terça-feira, março 23

Foto #3: Molduras

A moldura é em madeira escura trabalhada, tem 73 por 52 centímetros e está pendurada na parede da sala, entre a zona das refeições e os sofás. Ao pender para a frente, criando com a vertical um ângulo de mais de cinco graus faz com que os sete rostos perfilados no seu interior surjam como se nos olhassem de uma galeria alta. É uma montagem, explica-me mais uma vez a minha mãe, foi a tua avó que a mandou fazer, as fotografias originais devem ter sido todas tiradas no fotógrafo da Carrazeda, ali ao pé dos bombeiros, lembras-te?, não havia outro, nem longe nem perto, só pode ter sido lá, eu sou a que está no meio, olha como era bonita. Ri-se, marota. A vaidade da minha mãe é tão recente quanto os estragos na sua cabeça.

Era, de facto, muito bonita a minha mãe. Apesar de a fotografia ser a preto-e-branco, adivinha-se o cabelo arruivado e os olhos esmeralda das heroínas descritas pela Jane Austen. As sombras realçam o rosto oval, o pescoço alto, tranças enroladas à volta da cabeça com um laçarote de cada lado. Tirei a fotografia nas vésperas de ir para o Brasil, tinha 11 anos, 1950, 11 anos e lá fui eu sozinha para estudar no Brasil, quem numa aldeia ia além da quarta classe?, os rapazes ainda podiam fazer o seminário, mas uma rapariga… o tio Alfredo que vivia em São Paulo bem recebeu o dinheiro que o meu pai lhe deu para os meus estudos, mas pôs-me a lavar pratos, ainda lá fiquei dois anos, a sorte foi o João Candeias ter-me levado ao consulado de Portugal, eu não tinha dinheiro para regressar, mesmo que tivesse não saberia como comprar a viagem, pouco mais era do que uma criança. Na fotografia, a compostura da minha mãe e a solidez do seu olhar atiram-na para o início da idade adulta. A adolescência é uma invenção muito recente.


No quadro, os corpos existem apenas do peito para cima, lado a lado, sobressaindo de uma nuvem cinzenta que esfuma as sobreposições dos ombros. O resultado é uma gigante minhoca heptacéfala com olhares desencontrados. Do lado direito da minha mãe, está o pai dela. O nivelamento dos rostos não permite revelar quão alto era o meu avô Venâncio. Um homem bonito com orelhas de abano, casaco, colete, gravata. Parece esculpido em madeira. Foi um homem mau, confessa a minha mãe. A minha avó Marquinhas está do lado esquerdo da minha mãe. O talento do fotógrafo não conseguiu disfarçar-lhe a fealdade da monocelha, do nariz adunco, dos lábios finos, mas o que mais impressiona é a sua tristeza. Sempre a conheci de luto, perdeu dois filhos antes de eu nascer, lamenta a minha mãe, voltou a perder outro já eu andava por cá, isto contando só os nascidos, que muitos foram os abortos que a pobrezinha teve, ainda por cima o que o meu pai lhe batia, graças a Deus o teu pai nunca me bateu. Para a minha mãe, um marido bater ou não na mulher é o resultado de a vida ser uma roda de sorte e azar, não tem que ver com crime ou com respeito e amor. Ao lado da avó Marquinhas está a sua outra filha, a irmã da minha mãe, a minha tia Odete. A fotografia apresenta-a ainda criança, terá uns 7 anos, um cabelo penteado com o risco ao lado, farto e liso, negro, cortado a direito pouco acima dos ombros. O vestido claro não lhe aligeira o olhar pesado de quem pressente um trágico destino, Sofreu tanto e morreu tão nova, exclama a minha mãe.

A emoldurar a família nuclear, existe um casal do lado direito e uma mulher do lado esquerdo. O homem tem cabelo e bigode brancos, mas uma cara jovem, apesar de rude, Acho que eram os padrinhos da minha mãe, o Lopes e a mulher, como é que ela se chamava?, tem uma camisa muito branca com gola subida de folhos, medalhão com a cruz de Cristo, cabelo apanhado. A mulher do lado esquerdo da minha tia Odete tem feições vagamente familiares, olhos escuros, nariz demasiado grande, rosto baço.

Ultimamente a minha mãe deixa-se ficar a olhar para o quadro, Gostava de saber quem são aquelas pessoas, têm de ser importantes para estarem ali, diz, o quadro foi feito em Lisboa, a Amelinha, a filha do dr. Cabral, trouxe as fotografias e mandou-o fazer, a minha mãe vendeu alqueires de trigo às escondidas do meu pai para arranjar dinheiro com que o pagar, quando recebeu o quadro embrulhou-o em lençóis e escondeu-o numa das arcas da sala de entrada, se o meu pai tivesse descoberto que ela tinha gasto dinheiro com isto, dava-lhe uma tareia de criar bicho, eu tinha voltado já do Brasil quando a Amelinha chegou de Lisboa com o quadro, nos dias em que o meu pai ia à feira do gado de Mirandela ou a outra lonjura dessas, a minha mãe tirava-o da arca, desembrulhava-o e ficávamos as três, a minha irmã, a minha mãe e eu a olharmos para ele, gostávamos de passar a mão na moldura de madeira, aqueles repenicados de metal brilhavam mais do que a prata, era o nosso segredo, como é que esqueci quem é aquela gente?

Não é de agora que a minha mãe não sabe quem eles são. Encontrei o quadro no fundo de uma arca, no início dos anos 80, quando entrei à socapa na casa dos meus avós, que estava para obras, depois de ter sido vendida a um emigrante francês. Já então a minha mãe se interrogou, Como é que esqueci quem são estes? Haviam passado mais de duas décadas desde a última vez que, juntas, a minha mãe, a minha avó e a minha tia se haviam visto refletidas no vidro do quadro. Até esse dia, talvez o quadro nunca tivesse chegado a conhecer outro repouso que não o do sombrio fundo da arca.

Três desconhecidos vigiam-me. Ou protegem-me. É difícil distinguir uma coisa da outra. Três desconhecidos. Nesta casa. Desde sempre. Na casa a que eu voltei. A casa que era dos meus pais. Depois da minha mãe. E agora? De quem é esta casa, agora?

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