sábado, junho 27

Pevide

 Walter Langley
Estava sentada à soleira das vossas portas com o coração prevenido mas manso. Vendia sentada à borda dos vossos bancos. O dentro dos dedos estava cheio de sal fino, uma sequeira. Lambia-os de relance, eu não queria ofender, sentada à porta dos vossos bancos. Sabiam ao torrado das sementes, a forno. Enrolava os pequenos dinheiros por tamanhos, como era de vosso uso. Estava sentada às vossas sombras sem nada de necessário para trocar. E via:

O desnome das caras passeantes, o desavindo andar, as portas de redondo vidro, cromos, as pernas a galgar ao alto do meu ver, riquezas, bons cheiros, girações, o apertado coração de pressas e os que vagueavam até mim, de graça: o sal atrai e aquele estar tão queda, o funil de jornal, minhas sementes.

Tinha eu então o coração como um trapo: nada me chegava. Porque nada me chegava talvez porque eu quisesse o pouco. O bom de algum bem quieto e poder estar ao sol. Via as ervas crescerem e revirem, nas montras, ao lado da bulha das buzinas. Que manso pasmo, as lindas folhas onde, à beira, nada parava. Fazia frio e seco, molhado outras, os anos, tudo a passar. Os que diziam “Vem” tinham outro ofício a dar-me – mulherar aos dias. Eu não tinha ofício a receber. Diziam “Pois quê?” e só eu podia como não, isso não. Acho que passaram os tempos todos e eu não me fazia mesmo velha. Não me fazia nada, de nada feita. A pouco e pouco, ainda perguntava, fui não estando à espera. Porque estando à espera, não fazia nada que não fosse da espera e ela gasta-se. Há um podre na coisa quieta sem usos que vem do dentro para o fora. Ia saindo isso e formando uma pequena nuvem de enxofre no meu regaço, salobrava. Não me parecia bem. Foi tudo passando mais de largo. Como eu era frouxa assim empodrecendo do que não ficava, não chegava, sentada à soleira das vossas pedra-mármore, balcoarias, janelos de papel-moeda, deposita. De só querer o pouco, o demenos. O só bom. O não buscar.

Foi então que vieram levar-me porque eu não tinha roupas de direito, nomes, licença de cobrar, fazer levantamentos, vendilhona era daquele tempo.

Mas posso fazer renda, digam. Voltar e fazer renda à soleira das vossas trocas? Malha de malha de malha até que nem já veja e então volte devida a este fora parte onde me têm? Eu só queria estar perto do vosso buliçar de ofícios, vender o verem da minha mansidão. Que medo faz paciência pobre, semente gôra seca, outra sede. Medo de malmorrer, não ter aonde. Mas aqui.
Maria Velho da Costa (1938-2020), "Desescritas"

Nenhum comentário:

Postar um comentário