Puseram-lhe um uniforme (já não se dizia mais libré): colete de riscas para o diário, paletó branco e black-tie para servir o jantar. Tinha banho quente, quarto que dividia com o chofer por cima da garagem, folga domingo à tarde, boia sofrível, ordenado idem.
Mas não se sentia feliz. Não é que lhe parecesse pesado o serviço, nem penoso. Não há nada de especialmente difícil no oferecer um prato à esquerda a começar pela senhora mais velha, em dia de jantar de cerimônia. Nem é mister ser doutor de Coimbra para arear as pratas ou correr a enceradeira no parquet. O que pegava o carro era o lado moral, ou para dizer melhor, era a alma. O portuguesinho viera para o Brasil a fim de ser um homem – um homem, dizia ele –, não para ser criado de ninguém. Criado por criado, ficava mesmo na aldeia onde tinha o bom vinho e a boa sopa e criado só seria do pai.
O Brasil sempre lhe representara um símbolo: liberdade, dinheiro fácil, dizer a verdade nas fuças às pessoas, jamais chamar alguém de Vossa Excelência ou Vossa Senhoria. Aos íntimos e aos iguais tratar por tu, aos estranhos, Você – que ele aliás dizia "Bocê". E amar, sobre todas as coisas, amar à larga, sem a família nem o cura da aldeia a exigirem casamento – que lá o jeito é casar mesmo, pois não são todos primos e primas? O Brasil da lenda, jardim imenso de mulatas em disponibilidade permanente – ai, o velho sangue de mouro que há nas veias de todo bom português a exigir a sua cota de huris.
Tudo isso pensava tristonho o moço português, que não se chamava Manuel nem Joaquim, segundo a tradição, mas Veridiano, segundo a folhinha; assim pensava tramando planos de liberdade, enquanto mudava a água dos vasos da sala, ou fazia as camas, ou lustrava os talheres. E como desconfiasse que o mano não lhe aprovasse os sonhos, nunca lhe falou nada. Contentou-se em ir economizando o ordenado, sorrindo misterioso quando o irmão lhe reparava na poupança excessiva – que esse era um mão-aberta, não tinha tostão de seu, e olhe que ganhava não digo milhões, mas milheiros, só de gorjetas.
O fim longínquo de Veridiano era ser dono de uma cutelaria. O fim próximo estava ao alcance da sua mão; quando as economias deram para tanto, empregou-as na compra de uma roda de amolar, instalada no carrinho próprio e na licença da Prefeitura que lhe permitisse exercer a profissão de amolador. Aí despediu-se da madame, que quase chorou de desgosto, ouviu calado as descomposturas do irmão e, com a delícia que só os escravos urbanos podem avaliar, largou a libré de risquinhas, o jaleco branco e o black-tie, meteu o pé no tamanco, comprou na feira da Glória um blusão verde e uma calça de zuarte, e se iniciou no ofício de homem livre.
Falar a verdade, no princípio apanhou um pouco. Porque, se dava para homem livre, para amolador, que era o bom, tinha apenas as mais mínimas noções e nunca lhe ocorrera que ali tal profissão exigisse aprendizado. Suou sangue, quebrou muita faca, sofreu prejuízos e humilhações, mas tudo se aprende afinal.
Passado um ano, ninguém reconheceria nele quer o portuguesinho rosado e risonho do desembarque, quer o copeiro nervoso de quebrar a porcelana, a murmurar "com licença" ao redor da mesa e a enfiar na sopa o polegar da luva. Tinha agora uma segurança, um ar de alegria que lhe compensava de muito as cores da face um pouco desbotadas. Inventou até uma cantiguinha que era uma delícia cantar rua abaixo, rua acima, empurrando a "máquina", como ele gostava de chamar ao seu instrumento de trabalho: "Facas, tesouras, facões, tesourinhas! Amoladoire! Amoladoire!". Cantava baixo, pois era homem de pequenas ousadias e além do mais já não se usam os pregões de outrora. O anúncio sonoro quem o fazia era o próprio chiar do rebolo a afiar o aço, aquele silvo agudo e característico que lhe soava aos ouvidos como um gorjeio de anjo.
Esta história era para acabar numa grande tragédia, conforme me foi contada. Mas, pensando bem, por que fazer essa concessão à morbidez do público e lhe dar o sangue e as lágrimas em que ele, público, adora banhar-se? Sim, pois segundo me disseram, o amolador Veridiano, no segundo ano de suas andanças, foi misteriosamente morto ao pé da Ladeira do Senado. A radiopatrulha já o encontrou defunto, sorridente, de olhos abertos para o céu escuro da madrugada, e com duas balas no peito.
Há ainda outra versão: que o Veridiano, de economia em economia, cruzeiro a cruzeiro, acabou juntando o suficiente para se estabelecer com uma lojinha de duas portas perto da estação de Madureira, no ramo de seus sonhos: a cutelaria. Ficou noivo, renunciou às cabrochas, espera ficar rico e entrar de sócio no Ginástico.
Eu, porém, prefiro uma terceira versão e é esta que oficializo: o Veridiano continua no seu carrinho de amolador, a correr as ruas da Glória e do Catete, Lapa, Arcos, Lavradio, Mangue. Canta, amola, embolsa e gasta, e dispõe do mais deslumbrante jardim de huris com o qual já sonhou mouro ou cristão. Suas, de amar, de dizer piadas, de dar presentinhos, de beliscar e de outras intimidades amatórias, são todas as copeiras, cozinheiras, babás, porta-estandartes, garçonetes e até algumas taxi-girls, da Cidade Nova ao Flamengo. Jamais pensa em ficar rico. É como um pássaro feliz, é um irmão dos pardais da cidade que, tal como ele, vieram da Europa para desfrutar o Rio. E como desfrutam, meu senhor!
Rachel de Queiroz
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