noutros tempos, mas assim está bem. E os homens que recolhem o lixo são agora acompanhados por outros que recolhem as quedas. Uns recolhem os mortos e o lixo, enquanto ao lado deste grupo, outros homens recolhem a queda – e não os corpos -, como se esta fosse elementos com átomos, um elemento com substância. Mas a queda é isto mesmo: os homens recolhem uma sensação, tentam absorvê-la como um fato absorve água e a faz desaparecer e a certa altura não existe fato e água, mas apenas fato húmido; eis o que procuram os que levam a energia que se libertou na queda de um corpo sólido para a sua velha madre que está a morrer, ou para os seus filhotes, para que cresçam grandes e fortes, e a vida é isto: um certo prazer que vem da queda dos outros. Roubei a energia gravítica de uma queda e aqui estou eu a trazer o esforço do meu dia para a mesa da família. Vamos comemorar e temos energia suficiente e, sim, eis como aconteceu um certo dia, as quedas tornaram-se indispensáveis: um empurra o outro para que a cidade não pare.
Gonçalo M. Tavares

sábado, junho 27

Pausa no ateliê


Lugar dos livros

Kestutis Kasparavicius
Quando se trata de livros, o lugar é a Europa. Estou ciente disso há muito tempo, e embora me entristeça ver a América se tornar um lugar sem livros, ainda há muitas coisas de que gosto e continua sendo a minha casa. Francamente, gostaria que fosse uma casa mais literária, mas ...
Carlos Ruiz Záfon

Café com leitura


Pevide

 Walter Langley
Estava sentada à soleira das vossas portas com o coração prevenido mas manso. Vendia sentada à borda dos vossos bancos. O dentro dos dedos estava cheio de sal fino, uma sequeira. Lambia-os de relance, eu não queria ofender, sentada à porta dos vossos bancos. Sabiam ao torrado das sementes, a forno. Enrolava os pequenos dinheiros por tamanhos, como era de vosso uso. Estava sentada às vossas sombras sem nada de necessário para trocar. E via:

O desnome das caras passeantes, o desavindo andar, as portas de redondo vidro, cromos, as pernas a galgar ao alto do meu ver, riquezas, bons cheiros, girações, o apertado coração de pressas e os que vagueavam até mim, de graça: o sal atrai e aquele estar tão queda, o funil de jornal, minhas sementes.

Tinha eu então o coração como um trapo: nada me chegava. Porque nada me chegava talvez porque eu quisesse o pouco. O bom de algum bem quieto e poder estar ao sol. Via as ervas crescerem e revirem, nas montras, ao lado da bulha das buzinas. Que manso pasmo, as lindas folhas onde, à beira, nada parava. Fazia frio e seco, molhado outras, os anos, tudo a passar. Os que diziam “Vem” tinham outro ofício a dar-me – mulherar aos dias. Eu não tinha ofício a receber. Diziam “Pois quê?” e só eu podia como não, isso não. Acho que passaram os tempos todos e eu não me fazia mesmo velha. Não me fazia nada, de nada feita. A pouco e pouco, ainda perguntava, fui não estando à espera. Porque estando à espera, não fazia nada que não fosse da espera e ela gasta-se. Há um podre na coisa quieta sem usos que vem do dentro para o fora. Ia saindo isso e formando uma pequena nuvem de enxofre no meu regaço, salobrava. Não me parecia bem. Foi tudo passando mais de largo. Como eu era frouxa assim empodrecendo do que não ficava, não chegava, sentada à soleira das vossas pedra-mármore, balcoarias, janelos de papel-moeda, deposita. De só querer o pouco, o demenos. O só bom. O não buscar.

Foi então que vieram levar-me porque eu não tinha roupas de direito, nomes, licença de cobrar, fazer levantamentos, vendilhona era daquele tempo.

Mas posso fazer renda, digam. Voltar e fazer renda à soleira das vossas trocas? Malha de malha de malha até que nem já veja e então volte devida a este fora parte onde me têm? Eu só queria estar perto do vosso buliçar de ofícios, vender o verem da minha mansidão. Que medo faz paciência pobre, semente gôra seca, outra sede. Medo de malmorrer, não ter aonde. Mas aqui.
Maria Velho da Costa (1938-2020), "Desescritas"

quinta-feira, junho 25

Malas para boas viagens


Amor, aflição e morte

Assim é o homem que espera a mulher. Vê o relógio, fuma e telefona. Sabe que ela vem; tem vindo. Pode estar tranquilo; mais cinco minutos e chegará. E, como é natural, ela chega. Mas no bojo desse fato simples, esperado, certo, há um elemento de surpresa, um recôndito milagre. O instante em que ela chega pode ser rigorosamente previsto. Sabemos que está no trem; mas quando o trem para e ela surge, isso não é um fenômeno que vem atrás do outro numa cadeia de coisas. Essa presença é sempre um fato inédito; o céu interveio. Ou não digamos o céu; vamos dizer que a força secreta da vida saltou de súbito, produziu um instante livre, novo, solto em si mesmo. Não foi o ônibus, nem o trem, nem o táxi que a trouxe. Se ela veio andando, não veio andando pela rua. É evidente que podemos reconstituir materialmente sua viagem; mas no instante em que chega há o leve choque de algo que aparece, como a leve carga de chuva grossa e rápida que uma pequena nuvem lança, ou como um raio de sol que intervém, louro, fino, vibrante, entre duas mangueiras. "Baixou" como dizem os espíritas.


É uma realidade superior, um mundo de fantasias que se encarna de súbito aos nossos olhos. A natureza da mulher é assim feita não só da estrita carne e da voz, os olhos líquidos e os cabelos, a tênue veia atrás dos joelhos, os vestidos, a boca e, santo Deus, os braços; há a substância improvisada de algas, nuvens e brisas; e mais. Um leve murmúrio de estrelas. Está visto que falar assim é dizer bobagens. Mas por que lembramos a onda trêmula, ou um apito longo de trem que ouvimos uma tarde numa capoeira, depois de um silêncio deixado por um bando de periquitos? As sensações da vida sobem dentro de nós; há um aperto de garganta. Lembramos inhames à beira do córrego, e o calor do pescoço do cavalo sob a crina; em alguma parte há marolas gulosas de água verde lambendo o batelão.

