quarta-feira, junho 17

O lugar sem nome do Doutor Adalberto

Poucos reparam que, para lá de Drave e do monte Fuste, ainda mais inacessível por entre o caminhar xistoso e o arvoredo que, no fundo do vale, de repente se faz denso, há uma outra aldeia, minúscula. Recomendado e esperançoso, vou em busca do doutor Adalberto, o único habitante daquele lugar sem nome. Outras pessoas vão também, às segundas e às sextas-feiras, os dias em que o doutor recebe, na sua casa de pedra lousinha, em que a luz ou entra pela vidraça ou sai do fogo, essa gente que estaciona o carro em Regoufe e, já sem rede de telemóvel, se aventura serra acima, e depois serra abaixo, para após a consulta novamente sujeitar as pernas às montanhosas rampas.

Tierri Luís
Sou o primeiro a chegar, não são ainda nove horas, e ouvem-se descendo as encostas ribeiros aspirantes a rios. Escrevendo num caderno pousado sobre o joelho, sentado numa cadeira de praia, no topo de um montito, e apontado a um rasgo na vertente leste, pelo qual entra o sol acabado de nascer, o velho doutor Adalberto aguarda pacientemente o primeiro cliente. Tenho de aproveitar nesta altura, diz, pois o sol não chega cá no inverno. Ergue-se com relativa genica e cumprimentamo-nos.

O doutor Adalberto foi um prestigiado professor de Ciências da Casualidade. Toda a vida deu aulas a turmas numerosas e consultas individuais, sempre por conta própria, numa sala luminosa, com vista para a alta de Coimbra, no último andar de um edifício de escritórios maioritariamente ocupado por advogados, mas que ultimamente também albergava um astrólogo, uma massagista e, na cave escura, um violinista obsessivo. Era consultado sobretudo por pessoas deprimidas, carregadas de frustrações, desalentadas com o curso das suas vidas ou com determinado período das respetivas existências, ainda que por vezes um ou outro indivíduo bem-sucedido mas pouco seguro das próprias capacidades também o procurasse, desconfiando da fortuna ou temendo uma mudança de ventos.

Ninguém sabia ao certo o que tinha estudado – medicina, diziam uns; filosofia, apostavam outros; astrologia, desconfiava a vizinha; precocemente doutorado em matemática aplicada, escrevera certa vez um jornal –, mas o doutor Adalberto apresentava aos seus clientes complexas fórmulas com as quais procurava demonstrar-lhes que os infelizes acontecimentos que os acometiam não eram senão fruto de um grande e desestruturado acaso.

Tivera uma vida confortável: casa com jardim, bons automóveis, uma mulher que o amara, dois filhos crescidos, casados e também eles pais de filhos. Na altura da desgraça, e mais do que noutras circunstâncias, sentia-se feliz no papel de avô. Aos netos, para perante eles normalizar o que o apoquentava, contava histórias de doenças raras e estranhas, que depois passava a punho para um caderninho de capa azul. Tencionava, antes que o cancro do pulmão lhe sugasse a força do braço e o fôlego das ideias, passar tudo a computador, por ordem alfabética, e deixar aos miúdos um livrinho de histórias em forma de dicionário, através do qual os netos pudessem reencontrar doenças terríveis como: amplexo, ciclídeo, concretude, diuturnidade, galicismo, perjúrio, rudimento, ou vã glória.

O acaso, dizem os médicos do Instituto Português de Oncologia, salvou-o de morte certa. O acaso, chamemos-lhe assim, deitou abaixo, a 4 de março de 2011, a velha ponte sobre o Rio Paivô, filho do Paiva, dando corpo a uma tragédia muito menos conhecida do que outras de cariz semelhante, mas que naquela manhã de domingo fez submergir os dois carros em que seguiam os filhos, as noras, os netos e a mulher do doutor Adalberto. Por mero acaso, ele não viajara também – dois dias antes do passeio, havia sido convidado para encerrar um congresso, em substituição de um colega que, por infelicidade ou acaso, partira um pé.

Renunciando a todo o nada que lhe sobrava, ali se isolou o doutor Adalberto depois da fatalidade. Continua a escrever histórias para os netos e, a troco de pacotes de leite ou arroz, a dar consultas de Casualidade, esperando o acaso – esse deus sem outro nome, como alguém aqui escreveu há dias – e que este o faça reencontrar a família depois de partir. Começa assim esta história, que terá outros capítulos, se o acaso quiser deixar-me contar ao doutor Adalberto a terrível infelicidade que me persegue.

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