A queda
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Elzette Welgemoed |
Num certo sentido, isto: assumir que a energia da gravidade é coisa para alimentar os cães, se necessário – dá comida ao mundo, essa energia gravítica, como se os abutres fôssemos todos nós e, quando um homem caísse, rapidamente acudíssemos a essa queda e devorássemos a energia que fica em redor de um corpo caído, destroçado, feito em fanicos; a questão não é tanto a carne do morto, isso não interessa aos abutres, o que importa é outra coisa, são os restos que estão à volta, esses restos que nós e os cães vamos comer ou beber como se a energia fosse uma coisa material e não uma invenção da cabeça; e sim, eis o belo mundo em que poderemos crescer mais fortes, o mundo em que a cidade se alimenta da queda, das várias quedas, das quedas de um objecto, de um vaso de uma senhora distraída que com o cotovelo o faz cair; dessa queda, sim, vem energia – mas a cidade alimenta-se acima de tudo, da queda de corpos humanos: suicídios nas pontes, por exemplo, dão uma energia intensa, energia que activa o comércio do centro, que faz mexer as pessoas como se as pessoas tivessem uma pequena roldana que as accionasse: a pressa que vemos subitamente nos rostos teve origem, pois, bem lá atrás, na forma brutal e invulgar como o corpo do suicida bateu na água. Queda, portanto, como a energia que substitui o petróleo e todas as outras fontes naturais: a cidade mantém-se em movimento, as casas mantêm a luz, a electricidade não vai abaixo porque de quando em quando há um corpo que cai; um belo corpo humano em queda desde o 60º andar, ou desde o quinto andar – quanto mais alto, claro, quanto maior o percurso da queda, mais energia gravítica é libertada; e a queda só liberta energia quando é uma queda mortal, portanto os outros homens não salvam, quando muito acodem à queda, aproximam-se e fingem uma última tentativa de salvamento quando afinal estão a parasitar a energia da gravidade de que o corpo desfeito já não precisa – porque certamente há muitas ciências e uma delas poderia pensar na diferença da queda de u corpo já morto e de um corpo vivo. É como se no corpo morto não fosse já a terra que puxa, mas o corpo que se deixa cair. Tem uma passividade dupla, o corpo morto, e ninguém faz força contra quem não reage – a terra é assim, não é diferente de um homem médio corajoso: se não lutas eu também não; o corpo morto cai e a sua queda, mesmo que do alto de sessenta andares, liberta energia, sim, e muita e importante, mas acredita-se que a queda de um corpo vivo é sempre mais forte, mais poderosa, mais generosa – oferece mais à cidade. A isso se chama sacrifício se vivêssemos noutros tempos, mas assim está bem. E os homens que recolhem o lixo são agora acompanhados por outros que recolhem as quedas. Uns recolhem os mortos e o lixo, enquanto ao lado deste grupo, outros homens recolhem a queda – e não os corpos -, como se esta fosse elementos com átomos, um elemento com substância. Mas a queda é isto mesmo: os homens recolhem uma sensação, tentam absorvê-la como um fato absorve água e a faz desaparecer e a certa altura não existe fato e água, mas apenas fato húmido; eis o que procuram os que levam a energia que se libertou na queda de um corpo sólido para a sua velha madre que está a morrer, ou para os seus filhotes, para que cresçam grandes e fortes, e a vida é isto: um certo prazer que vem da queda dos outros. Roubei a energia gravítica de uma queda e aqui estou eu a trazer o esforço do meu dia para a mesa da família. Vamos comemorar e temos energia suficiente e, sim, eis como aconteceu um certo dia, as quedas tornaram-se indispensáveis: um empurra o outro para que a cidade não pare.
Gonçalo M. Tavares
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