E flor! É incrível como a mulher se parece com a flor. Fixemos: uma flor. Sabemos o que é, como nasceu, e que morrerá. Mas nossa botânica não explica a frescura desse milagre; nem muito menos por que nos emociona. Podemos passar diante de uma casa de flores, e ver, e achar belas as flores. Mas a flor que de repente nasce no muro familiar, que adianta estudá-la? É uma aparição; algo que traz do fundo da terra uma inesperada palavra de candor. Parece dizer: eis-me aqui. E não é apenas a brisa que a estremece: é a vida.

Vejam, concidadãos. Eu escrevia as coisas acima em minha casa, há cinco minutos. Tinha o pensamento longe. Na verdade confesso que, ao pôr o papel na máquina, o primeiro que bati foi o título do que ia escrever. E era: "Recordação da aldeia de Pávana". Ia falar de uma aldeia onde tive a revelação da primavera, na Itália; falaria das casas e do céu; mas no meio da escrita me esqueci, embora por baixo das palavras sobre a mulher e a flor eu sentisse confusamente respirar a aldeia. Escrevo em minha casa. Pois ouvi uma voz e cheguei à janela. Era uma jovem que passava para me dizer bom dia; vai à praia. Entrou, sentou-se; tivemos uma rápida conversa banal. É moça, bela, simples; é mais conhecida que amiga. Temos uma espécie de amizade distraída, fraca, suave. Quando se foi, cheguei à janela, e acompanhei-a com os olhos até a esquina. Ela não sabia que estava sendo vista. Andava com seu passo natural, e não se voltou. Ia pensando suas coisas. Comoveu-me. Não sei por que seus saltos altos me comoveram, enquanto andava, e assim também o leve movimento de seus cabelos. Seria despropositado dizer-lhe a mínima palavra de ternura, hoje, amanhã ou nunca. Não podemos recolher o brilho do lombo elástico de uma onda e fazer um discurso ao mar, acaso podemos? Quando subimos aquela capoeira estorricada, entre carvões de troncos, ao sol ardente... Antes de pegar o caminho do outro lado do morro, paramos um instante sob uma árvore qualquer; e então uma brisa vinda dos morros passou em nossa cara suada. Temos um vago sentimento de benção; a sombra, a leve mão da brisa. Mas seria absurdo dizer: muito obrigado. Na verdade, falamos muito pouco, embora, nos botequins, levemos horas a tagarelar. No fundo, somos calados; para a ternura e para a ofensa. Como poderia dizer, a essa moça, que nos comoveu seu corpo de breves ancas andando sobre os saltos altos; ou que o leve movimento de seus cabelos castanhos nos fez bem?

Se estamos apaixonados, então temos o direito de dizer: escute, minha senhora, quando levantou os dois braços para arrumar os cabelos, duas bandeiras amigas acenaram por um céu distante, os coleiros do brejo ergueram voo; a árvore meneou suas franças, e as nuvens se tornaram violetas. Lembramos confusamente cachoeiras se deixando cair com um ar fidalgo. A parte de dentro de seus braços é mais clara que a de fora, e isso, tão fácil de prever, nos comove como um segredo amigo; a senhora erguendo os braços com as mãos atrás da cabeça fica mais alta.

Isso, concidadãos, podemos dizer, se estamos apaixonados; mas mesmo isso escassamente dizemos. E ora não estamos apaixonados. Nossa comoção por essa moça é gratuita. O que sentimos por ela é uma espécie de gratidão. Não tínhamos pensado nisso; mas agora damos conta de que sua presença é um favor da vida: e quando a encontramos numa esquina achamos que é uma gentileza da municipalidade para com nossa mesquinha, às vezes surdamente aflita pobre pessoa.

Tenho vontade de vos conclamar para uma grande manifestação pública, mas cada um onde estiver, no ônibus galopante, diante da mesa ou em casa ou na rua; deitado em sua cama, no chuveiro ou no trabalho. Uma grande manifestação de boa vontade e boa fé. Vamos fazer isso em silêncio, e depois não comentaremos. Vamos agradecer a brisa na cara suada; a mulher com luz nos olhos; o menino, a onda, o pássaro, o chão.

O bom chão; dormir no chão. Morrer, descansar no bom úmido chão, não mais imprudentes, não mais aflitos, não mais aflitos!

Leitura no parque

Na terceira manhã em que, sentando-se no parque para ler um livro de poesia, viu reunir-se subitamente sobre sua cabeça uma centena de passarinhos que pareciam ansiosos para dizer-lhe alguma coisa, ele descobriu que não era um mágico, nem um santo, como chegara a imaginar. Era o livro de Mario Quintana que os passarinhos queriam. 

Pausa do café

 Calita

O primeiro dia

O que o acordou foi o silêncio. Primeiro, o do despertador que não tocou à hora combinada todas as manhãs. Depois, o de outra respiração, que devia ouvir e não ouvia. Estendeu a mão para o quente do outro lado da cama e encontrou o frio. Apalpou e encontrou vazio. Então, sim, despertou completamente.

Um prenúncio de tragédia desceu por ele abaixo, como um arrepio. O que acabara de se lembrar era que não acordara só por acaso ou por acidente: aquele era o primeiro dia, a primeira manhã da sua separação — o primeiro de quantos dias? — em que acordaria sempre sozinho, com metade da cama fria, metade do ar por respirar.

Era Abril, sábado e chovia. Sentado na cama, lembrou-se das instruções que dera a si mesmo para aquela manhã: fazer peito forte à desgraça. Nada é inteiramente bom, mas nada é inteiramente mau - pensou. Posso ler à noite até me apetecer sem me mandarem apagar a luz, posso dormir atravessado na cama, posso-me livrar daquele rol de cobertores com o qual ela me esmagava, fizesse sol, chuva ou frio, porque as mulheres são mais friorentas que eu sei lá, posso usar a casa-de-banho todo o tempo que quiser, posso espalhar as roupas, os jornais e os papéis pelo quarto à vontade e até - oh, suprema liberdade — posso fumar à noite na cama.

