O pai agarrou nele e levou-o ao quarto de uma empregada, a mais nova e a mais bonita da casa.
- Agora vais fazê-la, aqui, à minha frente.
A criadita estava assustada, claro, mas o estranho é que parecia que ela estava assustada com ele, e não com o pai: era o facto de Lenz ser um adolescente que assustava a criadita e não a violência com que o pai a disponibilizava ao filho, sem qualquer pudor, sem sequer ter o cuidado de sair. O pai queria ver.
- Vais fazê-la à minha frente - repetia.
Estas palavras do pai marcaram Lenz durante anos. Vais fazê-la.
O acto de fornicar a criadita era reduzido ao mais simples: a um fazer. Vais fazê-la, era a expressão, como se a criadita ainda não estivesse feita, como se fosse ainda uma matéria informe, que esperasse o acto dele, Lenz, para ser acabada. Esta mulher ainda não está feita antes de tu a fazeres, pensou o adolescente Lenz, de uma forma clara, e os gestos seguintes foram os gestos de um trabalhador, de um empregado que obedece às indicações de um encarregado mais experiente, neste caso o seu pai: vais fazê-la.
- Despe as calças - foi a segunda frase do pai. - Despe as calças.
O adolescente Lenz despiu as calças. E todas as ordens que se seguiram foram dirigidas exclusivamente a si; ou seja: o pai não dirigiu uma única frase à criadita - ela sabia o que havia a fazer e fez o que tinha de fazer, máquina que não tem alternativa. Ao contrário do adolescente Lenz que, apesar de tudo, poderia dizer ao pai: não quero.
- Despe as calças - ordenou o pai.
Lenz é conduzido, depois, quase empurrado, pelo pai até à criadita, que está deitada e espera.
- Avança - disse o pai, com rudeza.
E o adolescente Lenz, determinado, avançou sobre a criadita.
A caça
2
Lenz calça as botas e prepara-se para a caça. Primeiro o ritual de domínio sobre os pequenos objectos imóveis: as botas, a arma, o colete pesado.
Aqueles movimentos eram os que melhor contribuíam para formar o ser humano. E que bom atirador ele era.
Por seu turno, os elementos ágeis da natureza reivindicavam uma desobediência que não era tolerável. Lenz ia caçar devido a uma certa determinação política. Um coelho era um adversário minúsculo, mas obrigava-o a tomar uma posição em cima da terra, dentro do mapa de combate. Um opositor mesquinho - um coelho - obrigava Lenz a uma tensão muscular, a um ligar da astúcia: não bastava a pontaria nem a capacidade mecânica da arma, era ainda necessária uma atenção intelectual, uma atenção da inteligência; só as coisas imóveis dispensavam esta atenção de Lenz.
Entre ele, Lenz, e a peça de caça, ainda viva, havia uma negociação prévia: ele recusava-se a matar umúnico animal nos primeiros minutos. Havia a exigência de habituação, um respeito em relação a um espaço que se invade. Aquela não era a sua casa.
Os vinte minutos em que não disparava eram o limpar dos pés ao tapete à entrada de uma casa estranha. A estranheza existia no bosque e, não havendo porta de entrada nem tapete, Lenz percorria, durante vinte minutos, os caminhos que a natureza, com a sua estupidez muito própria, deixara espontaneamente para os homens passarem.
Havia no bosque uma outra lei. No bosque a moral era indelicada, rude, era o mesmo que entrar no quarto da criadita, enquanto adolescente; naquele quarto dos fundos, com cheiros muito diferentes dos que existiam na casa principal, na casa dos pais. No quarto da criadita ser delicado era ser fraco e constituiria de tal forma um erro absurdo que até a criadita protestaria perante qualquer gesto carinhoso do filho do patrão.
No bosque as virtudes não haviam sido invadidas pela sensação de mofo; uma outra potência estava suspensa sobre o seu caminhar por entre as árvores robustas, mas tortas, que escondiam centenas de existências animais; existências que eram, afinal, peças de caça, num resumo extraordinariamente sintético também das relações humanas.
Lenz não tinha ilusões: só não entrava numa qualquer rua da cidade com a mesma cautela e com a arma preparada para disparar porque, naquele outro espaço, algo ainda inibia o ódio: a mútua vantagem económica.
O aparente equilíbrio entre vizinhos do mesmo prédio era o que existia num homem de elevada estatura, um instante antes de, desamparado, pousar o primeiro pé num pântano. A frase primeiro o senhor, dita por alguém, num café, a um outro cliente que entrasse ao mesmo tempo, aceitando assim beber algo depois de o primeiro ser servido, era uma frase de guerra, de pura guerra.
Todas as frases de simpatia podiam ser vistas, segundo um outro olhar, como frases de ataque. Ao deixar passar o outro à frente, um homem não estava a aceitar ser segundo mas sim a preparar o mapa do terreno para poder controlar visualmente o homem que por instantes se julgava em primeiro lugar. A vantagem de alguém estar à nossa frente, dissera uma vez o pai de Lenz, é estar de costas viradas para nós. Não importa o lugar onde estamos mas o campo de visão e a posição relativa.
No entanto, Lenz cedo percebera que era necessário um suporte, um sítio ao qual o corpo se encoste sem medo de ser atraiçoado; no fundo, uma parede que não corra o risco de desabar. A família seria a sua parede, o ponto a que poderia encostar a nuca (pois mesmo num ataque vigoroso quem ataca tem nuca, e essa fragilidade jamais pode ser esquecida).
Lenz preparou a arma, encostou o aço da coronha ao peito - peito que batia com força - e pensando na criadita que há mais de dez anos, debaixo dos incentivos do pai, o servira pela primeira vez, Lenz apontou e disparou.
Ouviu depois um guincho, que noutra situação juraria poder ter saído das rodas de um carro e, após um segundo de estupefacção inexplicável, começou a correr na sua direcção. Em breve, o sangue se tornou marcante naquela parte do bosque, porém Lenz não conseguiu apanhar o animal.
Tinha conseguido ferir o inimigo, mas não eliminá-lo. Ainda não o poderia comer.
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