terça-feira, junho 23

Cacilda e Abílio

Quando o Sr. Abílio entrava a sorrir, a boca transformada numa enorme fatia de melancia e o rosto vermelho ansiando por ficar mais vermelho, todo largueza de ânimo, nós já sabíamos que vinha de casa da Cacilda, a puta mais velha e afamada de toda a Sé do Porto. Implacável a dar-se ao respeito dos clientes, para nós ela era a D. Cacilda, uma senhora simpática, mulher da vida, como outras haveriam de ser da morte – mas dessas, ainda que muito as temêssemos, não conhecíamos nenhuma. Nós éramos os miúdos que brincavam na rua com piões herdados, bolas esfarrapadas, berlindes riscados e pedras de várias formas apanhadas do chão, ou dentro das casas velhas. Muitas serviam para atirar aos bêbedos, aos drogados e às putas. Mas não à D. Cacilda. Quando nos chamava a casa dela, umas águas furtadas impecavelmente limpas e arrumadas, às quais se acedia através de uma escadaria rangente, e que tinham uma cama no meio da sala e um bidé logo ao lado, a D. Cacilda abria a gaveta de uma cómoda pejada de estatuetas de Nossa Senhora, levantava umas toalhas antigas com cheiro a naftalina e tirava de lá os chocolates Regina que nos comprava com o dinheiro dos broches que fazia ao Sr. Abílio e a mais uma boa dúzia de outros velhos fregueses. Atendia-os fielmente, ao mesmo dia e à mesma hora, há vinte, trinta e até quarenta anos. A esses compromissos antigos, a fama da melhor execução da cidade juntava, nos horários livres, outros clientes mais jovens. Por uma questão de princípio, só atendia maiores de idade e alguns de nós – não interessa referir quais –, depois de muito esperarem, iniciaram-se com ela, a troco de notas de quinhentos escudos, nos dias em que completaram dezoito anos.

Ana Aragão
Parte dos clientes antigos aparecia de Mercedes, ou de BMW, com motoristas que esperavam em cima da passadeira, enquanto Cacilda aplicava nos patrões as artes mágicas que os anos lhe tinham ensinado. Um deles era o Dr. Areias, um reumatologista com consultório em Sá da Bandeira, cujo carro nós perseguíamos gritando-lhe ó camelo, tens duas bolas e muito pelo!

Diz-se que, até meados dos anos noventa, vinha gente de todo o lado para experimentar a feitiçaria oral da Cacilda. O meu tio, que há dias visitei no lar dos Guindais, e que não fossem as artroses estaria ainda a servir finos, tintos e favaios, diz que apareciam até chineses e americanos. A boca da Cacilda estava naquela altura para a Sé do Porto, como hoje estão as sandes do Guedes para os Poveiros, afiançou, antes de rematar: fazia mais fila do que a Lello.

No final dos anos oitenta, a D. Cacilda comprou uma dentadura a um protésico da Rua de 31 de Janeiro, mas os clientes pediam-lhe que a tirasse. Moderadamente desdentadas, mas significativamente invejosas, a minha mãe e as vizinhas diziam que a D. Cacilda pagava a placa ao doutor em géneros, e que assim também elas, mas nós, que éramos miúdos, não entendíamos o que queriam dizer. Assim terá sido até que, um dia, apareceram na Sé umas senhoras chamadas assistentes sociais. Conversavam connosco como as professoras e, para que lhes contássemos se determinado homem batia na mulher ou andava sempre bêbedo, davam-nos chocolates, como a D. Cacilda, razão pela qual começámos por supor que também fossem putas e que, eventualmente, já que vestiam bem, elas é que formassem a espécie rara e até então nunca avistada das chamadas putas finas. A Dra. Fernanda, a mais fina das duas, por ser tão magra que parecia um esparguete vestido, era responsável por um programa-piloto de saúde oral para gente carenciada. Tentou convencer a Sra. D. Cacilda da Silva Conceição – é assim o seu nome, não é? – a passar a usar uma prótese fixa de última geração, que era praticamente como voltar a ter dentes. E quem lhe disse que eu quero ter dentes, perguntou ela, mastigando os lábios. Explicou que os clientes a queriam assim, sem dentadura, que toda a vida esse fora o maior dos seus trunfos comerciais, e que não deixava que doutor nenhum do mundo lhe estragasse o negócio.

Nessa altura, a D. Cacilda já tinha deixado de nos oferecer chocolates, porque uma vez nos tínhamos plantado no passeio a chupar calipos de morango e a gritar o nome dela em direção às águas furtadas. Quem não gostava era o Sr. Abílio, para quem a D. Cacilda era mulher de grandes virtudes. Provavelmente, achava-se detentor do monopólio do berro pela velha amante. Na nossa rua, toda a gente sabia que, depois de encharcar a vela na tasca do meu tio, o Sr. Abílio se dirigia, devagarinho, passeio afora, com a mão a acariciar as paredes das casas, segurando-as para não caírem, oferecendo-lhes o equilíbrio que o vinho lhes havia subtraído, até se postar à janela do prédio em que a D. Cacilda morava desde os quatro anos, idade com a qual os pais a trouxeram de uma aldeia nas imediações de Vouzela. Ó Cacilda, gritava, tentando fazer chegar a voz submersa ao quarto andar daquele prédio de azulejo biselado verde. Ó Cacilda, abre a porta!

Faz hoje precisamente dez anos, a D. Cacilda morreu de cancro – as vizinhas diziam que tinha cancro lá no fundo – e conta-se que, na mesma noite, o Sr. Abílio se atirou da ponte D. Luís. Que o encontraram a boiar junto à Afurada, é verdade; que não sabia nadar, também; se foi o vinho que o empurrou, como defendem as autoridades e duas testemunhas, ou se se atirou por desgosto, é coisa que nunca se descobriu.

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