Levantou-se para se olhar ao espelho da casa-de-banho. Sorriu à sua própria imagem, ensaiou-a calma, tranquila, confiante. Imaginou mentalmente o texto que poderia redigir sobre si mesmo para a secção de anúncios pessoais do jornal: “Divorciado, 40 anos, bom aspecto, licenciado, rendimento médio-alto, casa própria e espaçosa, desportos, ar livre, terno e com sentido de humor”. Mulheres compatíveis? Deus do céu, dezenas delas! Sou um partidão — concluiu para o espelho.

Calmo, tranquilo e confiante, passou aos outros aposentos da casa para dar uma vista de olhos ao resultado da partilha dos móveis, aliás feita sem grandes problemas, como é próprio de gente civilizada. Por alto, entre oliving, o hall, o escritório, a cozinha, o quarto de casal e as duas casas-de-banho, estimou nuns setecentos contos o preço da reposição das coisas em falta. Mais metade dos livros e dos CD's, quase todas as fotografias dos últimos dez anos das suas vidas e algumas outras coisas cujo verdadeiro valor era o vazio que encontrava se olhasse para o lugar onde elas costumavam estar.

“Até agora vou-me aguentando”, considerou ele. Entre perdas e danos e a certeza adquirida de que nada dura para sempre, restavam-lhe várias razões e objectos e sentimentos para olhar em frente sem um sobressalto.

Enquanto fazia, com um prazer insuspeitado, o seu primeiro pequeno-almoço de homem só, passou à fase seguinte do que chamara o “plano de sobrevivência”: desfolhar a agenda de telefones em busca de amigos igualmente sós com quem fazer “programas de homens” ou de antigas namoradas, que se tinham separado ultimamente ou outras que achava acessíveis mas que nunca tivera a coragem e a oportunidade de aproximar. A primeira desilusão foi com os amigos: de A a Z, realizou que só tinha dois amigos sem mulher e, para agravar as coisas, com nenhum deles lhe apetecia sair e entrar numa de “anda daí e mostra-me lá como é o mundo lá fora”. Quanto às mulheres que julgava sortables, sempre eram cinco, mas o resultado foi quase patético. Duas já não moravam naqueles telefones, outra tinha-se casado entretanto, e o marido estava ao lado a ouvir a conversa, o que o deixou completamente idiota a inventar pretextos absurdos para o telefonema. Do número da quarta atendeu uma criancinha e ele desligou e foi só na última da lista que finalmente teve sorte: sim, a Joana morava ali, era ela própria ao telefone. Não, não estava casada nem, pelo que, esforçadamente, percebeu, tinha namorado. Sim, ok, por que não irem jantar logo, para falar do projecto que ele tinha e onde ela poderia caber. “Ah, a tua mulher não vem? Separados? Não, não sabia. Recente? Pois, essas coisas são tão chatas, mas ainda bem que reages e tens projectos novos e tudo! Ok, às oito e meia vens-me buscar”. Ele teria desligado quase em êxtase, não fosse a frase final dela, à despedida, que o deixou verdadeiramente abalado. “Olha, vais-me achar uma grande diferença. A idade não perdoa a ninguém, não é?”

Enfim, sempre era um date. O primeiro, certamente, de uma longa lista. O que interessa se for um flop — achas que ias encontrar uma mulher super logo ao virar da esquina? É preciso é entrar no circuito, pá, começar a sair, a ser visto, fazer com que as pessoas saibam que estás disponível. O resto vem por arrasto.

Passeou-se pela casa, pensativo, fumando o primeiro cigarro do dia. De repente lembrou-se que ainda não tinha visto o quarto do filho. A cama e a escrivaninha tinham ido, assim como praticamente todos os brinquedos. Sobrava um boneco de peluche, três ou quatro carrinhos semi-partidos, unslegos e um quadro para fazer desenhos, com os respectivos marcadores, pousados, à espera de uma mão de criança. A mesa-de-cabeceira ficara e parecia absurda no meio do quarto, sem a cama nem os outros móveis, com um retrato dele e do filho numa praia do Algarve, sorrindo, abraçados um ao outro. Sem saber porquê, sentou-se no chão encostado à parede, muito devagar, a olhar para a fotografia. Duas grossas lágrimas escorregaram-lhe pela cara abaixo e caíram na madeira do chão, entre as pernas. Foi só então que ele percebeu que estava a chorar.
Miguel Sousa Tavares

terça-feira, junho 23

Em quarentena


Cacilda e Abílio

Quando o Sr. Abílio entrava a sorrir, a boca transformada numa enorme fatia de melancia e o rosto vermelho ansiando por ficar mais vermelho, todo largueza de ânimo, nós já sabíamos que vinha de casa da Cacilda, a puta mais velha e afamada de toda a Sé do Porto. Implacável a dar-se ao respeito dos clientes, para nós ela era a D. Cacilda, uma senhora simpática, mulher da vida, como outras haveriam de ser da morte – mas dessas, ainda que muito as temêssemos, não conhecíamos nenhuma. Nós éramos os miúdos que brincavam na rua com piões herdados, bolas esfarrapadas, berlindes riscados e pedras de várias formas apanhadas do chão, ou dentro das casas velhas. Muitas serviam para atirar aos bêbedos, aos drogados e às putas. Mas não à D. Cacilda. Quando nos chamava a casa dela, umas águas furtadas impecavelmente limpas e arrumadas, às quais se acedia através de uma escadaria rangente, e que tinham uma cama no meio da sala e um bidé logo ao lado, a D. Cacilda abria a gaveta de uma cómoda pejada de estatuetas de Nossa Senhora, levantava umas toalhas antigas com cheiro a naftalina e tirava de lá os chocolates Regina que nos comprava com o dinheiro dos broches que fazia ao Sr. Abílio e a mais uma boa dúzia de outros velhos fregueses. Atendia-os fielmente, ao mesmo dia e à mesma hora, há vinte, trinta e até quarenta anos. A esses compromissos antigos, a fama da melhor execução da cidade juntava, nos horários livres, outros clientes mais jovens. Por uma questão de princípio, só atendia maiores de idade e alguns de nós – não interessa referir quais –, depois de muito esperarem, iniciaram-se com ela, a troco de notas de quinhentos escudos, nos dias em que completaram dezoito anos.

