segunda-feira, março 22

Como as obras de Shakespeare podem nos ajudar a sobreviver à pandemia

Há muito se diz que o dramaturgo inglês William Shakespeare (1564-1616) é um oráculo a ser consultado sem moderação. Seguindo essa linha, “O que você precisa saber sobre Shakespeare antes que o mundo acabe” é possivelmente a coletânea que mais merece a atenção do leitor hoje, dentre as muitas que surgiram tendo a pandemia como tema central. Com textos de 57 autores, brasileiros ou não, mostra como o mestre nos ajuda a vencer as demandas que ora nos atormentam e aquelas que são eternas. Mas, diga-se logo, não é autoajuda. É discussão literária na veia.

Parece que Shakespeare nos entende pelo fato de ter sobrevivido à terrível peste negra do século XVI. Assim, traz a voz da experiência para lidarmos com questões pesadas que tomaram a cena no último ano: solidão, medos, perdas, mortes, políticos e podres poderes... Para ele, nada disso é novidade, até porque o ser humano não muda, e daí o respeito dedicado às suas palavras.

“O que você precisa...” vale quanto pesa. São mais de 500 páginas divididas entre nomes conhecidos do público brasileiro (como a juíza e escritora Andréa, ou os atores Vera Holtz e Lima Duarte) e outros mais ligados ao mundo editorial ou acadêmico (como Geraldo Carneiro, Lawrence Flores Pereira ou Sir Richard Eyre). Não há o que se dispensar ali — a não ser duas ou três exceções que cometeram o pecado da vaidade exacerbada, encarnando personagens shakespearianos por excelência. Com o resto, no entanto, muito se aprende: a obra é também, evidentemente, uma ótima introdução ao legado do dramaturgo.

Alguns desses nossos interlocutores contemporâneos são mais formais, outros são mais soltos — mas todos são claros nas suas propostas, que eventualmente divergem entre si. Esse contraditório aprofunda as reflexões sobre as obras e, por extensão, sobre o ser humano, tão precário e tão complexo, hoje tão perdido. Ponto para as organizadoras da coletânea, Fernanda Medeiros e Liana de Camargo Leão, ambas professoras da Uerj com longa dedicação ao dramaturgo inglês, que conseguiram essa pluralidade de vozes.

O veterano teatrólogo Amir Haddad abre o livro com bom humor, garantindo que Shakespeare é o seu “sistema imunológico”. Já a professora Emma Smith, da Universidade de Oxford, prega o poder regenerador das comédias — enquanto outros coautores recomendam para os nossos dias as tragédias, especialmente “Rei Lear” e “Hamlet”, citadas à exaustão, sempre com interpretações instigantes. São peças que provocam descobertas a cada leitura.

Breve e marcante é o comentário de Andréa Pachá, contando que obras como “Romeu e Julieta”, sobre o aprisionamento do “amor eterno na gaiola do cotidiano”, propiciam fundamentos mais humanos às suas decisões como juíza em varas de família. Essa necessidade da aplicação prática da “filosofia do Bardo” no meio jurídico é tema também da procuradora federal Maria Candida Kroetz.

Ao traçar um feliz paralelo entre o Bardo e Buda, a professora Cristiane Busato Smith diz que Shakespeare nunca será um escritor de autoajuda, pois jamais estará tutelando alguém. Pelo contrário, ele provoca um mergulho nas contradições inerentes à condição humana. Assim, ajuda o leitor a descobrir em si os traços bons e ruins que todos carregamos, mesmo a contragosto. Cutucar as próprias ambiguidades dói, mas é dor de crescimento. E não dá para negar que, ainda que às escondidas, eventualmente somos soberbos como Ricardo II, ambiciosos como Macbeth, arrogantes como Júlio César, cínicos como Ricardo III, e por aí vai.

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