domingo, junho 7

Agora que nos encontramos

Agora que nos encontrámos, nunca mais nos vamos perder , pois não? E precisamos tanto de conversar! Precisávamos de fazer uma viagem de comboio, daquelas que se faziam antigamente, muito longas, em que se gastavam treze horas num percurso de trezentos quilómetros. Mas nem isso chegava...Precisávamos , sim, era de ir de comboio através de toda a Europa, de toda a Ásia , até Pequim ou Vladivostok. E pernoitar em todas as estalagens que já não existem. Ficarmos a conversar ao canto do fogo, durante a noite; e viajar continuamente durante o dia...

Pensas tu que foi há vinte anos? Quem te garante que era eu? Podia ser, no fim de contas, qualquer das minhas irmãs. Mas assim nua, à torreira do sol, sempre a entrar e a sair da água, devia ser eu com toda a certeza. Agora (sabes?) odeio o Verão.O Inverno é muito melhor para a gente se conhecer. E preciso de roupa, de muita roupa - de camisolas de lã, de collants de malha, de saias compridas, de gorros de pele -, para sentir as outras pessoas. Preciso mesmo de estar com luvas ( estas ou outras, tanto faz) para conseguir acariciar-te. E sobretudo isto: os pés, os joelhos. De qualquer modo, como vês , só assim por cima dos cobertores.

Hoje em dia, quando me dispo diante de alguém, é principalmente para ver se me escondo. Ou se me esqueço. Ou se me disfarço. Nunca reparaste? Numa praia , por exemplo...Quanto mais despidos ficamos, mais temos a sensação de que ninguém nos reconhece. Há vinte anos? Há vinte anos era diferente.

Não estremeças. Não te assustes . Este comboio a esta hora, todas as noites aqui passa. Não; daí não o vês... Terás de contentar-te em ouvi-lo passar. Mas eu encarrego-me , se quiseres de te dizer como ele vai. É enorme, sabes? Compridíssimo... Parece que não tem fim. E leva as carruagens todas às escuras, quase que se confunde com a própria noite. Todas, não ... A última ( só agora a vejo, só agora está a passar aqui diante da janela), a última vai iluminada. E que bem que se vê tudo lá por dentro! É um vagão-restaurante, com cortinas vermelhas - em cima de cada mesa. Mas vêem-se apenas os vultos de duas pessoas - uma mulher e um homem -, que certamente não se conhecem: vão abancados em mesas separadas, com três ou quatro de permeio, olhando , a distância , fixamente um para o outro.

Regressas ( lembras-te?) daquela praia da Costa Brava, onde passaste um mês de férias. Ias quase jurar que conheces essa mulher muito nova, que vai sentada ali adiante e que também não tira os olhos de ti. Não é a mesma que vias, todas as manhãs, a entrar e a sair da água, inteiramente nua, lá no fundo da praia, naquele extremo em que os rochedos , tortos e desgarrados , encenavam ainda a ilusão de uma última praia? Se é realmente quem te parece , também ela te reconheceu. E havia outras duas , da mesma idade, mas sempre vestidas , que permaneciam no alto das rochas e como que por acaso se conservavam, de onde quer que as olhasses, invariavelmente de costas para ti.

Já reparaste como escureceu, aqui dentro, depois de o comboio ter passado? Agora, imagina, até me resolvo a descalçar as luvas: basta que a noite se apresse em me cobrir as mãos, desde a ponta dos dedos até aos pulsos... E toco-te os joelhos ( sentes?) assim por cima dos cobertores , do lençol e dos cobertores, mas a película de noite que me envolve os dedos atravessa e desfaz todos esses tecidos. Conheço finalmente a forma dos teus joelhos, e muito melhor do que se estivesse a vê-los. É bom saber, por outro lado, que não conseguirás fazer nenhum movimento brusco. E que permanecerás aí, estendido, enquanto continuo a acariciar-te.
David Mourão-Ferreira, "Os Amantes e outros contos"

Nenhum comentário:

Postar um comentário