Ana Aragão
Parte dos clientes antigos aparecia de Mercedes, ou de BMW, com motoristas que esperavam em cima da passadeira, enquanto Cacilda aplicava nos patrões as artes mágicas que os anos lhe tinham ensinado. Um deles era o Dr. Areias, um reumatologista com consultório em Sá da Bandeira, cujo carro nós perseguíamos gritando-lhe ó camelo, tens duas bolas e muito pelo!

Diz-se que, até meados dos anos noventa, vinha gente de todo o lado para experimentar a feitiçaria oral da Cacilda. O meu tio, que há dias visitei no lar dos Guindais, e que não fossem as artroses estaria ainda a servir finos, tintos e favaios, diz que apareciam até chineses e americanos. A boca da Cacilda estava naquela altura para a Sé do Porto, como hoje estão as sandes do Guedes para os Poveiros, afiançou, antes de rematar: fazia mais fila do que a Lello.

No final dos anos oitenta, a D. Cacilda comprou uma dentadura a um protésico da Rua de 31 de Janeiro, mas os clientes pediam-lhe que a tirasse. Moderadamente desdentadas, mas significativamente invejosas, a minha mãe e as vizinhas diziam que a D. Cacilda pagava a placa ao doutor em géneros, e que assim também elas, mas nós, que éramos miúdos, não entendíamos o que queriam dizer. Assim terá sido até que, um dia, apareceram na Sé umas senhoras chamadas assistentes sociais. Conversavam connosco como as professoras e, para que lhes contássemos se determinado homem batia na mulher ou andava sempre bêbedo, davam-nos chocolates, como a D. Cacilda, razão pela qual começámos por supor que também fossem putas e que, eventualmente, já que vestiam bem, elas é que formassem a espécie rara e até então nunca avistada das chamadas putas finas. A Dra. Fernanda, a mais fina das duas, por ser tão magra que parecia um esparguete vestido, era responsável por um programa-piloto de saúde oral para gente carenciada. Tentou convencer a Sra. D. Cacilda da Silva Conceição – é assim o seu nome, não é? – a passar a usar uma prótese fixa de última geração, que era praticamente como voltar a ter dentes. E quem lhe disse que eu quero ter dentes, perguntou ela, mastigando os lábios. Explicou que os clientes a queriam assim, sem dentadura, que toda a vida esse fora o maior dos seus trunfos comerciais, e que não deixava que doutor nenhum do mundo lhe estragasse o negócio.

Nessa altura, a D. Cacilda já tinha deixado de nos oferecer chocolates, porque uma vez nos tínhamos plantado no passeio a chupar calipos de morango e a gritar o nome dela em direção às águas furtadas. Quem não gostava era o Sr. Abílio, para quem a D. Cacilda era mulher de grandes virtudes. Provavelmente, achava-se detentor do monopólio do berro pela velha amante. Na nossa rua, toda a gente sabia que, depois de encharcar a vela na tasca do meu tio, o Sr. Abílio se dirigia, devagarinho, passeio afora, com a mão a acariciar as paredes das casas, segurando-as para não caírem, oferecendo-lhes o equilíbrio que o vinho lhes havia subtraído, até se postar à janela do prédio em que a D. Cacilda morava desde os quatro anos, idade com a qual os pais a trouxeram de uma aldeia nas imediações de Vouzela. Ó Cacilda, gritava, tentando fazer chegar a voz submersa ao quarto andar daquele prédio de azulejo biselado verde. Ó Cacilda, abre a porta!

Faz hoje precisamente dez anos, a D. Cacilda morreu de cancro – as vizinhas diziam que tinha cancro lá no fundo – e conta-se que, na mesma noite, o Sr. Abílio se atirou da ponte D. Luís. Que o encontraram a boiar junto à Afurada, é verdade; que não sabia nadar, também; se foi o vinho que o empurrou, como defendem as autoridades e duas testemunhas, ou se se atirou por desgosto, é coisa que nunca se descobriu.

Future-se


Contágio

Na rua árida, na tarde estéril,no silêncio infecto,
rente à base dos prédios tão imbecil e carcomida,
uma pequena erva com cara de poema olhou para mim.
Que miséria! Tens sílabas? Tens sentido? Uma ou outra palavra? 

Ainda te lembras dos afectos? Ou és só filha do virus?
E apesar do seu contorno, das suas curvas, da sua elegância
incomparávelmente erótica, apesar de ser só erva e só verde,
Nada respondeu.
Mesmo ela, bolas, vinha de máscara.

21 de março de 2020
Manuel Cintra (1956-2020)

segunda-feira, junho 22

Pelo mundo, em nossa casa

Alberto Ruggieri

Números

Tudo estaria bem com a literatura se ela não continuasse produzindo dada vez mais literatos e cada vez menos escritores
Raul Drewnick

Leitura colorida


A árvore do doutor Perrone

Alexander Köster
Nem que fosse pra ganhar todo o ouro do mundo ninguém teria coragem de ser árvore de rua. Se existe quem não manda em si e vive ao sabor e ao capricho de tudo é exatamente ela. Árvore de rua é mais ou menos como frango de terreiro. Nunca sabe quando deixa de ser frango de panela. Uma árvore nunca sabe quando deixa de ser árvore para ser fogo da dita panela, ser matéria variada e múltipla, ser lenha, cerca de quintal, pau de fósforo ou apenas pau podre, coisa sem dignidade, sem nome de família, sem mais companhia que não seja a própria decomposição e o próprio apodrecimento. Ser árvore de rua é um perigo. Se a gente procurasse fazer um seguro de vida para a árvore, não haveria de achar nenhuma “Sul América” que quisesse. Estando na rua, ela está em estado de sítio, sem garantias individuais. Rua de hoje, que freme de violências, recalcadas ou desatadas, é contra a árvore.

