segunda-feira, junho 15

Cabritos na horta

Joseph Marius Avy
Noticiou-se há alguns dias que em breve estará aberta uma estrada que poderá levar multidões ao alto da serra, onde haverá abrigos rústicos, televisão, luz elétrica, mirantes, bares etc. Vê-se que ao contar estas coisas o noticiarista o faz com a alegria tanto mais legítima quanto na execução daquele plano colaboram poderes públicos e cidadãos eminentes. Sinto não me regozijar também com semelhantes alvíssaras. Pelo contrário, acho que o que se pretende fazer é um erro. E nem o prefeito Agostinho Junqueira, homem que está fazendo um bom governo, nem Pedro e Caio Junqueira deveriam permiti-lo. Este é um ponto de vista e vamos ver se ando enganado.

Não sou contra abrigos rústicos, bares, televisão, mirantes e outros regalos que possam ilustrar nossos pontos de passeio e aliviar um pouco as velhas tristezas do homem diante de sua morte ou diminuir novas apoquentações diante da vida. Não sou contra estradas, caminhos ou trilhos. O que me dá cuidados e no que eu penso é na inocência colossal e indefesa da montanha, na sua enorme tranquilidade, na sua passiva e confiante beleza em cuja carne tal estrada vai inocular em doses mortais o pior e o mais destruidor dos vírus que é para ela o trânsito das gentes.

Se mesmo sem caminhos fáceis, mesmo sem atrativos especiais postos lá no alto, muitas vezes o fogo tem devorado suas matas e a água de sua fonte tem apresentado um apreciável grau de contaminação, imagine-se o que acontecerá no dia em que por ela andarem soltos, inspirados pela impunidade e pelas cervejas dos piqueniques, certos festivos tropéis humanos. Da profunda e indomável necessidade de matar que é imanente no homem, a necessidade de matar a natureza é a mais sedutora, a mais facilmente satisfeita, a que produz devastações maiores, mais calamitosas e talvez mais irreparáveis, e a que menos se parece com um crime. É quase um transfer, um permitido e higiênico derivativo para o impulso a outras mortes que a polícia faz recalcar.

Entre as coisas com que a natureza nos enriqueceu, a mais pitoresca, a mais bela e uma das mais úteis é sem dúvida a montanha grande, que se chama São Domingos, com seu decote de relva e seu ondeante vestido de florestas. Ela é para a cidade como um regaço materno. É cor, é proteção, é alimento, é saúde, é força. É como se fosse um ser animado e vivo, quase sagrado, tanto é sobre-humana e eterna a doçura da sua presença. Nós a olhamos todos com encantamento e também com um pouco desse pequenino e afetuoso orgulho local. Ela é a “nossa” montanha. Mas, se para lá subir a tal estrada e levar gente, é mais certo que dentro em breve ela se transforme num pelado e monstruoso cupim para o qual olharemos com desolação e vergonha. Aos poucos, os alegres enxames de térmitas humanos se espalharão dos mirantes para os campos e para o recesso das árvores. E começarão a devorá-la. Ficará apenas a corcova nua e seca, enchendo de ridículo o que foi uma das mais formosas paisagens do Brasil. Para melhor comparar, teremos cabritos na horta.

Se me cabe pedir alguma coisa ao prefeito Agostinho Junqueira, que com o aplauso de todos tanto se esforça para bem governar, se me cabe pedir-lhe alguma coisa, peço que detenha esse furibundo projeto, o qual fracos motivos tem para justificar-se e tão sérios riscos sugere para condená-lo. Caso me permita, ainda lhe digo mais: a ascensão à montanha devia ser consentida apenas para que lá se plantassem mais árvores, e essas árvores, livres de contatos daninhos, a coroassem de flores, quando nós a coroamos de orações pagãs e os céus a coroam de estrelas.
Jurandir Ferreira, "Da quieta substância dos dias"

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