Pensas tu que foi há vinte anos? Quem te garante que era eu? Podia ser, no fim de contas, qualquer das minhas irmãs. Mas assim nua, à torreira do sol, sempre a entrar e a sair da água, devia ser eu com toda a certeza. Agora (sabes?) odeio o Verão.O Inverno é muito melhor para a gente se conhecer. E preciso de roupa, de muita roupa - de camisolas de lã, de collants de malha, de saias compridas, de gorros de pele -, para sentir as outras pessoas. Preciso mesmo de estar com luvas ( estas ou outras, tanto faz) para conseguir acariciar-te. E sobretudo isto: os pés, os joelhos. De qualquer modo, como vês , só assim por cima dos cobertores.
Hoje em dia, quando me dispo diante de alguém, é principalmente para ver se me escondo. Ou se me esqueço. Ou se me disfarço. Nunca reparaste? Numa praia , por exemplo...Quanto mais despidos ficamos, mais temos a sensação de que ninguém nos reconhece. Há vinte anos? Há vinte anos era diferente.
Não estremeças. Não te assustes . Este comboio a esta hora, todas as noites aqui passa. Não; daí não o vês... Terás de contentar-te em ouvi-lo passar. Mas eu encarrego-me , se quiseres de te dizer como ele vai. É enorme, sabes? Compridíssimo... Parece que não tem fim. E leva as carruagens todas às escuras, quase que se confunde com a própria noite. Todas, não ... A última ( só agora a vejo, só agora está a passar aqui diante da janela), a última vai iluminada. E que bem que se vê tudo lá por dentro! É um vagão-restaurante, com cortinas vermelhas - em cima de cada mesa. Mas vêem-se apenas os vultos de duas pessoas - uma mulher e um homem -, que certamente não se conhecem: vão abancados em mesas separadas, com três ou quatro de permeio, olhando , a distância , fixamente um para o outro.
Regressas ( lembras-te?) daquela praia da Costa Brava, onde passaste um mês de férias. Ias quase jurar que conheces essa mulher muito nova, que vai sentada ali adiante e que também não tira os olhos de ti. Não é a mesma que vias, todas as manhãs, a entrar e a sair da água, inteiramente nua, lá no fundo da praia, naquele extremo em que os rochedos , tortos e desgarrados , encenavam ainda a ilusão de uma última praia? Se é realmente quem te parece , também ela te reconheceu. E havia outras duas , da mesma idade, mas sempre vestidas , que permaneciam no alto das rochas e como que por acaso se conservavam, de onde quer que as olhasses, invariavelmente de costas para ti.
Já reparaste como escureceu, aqui dentro, depois de o comboio ter passado? Agora, imagina, até me resolvo a descalçar as luvas: basta que a noite se apresse em me cobrir as mãos, desde a ponta dos dedos até aos pulsos... E toco-te os joelhos ( sentes?) assim por cima dos cobertores , do lençol e dos cobertores, mas a película de noite que me envolve os dedos atravessa e desfaz todos esses tecidos. Conheço finalmente a forma dos teus joelhos, e muito melhor do que se estivesse a vê-los. É bom saber, por outro lado, que não conseguirás fazer nenhum movimento brusco. E que permanecerás aí, estendido, enquanto continuo a acariciar-te.
David Mourão-Ferreira, "Os Amantes e outros contos"
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