Nos saudosos tempos em que Francisco Escobar era prefeito e o doutor Orozimbo Corrêa Netto, oculista polígrafo, passava da oftalmologia para a botânica, falava-se muito em árvore, discutia-se nos jornais que espécies eram melhores para a arborização urbana. E magnólias, plátanos, carvalhos, alfeneiros, cássias ou tapuias-caienas, eucaliptos e quaresmeiras se sucederam no embelezamento das ruas, plantadas umas, arrancadas outras. E agora, nos últimos anos, ficaram definitivamente arrancadas. O povo respirou aliviado: a rua estava como ele queria, era só rua, postes e automóveis, com o seu festival de neuroses e de rumores. Uma beleza. Uma beleza? Não, pois ainda ficara uma árvore, uma tapuia-caiena, na esquina do doutor Perrone, médico que a viu crescer e a vem defendendo como um pai defende a filha. E há sociedades secretas maquinando a eliminação dessa última sobrevivente. Querem assassiná-la. O caso vem esquentando há certo tempo e agora acabou de ferver na Câmara Municipal. Logo estaria no Fórum, a árvore como ré, acusada de ser árvore, de não ter quatro rodas, não ter cheiro de gasolina e não sair do lugar.

Foi quando uma destas manhãs acordei ouvindo o ruído de machados, batendo a compasso como usam bater os machados nas derrubadas. Saltei da cama aflito, sob um único e negro pensamento: era a árvore do doutor Perrone, estavam aproveitando a fresca manhã para prostrá-la e esquartejá-la. Corri à janela para ver. Não, não era. A árvore na esquina estava de pé. Os machadeiros na verdade machadavam longe. Ainda não chegara o dia dela. Então, antes de pegar as ferramentas e sair para o trabalho, ajoelhei e rezei pela árvore.

domingo, junho 21

De cedo se começa


Nada voltará a ser como dantes

Éramos crianças pequenas e a avó Sofia não deixava que partilhássemos copos entre primos, ou que déssemos uma trinquinha no pão ou no gelado uns dos outros. Nós tínhamos tendência para desrespeitar a regra e os nossos pais não pareciam fazer caso desse comportamento, mas a avó estava sempre a insistir na proibição. Anos mais tarde percebi porquê. Quando era criança, a tuberculose levara muitos dos seus colegas de escola e um primo que lhe era muito próximo. Ainda não havia penicilina, muitas das doenças que hoje estão erradicadas pelas vacinas ainda estavam ativas e esses hábitos rigorosos de higiene ficaram-lhe inculcados para sempre.

Pergunto-me se esta experiência que estamos a viver hoje nos deixará hábitos perenes. Se os novos cuidados se tornarão rotina ou se, pelo contrário, quando chegar a cura ou a vacina, voltaremos ao descaso feliz de antigamente. Será que seremos como os brasileiros que vêm viver para Portugal e mantêm o estado de alerta que a insegurança lhes impôs? Ou vamos acabar por descontrair e regressar aos passou-bens com mãos mal lavadas, aos beijinhos e, no meu caso, aos microfones de sala de ensaio a cheirar a cuspe?


É que durante anos vivemos com baldes de pipocas em que todos põe a mão, levada à boca várias vezes para, vazia, regressar à fonte. Com jornais deixados no banco do metropolitano, que todos folheiam com a ponta do dedo lambida. Com ementas de restaurantes gordurosas, passadas de mesa em mesa, com a mesma mão que rasga a carcaça do couvert e pega numa azeitona para levar à boca. Com as ganzinhas a girar numa roda de meia dúzia de adolescentes. E até com bolos de aniversário, servidos fatia por fatia a uma festa inteira, após soprados com intensidade pelo menino dos anos, às vezes mais do que uma vez, por causa do flagelo das velas mágicas, que insistem em reacender e que eram moda nos anos noventa!

Enfim, à luz da atual situação, vivemos uma vida inteira numa espécie de orgia de viroses. Sendo que não posso deixar de pensar que foi muito por causa dessa promiscuidade de fluidos que ganhámos os anticorpos que nos fazem suficientemente imunes para sobreviver à javardice que é o mundo. Além de que me agrada relembrar o tempo em que não éramos pessoas germofóbicas, obcecadas por higienizar tudo e manter a distância de todos. É um bocado como pensar no mundo pré-VIH, em que o sexo sem preservativo não era uma inconsciência, para perceber como um pequeno vírus pode transformar para sempre a forma como olhamos para os nossos hábitos (mais íntimos, ancestrais e intuitivos) como fazer amor, comer bolo de aniversário, ou abraçar os amigos.

Voltaremos algum dia à programação habitual? Ou como se ouviu por aí, ad nauseam, durante a quarentena, nada voltará a ser como dantes? Eu acredito que relaxaremos, a seu tempo, mas num mundo diferente, porque a crise que se aproxima não se augura ligeira e sabemos, por experiência recente, que uma crise profunda é um retrocesso civilizacional. São anos de luta pelos direitos dos trabalhadores que se desperdiçam, é o Estado social, conquistado a custo ao longo de décadas, que se torna alvo de ataques austeritários e de irreversível erosão, são famílias que perdem casas, são vidas hipotecadas, sonhos desfeitos e bem-estar que se perde.

Por outro lado, quero acreditar que estes meses distópicos nos trouxeram algo de bom. Quero acreditar, por exemplo, que ver a capacidade de regeneração da Natureza, em tão pouco tempo de abrandamento, pode servir de estímulo. Fazendo-nos crer que ainda estamos a tempo de travar a escalada de destruição humana, diminuindo o nosso impacto ambiental e contribuindo para a regeneração, com os conhecimentos científicos que temos, porque a Terra fará o resto. Quero mesmo acreditar nisso, nos abraços apertados e que continuaremos para sempre a desinfetar os microfones. Façamos figas.

