sábado, março 6

Nuvem-bomba

Aron Wiesenfeld
Todo dia é mais um dia de nação se desfazendo, mas vou tentar não cair para o amargor porque, você sabe, hoje é sábado. Vou tentar não falar das armas e dos silenciadores à farta nem das mulheres passadas à faca, também vou evitar dizer que há pessoas desaparecendo misteriosamente, outras sendo encontradas em tugúrios impensáveis, vivendo como mal vive um rato.

Evitarei igualmente a polêmica das crianças com ou sem escola em tempos de vacina adiada, contrabandeada, ostentada como status de desfaçatez dos fura-filas. E não, não vou falar do entorno paleolítico que se tornou essa parte do bairro onde hoje vivo, com seus incansáveis seres martelantes em manhãs sem distinção entre segundas-feiras e domingos.

Nem vou tocar em assuntos velados, como o do suicídio, rápido ou lento, a que tanta gente tem se inclinado. Nada dessas coisas que sangram, dessas coisas que doem, você sabe, porque hoje é sábado. Nada dessas coisas que ressuscitam de outros séculos porque nunca estiveram de fato mortas, nada dessa terra no que ela tem de horror vitalício ao vestir-se de pátria.

Só quero mesmo dizer que trasanteontem o céu detonou uma gigantesca nuvem-bomba afogueada que parecia o instantâneo mudo e espetacular de um fim não só de tarde. Era a hora do fim de uma cidade numa fração de segundo estendida. Uma nuvem tão soberana quanto um basta, baixa, sem estrondos, aberta em fogo, chamando os encavernados à janela e levantando os olhos aos da avenida. Parecia até a magnífica gentileza de um aviso. Uma nuvem monstruosa e linda.

Mariana Ianelli

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