terça-feira, junho 9

No alto da serra d’Arga

Kestutis Kasparavicius
No alto da serra d’Arga, em passeio de família, as montanhas de costas voltadas para nós (imagino que as montanhas, como tudo, fitem o mar), absorto eu nos meus pensamentos, ruminando o mantra pessoano que reza assim: “O campo é onde não estamos”, metabolizando interiormente e com inquietação os sons na Natureza profunda; serão cigarras, se calhar não porque cigarras há só de noite, acho eu, serão rãs, serão cobras, que sons estes que parecem que cantam em coro fora daqui, fora daqui, que sons estes que inquietam na mesma medida que buzinas e sirenes me acalmam, e nisto passa um montanhês. Um montanhês em tudo semelhante a um montanhês do meu imaginário mais de Miguel Torga, um montanhês de sulcos na cara, cavados pelo tempo duro daquelas alturas, uma pessoa dali que nunca leu Miguel Torga e que diz bom-dia ao passar, num português arraçado de galego medieval, alguém que provavelmente ainda usa os adjetivos “fermosa” e “leda”. E eis um pormenor inquietante: um capacete debaixo do braço. Na cova do braço, um capacete moderno, de bom aspeto, em nada condizente com tão pitoresco e torguiano cidadão. Reparei bem, porque eu reparo nessas coisas: o capacete estava a mais. Não constava do meu figurino pessoal daquela pessoa. Uma unha comprida, isso, sim, unha essa que serviria para lascar raspas de um queijo curado em casa, seco da cura e do longo estágio em bolso de calças de fazenda, uma casa de pedra com uma bacia para degolar galinhas, umas cabras que dão pelo nome, uns enchidos a fumar na chaminé, o fiar da roca, a mulher de poucas palavras, um cão magro e independente, uma placa dos CTT antiga, daquelas com o cavaleiro intrépido em desenvolto galope, soando a sua trompa, a palavra “telefone” como que anunciando o único telefone dali daquela zona, nos anos 80, do tempo em que a mulher se dedicava a uma espécie de mercearia/PBX, onde os vizinhos iam abastecer-se de novidades e de vinho em garrafão, um póster da Seleção Portuguesa no México 86, já meio amarelo-azulado do tempo que parece não ter passado e, de repente, um capacete moderno, novo, com bom aspeto? Então, talvez este nosso cidadão tivesse uma Puc, uma Famel, talvez o capacete fosse um presente envenenado de algum sobrinho, e agora esta maçada de ter de andar com esta droga enfiada nos cornos, os poucos cabelos enlameados de suor, assim nem vejo bem para fora. O campo é onde não estamos, o campo é onde não estamos, e algumas boas dezenas de metros à frente não uma Puc, não uma Famel, não uma Casal Boss com remendos, mas aquilo que, no meu parco e ignorante entender no que a motociclos concerne, aparentava claramente ser uma Harley-Davidson. Ou pelo menos alguma quejanda e motorizada criatura muito mais afim de um Hells Angel, de San Bernardino, do que de um homem retirado dos Contos da Montanha. Quando é que o senhor liga a fera e arranca a todo o vapor a ver se o tubo de escape da improvável Harley eclipsa este cricri das cigarras/grilos/sapos/rãs/cobras que me inquieta a alma; talvez seja tempo a mais na montanha, já lá vão umas largas horas e quem sabe eu já ande carente dos sons da minha natureza.

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