Somos piratas


Mudanças à vista

Corremos o risco de desabar. No mês passado, a França assinou uma série de medidas emergenciais no sentindo de ajudar seus atores da cultura, e sobretudo do livro. A cultura constitui um elo essencial da economia francesa, o que não é, infelizmente o caso do Brasil cujo atual governo a despreza.
 
As editoras no Brasil terão de se reinventar e, em particular, repensar o seu modelo de negócios ou desaparecerão por completo. O sucesso das lives nas redes sociais talvez seja um caminho a ser levando em conta no sentido de assegurar visibilidade e estabelecer um canal mais direto com os atores do livro
Leonardo Tonus, escritor e professor de literatura brasileira na Sorbonne

Esconderijo


Um engenheiro

Conheço um engenheiro. Não é como todos os engenheiros. Melhor, é um engenheiro um pouco mais complicado.

Jamais o ouvi conversando sobre cálculos de concreto ou sobre quaisquer coisas que a vã filosofia dos literatos não compreende. Este engenheiro é um leitor. Um leitor de literatura. Compra livros, lê, comenta, conserva livros, pondo nisto tudo um carinho e uma severidade, digamos, maternal. Não há nome nas letras nacionais que ele não conheça. Sobretudo, conhece a vida de todos, interessa-se ao extremo pela vida de todas as pessoas que usam judiciosamente uma pena na mão. É um engenheiro esquisito. Não há conferência literária que a ele não vá. Não há notícia literária que ele não informe. Lê com um método escrupuloso e apenas nisto se denuncia sua vocação para as ciências positivas. Se há alguma coisa na literatura que ele não compreenda bem, estaca: não vai para a frente enquanto n&ão se esclarece a dificuldade. Neste imenso Brasil, onde as leituras nossas são feitas ao azar, ele procede de modo mais inteligente: conquista a literatura como um cabo de guerra conquista o território inimigo. Traçou planos. Calculou quantos anos deve viver e quantos livros poderá ler durante este tempo todo. Não faz farra, porque isto diminuiria a sua vida, quer dizer diminuiria o número de livros que ele poderia ler. Naturalmente, se evitou o matrimônio é porque isto viria roubar-lhe o conhecimento de alguns livros essenciais. Também não quis ficar rico: sendo um técnico muito competente, obstina-se em conservar um lugar modesto do engenheiro do estado, conhecedor que é das injunções que o dinheiro traz. O mundo para Silvio Felício dos Santos reduz-se a termos de leitura de conhecimento, de aprendizagem da alma humana. Porque este engenheiro não procura na literatura a mecânica das palavras, procura a alma dos homens, a vida dos homens, os dramas e as complexas alegrias dos homens. Tudo isto de um jeito discreto e simpático. Quando está numa roda de literatos, suas opiniões vêm ungidas de um certo pudor, como se pedisse desculpas por se interessar tanto, sendo um engenheiro, ela vida das ideias. Ficamos todos sabendo que livro ele está lendo. Porque ele o comenta com cada um, quer saber as diversas opiniões, pesá-las. Não tem pressa. Não se impressiona com grandes sucessos do momento, está lendo "A tempestade", porque chegou a vez de ler Shakespeare. Namora algumas escolas ou tendências como a surrealista, mas não se torna discricionário nos seus julgamentos. Sobretudo, não foi assaltado pelo desejo de ser também um autor. Ele é o leitor, inteligente, cuidadoso, de bom gosto, encontra-se, possivelmente, entre os dez dos leitores que Machado de Assis pedia. E dá aos cientistas de nossa época uma lição de fidelidade à vida, de sabedoria humana: procura a literatura, como quem só bebe água nas fontes.

sábado, junho 20

Para colorir o mundo


Arte poética

Se o poema não serve para dar o nome às coisas
outro nome e ao silêncio outro silêncio,
se não serve para abrir o dia
em duas metades como dois dias resplandecentes
e para dizer o que cada um quer e precisa
ou o que a si mesmo nunca disse.

Se o poema não serve para que o amigo ou a amiga
entrem nele como numa ampla esplanada
e se sentem a conversar longamente com um copo de vinho na mão
sobre as raízes do tempo ou o sabor da coragem
ou como tarda a chegar o tempo frio.

Se o poema não serve para tirar o sono a um canalha
ou ajudar a dormir o inocente
se é inútil para o desejo e o assombro,
para a memória e para o esquecimento.

Se o poema não serve para tornar quem o lê
num fanático
que o poeta então se cale.
Antônio Ramos Rosa

Cada livro, uma alma



Cada livro, cada tomo que você vê, tem alma. A alma de quem o escreveu e a alma dos que leram, viveram e sonharam com ele
Carlos Ruiz Zafón (1964-2020)

Polvo ao café


Assim começa o livro...

Naquela noite sonhei que retornava ao Cemitério dos Livros Esquecidos. Voltava a ter dez anos e acordava no meu antigo quarto sentindo que a lembrança do rosto da minha mãe tinha me abandonado. E eu sabia, do jeito que se sabem as coisas nos sonhos, que a culpa era minha e só minha, porque não merecia recordá-lo e porque não tinha conseguido lhe fazer justiça.

Logo depois meu pai entrava, alertado por meus gritos de angústia. Meu pai, que no sonho ainda era jovem e ainda tinha todas as respostas do mundo, me abraçava para consolar-me. Depois, quando as primeiras luzes já pintavam uma Barcelona de vapor, íamos para a rua. Meu pai, por algum motivo que eu não conseguia entender, só me acompanhou até o portão. Ali soltou minha mão e me deu a entender que aquela era uma viagem que eu devia fazer sozinho.

Comecei a andar, mas lembro que a roupa, os sapatos e até a pele me pesavam muito. Cada passo que eu dava exigia mais esforço que o anterior. Quando cheguei às Ramblas percebi que a cidade estava suspensa em um instante infinito. As pessoas haviam interrompido seus passos e apareciam congeladas como figuras de uma velha fotografia. Um pombo levantando voo esboçava o rascunho impreciso de um bater de asas. Filamentos de pólen flutuavam imóveis no ar como luz em pó. A água da fonte de Canaletas brilhava no vazio e parecia um colar de lágrimas de cristal.

