domingo, junho 21

Nada voltará a ser como dantes

Éramos crianças pequenas e a avó Sofia não deixava que partilhássemos copos entre primos, ou que déssemos uma trinquinha no pão ou no gelado uns dos outros. Nós tínhamos tendência para desrespeitar a regra e os nossos pais não pareciam fazer caso desse comportamento, mas a avó estava sempre a insistir na proibição. Anos mais tarde percebi porquê. Quando era criança, a tuberculose levara muitos dos seus colegas de escola e um primo que lhe era muito próximo. Ainda não havia penicilina, muitas das doenças que hoje estão erradicadas pelas vacinas ainda estavam ativas e esses hábitos rigorosos de higiene ficaram-lhe inculcados para sempre.

Pergunto-me se esta experiência que estamos a viver hoje nos deixará hábitos perenes. Se os novos cuidados se tornarão rotina ou se, pelo contrário, quando chegar a cura ou a vacina, voltaremos ao descaso feliz de antigamente. Será que seremos como os brasileiros que vêm viver para Portugal e mantêm o estado de alerta que a insegurança lhes impôs? Ou vamos acabar por descontrair e regressar aos passou-bens com mãos mal lavadas, aos beijinhos e, no meu caso, aos microfones de sala de ensaio a cheirar a cuspe?


É que durante anos vivemos com baldes de pipocas em que todos põe a mão, levada à boca várias vezes para, vazia, regressar à fonte. Com jornais deixados no banco do metropolitano, que todos folheiam com a ponta do dedo lambida. Com ementas de restaurantes gordurosas, passadas de mesa em mesa, com a mesma mão que rasga a carcaça do couvert e pega numa azeitona para levar à boca. Com as ganzinhas a girar numa roda de meia dúzia de adolescentes. E até com bolos de aniversário, servidos fatia por fatia a uma festa inteira, após soprados com intensidade pelo menino dos anos, às vezes mais do que uma vez, por causa do flagelo das velas mágicas, que insistem em reacender e que eram moda nos anos noventa!

Enfim, à luz da atual situação, vivemos uma vida inteira numa espécie de orgia de viroses. Sendo que não posso deixar de pensar que foi muito por causa dessa promiscuidade de fluidos que ganhámos os anticorpos que nos fazem suficientemente imunes para sobreviver à javardice que é o mundo. Além de que me agrada relembrar o tempo em que não éramos pessoas germofóbicas, obcecadas por higienizar tudo e manter a distância de todos. É um bocado como pensar no mundo pré-VIH, em que o sexo sem preservativo não era uma inconsciência, para perceber como um pequeno vírus pode transformar para sempre a forma como olhamos para os nossos hábitos (mais íntimos, ancestrais e intuitivos) como fazer amor, comer bolo de aniversário, ou abraçar os amigos.

Voltaremos algum dia à programação habitual? Ou como se ouviu por aí, ad nauseam, durante a quarentena, nada voltará a ser como dantes? Eu acredito que relaxaremos, a seu tempo, mas num mundo diferente, porque a crise que se aproxima não se augura ligeira e sabemos, por experiência recente, que uma crise profunda é um retrocesso civilizacional. São anos de luta pelos direitos dos trabalhadores que se desperdiçam, é o Estado social, conquistado a custo ao longo de décadas, que se torna alvo de ataques austeritários e de irreversível erosão, são famílias que perdem casas, são vidas hipotecadas, sonhos desfeitos e bem-estar que se perde.

Por outro lado, quero acreditar que estes meses distópicos nos trouxeram algo de bom. Quero acreditar, por exemplo, que ver a capacidade de regeneração da Natureza, em tão pouco tempo de abrandamento, pode servir de estímulo. Fazendo-nos crer que ainda estamos a tempo de travar a escalada de destruição humana, diminuindo o nosso impacto ambiental e contribuindo para a regeneração, com os conhecimentos científicos que temos, porque a Terra fará o resto. Quero mesmo acreditar nisso, nos abraços apertados e que continuaremos para sempre a desinfetar os microfones. Façamos figas.

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