Lentamente, como se tentasse caminhar debaixo d’água, consegui entrar no feitiço daquela Barcelona paralisada no tempo até chegar à entrada do Cemitério dos Livros Esquecidos. Lá chegando, parava, exausto. Não conseguia entender que carga invisível era aquela que eu arrastava comigo e que quase não me deixava avançar. Levantei a aldraba e bati na porta, mas ninguém veio abrir. Bati várias vezes com os punhos no grande portão de madeira. Mas o vigia ignorava a minha súplica. Exânime, afinal caí de joelhos. Só então, ao ver o feitiço que eu tinha arrastado, fui tomado pela terrível certeza de que a cidade e o meu destino ficariam congelados para sempre naquele sortilégio e de que eu nunca mais iria lembrar o rosto da minha mãe.

sexta-feira, junho 19

Dias de quarentena


Nada que faz refletir

Sem mo dizeres - compreendi que a nossa vida é, principalmente, a vida dos outros... Melhor: compreendi que a ternura era o melhor da vida. O resto não vale nada. [...] O importante é a comunicação de alma para alma. A mão que aperta a nossa mão, o olhar húmido que procura o nosso olhar, o sorriso que nos acolhe, desvendam-nos o mundo. Às vezes é um nada que nos faz reflectir, é o momento, é uma figura que nos entra pela porta dentro e de que nos sentimos logo irmãos...
Raul Brandão, "O Silêncio e o Lume"

Aproveitando a viagem


Tempos de coronavírus

Ninguém imaginaria que as cidades fossem interrompidas no seu fluxo de vida com essa guerra do coronavírus. Agora todos andam de máscara quando uma necessidade impõe que vá comprar algo necessário na farmácia ou supermercado. Cuidado, cuide-se com os demais, lave sempre as mãos, com álcool ou sabão, mas não esqueça o ritual, se viver é perigoso, agora é muito mais. Esse tipo de cautela pode ser providencial, vai salvar a sua vida.

Em nossas casas vivemos recolhidos nessa repetitiva e irritante quarentena, que tem como um de seus propósitos fazer com que nossa roupa fique apertada com os quilinhos que de repente ganhamos. A notícia na televisão informa os estragos que o coronavírus vem fazendo aos frágeis seres humanos. As cidades estão vazias. Vivemos um clímax de filme de ficção científica. De pesadelo e desalento.


As ruas desertas. Impiedosa, sorrateira, veloz, o coronavírus ataca todo o planeta e não se satisfaz com as vítimas fatais que vem fazendo a todo instante. Não bastasse exigir o nosso confinamento, proibir abraçar o amigo, impedir que o beijo em carícia de lenço não seja dado ao ente querido e a flor não se entreabra no rosto com a expressão do sorriso.

Horrível, infame, impiedoso, esse coronavírus. De onde veio essa minúscula criatura que não é vista a olho nu com sua fábrica da morte no lugar da vida? Para onde quer levar nosso assustado e triste coração? Por causa dela, os pais ficam sem o filho, o marido sem a esposa, o neto sem a avó, o vizinho sem a vizinha. Ela não tem limite, até criança é agarrada por suas pinças venenosas. Quanto aos idosos nem é bom falar, são os que são levados mais depressa na onda dessa assassina, que mata e não enterra, de tão estúpida com a sua traiçoeira invenção da morte.

Maneira de forjarmos uma estratégia com vistas a diminuir suas investidas pusilânimes, é ficarmos de quarentena, recolhidos em nossas casas, não formarmos grupos, evitarmos sair como antes, só mesmo quando necessário. É preciso cautela até que se ache o antídoto para mandá-la para as funduras do pior abismo. Lugar que ela merece habitar para todo o sempre, dormir e se alimentar de nadas, como é de sua predileção.

Como penso que a linguagem literária é a mais completa como leitura do mundo e a literatura é forma de conhecimento da vida fundamental como o amanhecer, além de ser fonte de prazer, quando se tem em mãos um bom livro, bem escrito, que conte uma história com surpreendentes sentidos, sugiro que alguns que vão me ler nessa crônica reservem um pouco de seu tempo de quarentena e tente escrever histórias, crônicas, poemas, como forma de conversar no seu estar no mundo, tomando a palavra emprestada do sonho. Mostre à esposa, ao filho, ao amigo, as histórias, as crônicas ou poemas que você escreveu. Qualquer um pode tentar. A beleza e o encantamento da vida estão em tudo. Com a arte da palavra, você também irá descobrir isso, tenho certeza.

Afinal, todos nós, de poeta, médico e louco temos um pouco. Por que não de escritor, seja o nosso canto alegre, triste ou rouco?
Cyro de Mattos

quinta-feira, junho 18

'Outono' na biblioteca


A senhora do retrato

Os retratos a óleo fascinam-me. E ao mesmo tempo assustam-me. Sempre tive medo que as pessoas saíssem das molduras e começassem a passear pela casa. Para falar verdade, estou convencido que isso aconteceu algumas vezes. Em certas noites, quando eu era pequeno, ouvia passos abafados e tinha a sensação de que a casa ficava subitamente cheia de presenças. Ainda hoje não gosto de atravessar os longos corredores das velhas casas com grandes retratos pendurados nas paredes. Há olhos que nos seguem do alto e nunca se sabe o que de repente pode acontecer.

Havia na casa da tia Hermengarda um quadro deslumbrante. Ficava ao cimo das escadas, à entrada do corredor que dava para os quartos de dormir. Mesmo assim, rodeado de sombras, irradiava uma luz que só podia vir de dentro da dama do retrato. Não sei se da blusa muito branca, se dos olhos, às vezes verdes, às vezes cinzentos. Não sei se do sorriso, às vezes alegre, às vezes triste. Eu parava muitas vezes em frente do retrato. Era talvez o único que não me assustava. Creio até que dele se desprendia uma luz benfazeja, que de certo modo me protegia.

Mas havia um mistério. Ninguém me dizia quem era a senhora do retrato. Arminda, a criada velha, benzia-se quando passava diante do quadro. Às vezes fazia figas e estranhos sinais de esconjuração. A prima Luísa passava sem olhar.

- Essa pergunta não se faz - disse-me um dia em que lhe perguntei quem era aquela senhora.

Percebi que não gostava dela e que era um assunto proibido. Até a minha mãe me ralhou e me pediu para nunca mais fazer tal pergunta. Mas eu não resistia. Por vezes descaía-me e dava comigo a perguntar quem era a senhora dos olhos verdes, quase cinzentos, que me sorria de dentro do retrato.

Com a minha tia-avó, eu tinha uma relação especial. Ela lia-me histórias e poemas inquietantes. Creio que troçava das convenções, talvez das próprias pessoas. Por vezes era difícil saber quando estava a sério ou a brincar. Apesar de já ser muito velha, tinha um sentido agudo do ridículo. Foi a primeira pessoa verdadeiramente subversiva que conheci. Era óbvio que tinha um fraco por mim. Pelo menos era o único membro da família a quem ela tratava como um igual. Dormia no andar de baixo e nunca subia as escadas. Talvez por isso eu nunca lhe tinha perguntado quem era a senhora do retrato.

Um dia, farto já de tanto mistério e ralhete e, sobretudo, das gaifonas da Arminda e do ar empertigado da prima Luísa, não me contive e perguntei-lhe. A minha tia sorriu. Depois levantou-se, pegou no molho de chaves que trazia preso à cintura, abriu uma gaveta da escrevaninha e tirou um álbum muito antigo. Voltou a sentar-se e lentamente começou a mostrar-me as fotografias. Eram quase todas da senhora do retrato e do meu primo Bernardo, que há muito tinha partido para a África do Sul.

Apareciam juntos a cavalo e de bicicleta. E também de fato de banho, na praia da Costa Nova. Havia alguns em que o meu primo estava de smoking e ela de vestido de noite. Via-se também a tia Hermengarda, mais nova, por vezes os meus pais, gente que eu não conhecia. Até que chegámos à senhora do retrato já de branco vestida.

- Natacha - murmurou a minha tia, com uma névoa nos olhos.

E depois de um silêncio:

- Ela chama-se Natália, mas eu gosto mais de Natacha, sempre a tratei assim. É preciso dizer que a tia Hermengarda tinha vivido em Moscovo no início da carreira diplomática do marido e era uma apaixonada dos autores russos, Pushkine, Dostoievski, principalmente Tolstoi, que visitou algumas vezes em Isnaia Poliana. Identificava-se com as personagens de Guerra e Paz. Creio que amava secretamente o príncipe André e gostava de ter sido Natacha. Falava muito da alma russa. Era uma propensão do seu espírito.

- Tu também tens alma russa - dizia-me. E era como se me tivesse armado cavaleiro.
Manuel Alegre, "O Homem do País Azul"

Balão para dois


E a cidade que se chamava...

E a cidade que se chamava Rio de Janeiro, sem ter conhecido a penúria da guerra dentro de suas portas, e a desolação de bombardeios inimigos no céu, começou a apodrecer.

 2. E os seus moradores foram expostos a muitas provações, e as suas aflições, multiplicadas, mais que as areias da Guanabara; e os donos da vida não se compadeciam de seus sofrimentos.

3. Muitos juntaram riquezas, e não com direito; esses não se compadeciam de seus sofrimentos.

4. Pela desolação da terra, porque não vinha chuva, se confundiram os lavradores; e os magnatas canadenses rogavam ao povo uma paciência inútil. 

5. Quem saía aos campos secos, encontrava os bois a engolir vento como os dragões; quem ia à cidade, via por toda parte a incúria dos que deviam zelar pela República.

6. As vacas extenuadas e poucas não davam leite, e os que tinham água ficavam tristes porque não tinham o leite para deitar-lhe a água.

7. Em Rio de Janeiro sobravam as tristezas e tudo faltava; mesmo o mar, grande e generoso, só trazia às praias um excremento fétido; e isso porque os homens não sabiam mais construir esgotos e canais.

8. E o povo, que era chamado carioca, foi contaminado de tristeza, um povo que outrora trazia nos lábios palavras de prazer.

9. Não havia água para o banho e mesmo a de beber era pouca: e era vendida no mercado como o vinho. E os donos da cidade não se apercebiam dessa aflição porque a eles lhe bastava a soda para juntar ao uísque e bebiam também uma água espumante chamada champanha. 

10. Escasseavam nas feiras os legumes e custavam os olhos da cara; e desapareciam quando um homem, chamado Cabello, procurava torná-los acessíveis.

11. Em Rio de Janeiro, não houve poder humano contra a carestia; porque a mão dos homens era fraca e mais débil o entendimento.

12. Cabello comeu aflições como ervas-daninhas; e os preços subiam; e o dinheiro do pobre não comprava mais nada digno de valor.

13. E a própria luz veio a diminuir, e a cidade cobriu-se de uma treva melancólica, só propícia aos furtos e às fornicações. 

14. E o povo dizia a seu chefe: assentai-vos no chão, porque a coroa de vossa glória escorrega de vossa cabeça.

15. E dizia: que é do povo que vos foi confiado? E nem mesmo o vento respondia.

16. E não havia carne e não havia pão; e havia muitos crimes na cidade porque a fome se arma de uma faca.

17. Como o látego no lombo do burro, Rio de Janeiro foi castigada duramente; e os vícios dos homens públicos é que foram causa dessas aflições; esses homens eram coisas vãs e as obras deles dignas do riso.

18. E a carência de comida era tanta que se tornava ridícula: de que adianta faltar a manteiga se já falta o pão?

 19. O Rio de Janeiro tornou-se em desolação e numa vala perpétua: e todos aqueles que passam por essa cidade ficam espantados e meneiam a cabeça; porque esta cidade se quebra como uma vasilha de barro; e os poderosos não percebem os clamores de sua ruína.